Mais do que vidros estilhaçados e danos às estruturas, o Congresso Nacional guarda, ainda, marcas do vandalismo que atingiu também a história e a memória de seu rico acervo cultural. Dezenas de obras de arte que representam momentos vivenciados por parlamentares, autoridades e chefes de Estado foram destruídas no 8 de janeiro, quando milhares de terroristas invadiram a Praça dos Três Poderes e deixaram um rastro de destruição em seus palácios.
As equipes de restauração tanto da Câmara dos Deputados quanto do Senado Federal atuam sem parar, desde o dia dos ataques, para reconstruir, fragmento por fragmento, as memórias de um país rachado. O diretor do Museu da Câmara, Marcelo Sá de Sousa, chegou ao local ao fim da noite de domingo, assim que o acesso foi liberado pela polícia, e começou a reunir os cacos das dezenas de objetos de valor incalculável que estavam expostos no Salão Verde da Casa. O balanço do rescaldo apontou a depredação de 31 peças, todas de valor inestimável.
O diretor, que acompanhou pela televisão as imagens da invasão, logo pensou que não conseguiria recuperar as peças. "Confesso que senti um certo alívio por ter conseguido encontrar, pelo menos, os pedaços e, assim, conseguimos restaurar", admite. A restauração completa, porém, vai depender da possibilidade de reconstrução de cada peça.
Na Câmara, a primeira peça restaurada já voltou ao lugar de origem: a escultura A bailarina, de 1920, do artista Victor Brecheret, doada pela filha dele, Sandra Brecheret Pellegrini. As mais prejudicadas podem levar até um ano para serem recuperadas. "Vamos precisar colocar todos esses fragmentos, encaixar da forma adequada, com toda a técnica que é necessária. Os vasos têm muitas partes faltando, apesar de a gente ter garimpado (fragmentos) por todo o Salão Verde, pela área do museu, do Senado inteiro. Alguns pedaços a gente achou na entrada do Plenário do Senado", relembra Gilcy Rodrigues Azevedo, chefe do serviço de preservação da Câmara.
Presentes
As peças que mais sofreram a ação dos vândalos foram os presentes protocolares, expostos na divisa entre o Salão Verde, da Câmara, e o Salão Azul, do Senado. Vasos de cerâmica e porcelana que vieram das mais variadas partes do mundo foram estilhaçados. Entre eles, o vaso de porcelana recebido em 2008, presente do deputado Lászio Köver, presidente da Assembleia Nacional da Hungria na época, em visita oficial. A peça é uma entre muitas que foram estilhaçadas e estão, no momento, com restauração em análise.
Muitas peças também foram furtadas. Uma pérola do Catar, presente do ministro das Relações Exteriores e vice-primeiro-ministro do Estado do Catar, Mohammed bin Abdulrahman Al-Thani, ao então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, em 2019, desapareceu. Os criminosos deixaram, apenas, a estrutura de madeira que a protegia. Uma bola de futebol autografada por Neymar, que estava exposta em uma vitrine, também sumiu.
Mutirão no Senado
No Senado, o museu da instituição foi invadido pelos golpistas e 14 obras foram danificadas. Uma tapeçaria de Burle Marx, de 1973, foi arrancada da parede e ficou com um rasgo de 21 cm. "Possivelmente, esse rasgo foi feito com objeto cortante. (O tapete) também foi encharcado de água, urinaram nele, e foi largado na entrada da Galeria do Plenário", conta a diretora do museu da Casa, Maria Cristina Monteiro. Um painel de Athos Bulcão também foi danificado por estilhaços de vidro. Para a restauração dessa peça, em especial, será necessário um investimento considerável: cada 20ml da tinta vermelha que o cobre custa R$ 800.
A diretora do museu lamentou os danos ao patrimônio cultural, que é de todo o povo brasileiro. "O dia 8 foi triste para todos nós porque, no momento em que soubemos da invasão, já surgiu um sentimento enorme de tristeza, angústia e desespero. Era um cenário de guerra quando chegamos aqui no dia seguinte", relembra ela.
Parte da história do Brasil que se encontrava representada em itens do acervo do museu foi depredada. Um tinteiro da época do Império (Século 19) foi amassado, praticamente dobrado ao meio. "A gente vai recuperar aqui mesmo. Não sabemos de qual liga metálica é feito, mas precisará passar por um processo de aquecimento para desdobrar", detalha Maria Cristina. Outro item histórico bastante prejudicado foi a mesa da mesma época que ficava no Cerimonial da Presidência do Senado. Partes da peça, como o tampo e as gavetas, precisaram ser resgatados pelos servidores espalhadas pelo prédio. Além disso, cinco quadros da galeria de ex-presidentes do Senado foram destruídos — apenas um poderá ser restaurado. O autor de todos os quadros da galeria, Urbano José Pibernat Villela, definiu como "barbárie" o que aconteceu em 8 de janeiro.
Urbano José Pibernat Vilela, o pintor dos ex-presidentes do Senado
O artista que assina os retratos de todos os ex-presidentes do Senado assistiu, estarrecido, à destruição de seu trabalho e de muitas outras peças de pintores, escultores e arquitetos. Villela, que retratou todos os ex-presidentes da Casa em pintura a óleo, associa a valorização da arte com o advento da civilidade. "Essa tendência é diretamente proporcional ao grau de civilidade ou desenvolvimento das sociedades contemporâneas. A arte pode ser entendida como o vínculo entre nossas inteligências emocional e racional, por isso é que, quanto mais inteligente for o indivíduo nesses dois sentidos, mais valoriza a arte, razão pela qual cabe perfeitamente dizer que ações como essa são verdadeiras barbáries", disse ao Correio.
O convite para retratar os ex-presidentes surgiu na primeira gestão de José Sarney como presidente da Casa, entre 2003 a 2005. Até então, a galeria era feita em fotos e foi transformada para retratos a óleo. Villela, que neste ano retratará o atual presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), também vai refazer as pinturas de Renan Calheiros (MDB-AL), Ramez Tebet (MDB-MS) e de José Sarney (MDB-AP). O artista, que registra com seus pincéis as mais diversas personalidades, iniciou na arte em 1960 e, hoje, conta mais de 1,6 mil retratos pintados.