Com vistas à reconstruir pontes políticas e comerciais com os países da América do Sul, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se reuniu, ontem, com o presidente da Argentina, Alberto Fernández, na Casa Rosada — sede do governo daquele país — a fim de discutirem vários projetos bilaterais, entre os quais a ajuda do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social para a construção de um gasoduto unindo os dois países e a formulação de uma moeda comum para importações e exportações. Como forma de reduzir o mal-estar que vinha desde o governo Bolsonaro, Lula pediu "desculpas" aos argentinos pelas "grosserias" do então presidente em relação a Fernández.
"Estou pedindo desculpas ao povo argentino por todas as grosserias que o último presidente do Brasil, que eu trato como um genocida por causa da falta de responsabilidade com o cuidado com a pandemia, fez ao Fernández", anunciou.
Segundo Lula, o Brasil "não tem o direito de ficar procurando inimigos". "Precisamos construir amigos, parceiros", disse, ressaltando estar de volta para fazer "bons acordos" com a Argentina.
Sabendo que a Argentina terá eleições presidenciais e legislativas, e que a popularidade de Fernández não é das melhores devido à crise econômica vivida pelo país, Lula exortou aos argentinos que não deixem a extrema direita — referindo-se ao presidente Ricardo Macri — voltar à Presidência, em outubro. "A extrema direita não deu certo em nenhum país que governou. Espero que o povo argentino, em sua inteligência, não permita que ocorra um desastre político-eleitoral aqui", pediu.
Emocionado, o presidente ainda agradeceu a Fernández por tê-lo visitado na prisão, enquanto estava preso na sede da Polícia Federal, em Curitiba. "Não esqueço nunca o gesto que o companheiro Alberto Fernández fez quando foi ao Brasil ao me visitar. Não esqueço nunca a solidariedade do povo argentino. Obrigado, companheiro, pelo carinho que demonstrou naquele momento difícil", disse.
O presidente argentino devolveu a gentileza classificando Lula como "líder regional e estadista". "A Argentina sempre estará ao seu lado e não permitirá que um delirante ponha em perigo as instituições brasileiras. Não vamos permitir que nenhum fascista se aposse da soberania popular", provocou, em insinuação a Bolsonaro.
Venezuela
Em Buenos Aires para participar também da 7ª Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que se realiza hoje, Lula deveria se encontrar com o presidente venezuelano, Nicolás Maduro. Na coletiva ao lado de Fernández, o brasileiro foi cobrado pelos jornalistas sobre o regime de Caracas — e disse que o "problema" daquele país será resolvido por meio do diálogo. Tanto que anunciou o restabelecimento de relações diplomáticas.
"Queremos que a Venezuela tenha embaixada no Brasil, que o Brasil tenha embaixada na Venezuela e vamos restabelecer a relação civilizada entre dois estados autônomos, livres e independentes. Conseguimos uma vez, vamos conseguir outra vez, e a Venezuela vai voltar a ser tratada normalmente, como todos os países querem ser tratados", assegurou Lula, aproveitando para criticar o auto-intitulado presidente venezuelano, Juan Guaidó.
"Vejo muita gente pedindo compreensão ao Maduro. Essas pessoas se esquecem que eles fizeram uma coisa abominável para a democracia, que foi reconhecer um cara que não era presidente, não foi eleito, o Guaidó", reagiu.
E ao contrário de Bolsonaro, que jamais criticou a Rússia pela invasão da Ucrânia, Lula se posicionou contrariamente a Moscou ao comentar a cobrança por ingerências em outros países. "Da mesma forma que sou contra a ocupação territorial que a Rússia fez na Ucrânia, sou contra a ingerência no processo da Venezuela. Espero que Venezuela e Cuba façam aquilo que quiserem e nós não temos que nos meter", saiu-se.
Moeda comum será facilitadora de negócios
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou, ontem, que o plano para criação de uma moeda comum entre Brasil e Argentina não tem relação alguma com a ideia do ex-ministro da Economia, Paulo Guedes. Conforme enfatizou, não se trata de um valor de conversão para substituir o real ou o peso, mas, sim, uma unidade financeira para facilitar transações comerciais, sem excessiva influência do dólar.
"Se trata de avançarmos nos instrumentos previstos e que não funcionaram a contento. Recebemos dos nossos presidentes uma incumbência: não adotar — e deixo isso muito claro — uma ideia que era do governo anterior, que não foi levada a cabo, da moeda única", explicou Haddad.
Sobre isso, pouco antes os presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Alberto Fernández deixaram claro que se tratava de um projeto de longo prazo e que ainda precisaria ser debatido entre os países e muito negociado com os setores produtivos.
"Não sabemos como poderia funcionar uma moeda comum entre Argentina e Brasil, mas sabemos o que acontece com as economias nacionais tendo necessidade de funcionar com moedas estrangeiras. E sabemos como isso é nocivo", destacou Fernández.
Integração radical
Para Haddad, a integração de países da América Latina deveria ser "um pouco mais radical". Ele classificou o atual momento como uma "oportunidade que está se abrindo", devido a um "alinhamento de propósitos com presidentes progressistas". "Eu vejo como uma obrigação histórica recolocar o debate de uma integração que, do meu ponto de vista, deveria ser um pouco mais radical do que foi tentado até aqui. O Mercosul foi uma grande iniciativa, mas penso que chegou o momento de sermos mais ambiciosos nas nossas pretensões regionais", disse.
O pronunciamento ocorreu logo após o encontro com o ministro da Economia argentino, Sergio Massa, e uma tarde de diálogos com empresários e autoridades argentinas. Haddad lembrou que nos últimos anos, a corrente de comércio entre os dois países caiu 40%, sendo a Argentina o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, atrás apenas da China e dos Estados Unidos. Ele afirmou que a nova linha de crédito destinada aos importadores argentinos que comprarem produtos brasileiros, anunciada ontem, tem como objetivo aumentar as exportações do Brasil para o país vizinho.
Haddad assegurou ainda que não haverá risco para os bancos brasileiros que oferecerem a nova linha porque a operação será lastreada no Fundo de Garantia à Exportação (FGE) — que oferece garantias reais, como commodities. "Nem o banco argentino que estiver financiando o importador, nem o Banco do Brasil que esteja garantindo exportador, estão envolvidos no risco", frisou.