Ao longo da carreira e da vida, Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, destinou o dom imensurável com a bola nos pés, principalmente, para dar alegria ao povo. Nos mais de 21 anos de carreira do ex-jogador — morto, aos 82, na última quinta-feira, em decorrência de complicações provocadas por um câncer —, incontáveis estádios ao redor do Brasil e do mundo viveram a rotina de ficarem abarrotados de súditos ávidos para verem o Atleta do Século desfilar sua arte. Ao longo do velório de 24 horas, realizado entre segunda-feira e ontem no centro do gramado da Vila Belmiro, onde o astro tanto brilhou, mais de 230 mil prestaram a última reverência ao Rei do Futebol.
O número oficial consolidado foi divulgado, ontem, pela assessoria de imprensa do Santos. Proporcionalmente, o contingente representa mais da metade da população da cidade mais marcante da carreira de Pelé: 433 mil pessoas, segundo o Censo de 2020. A despedida reuniu as mais diversas gerações de fãs. Muitos tiveram a honra de ver Pelé em ação nos gramados. E se emocionaram resgatando lembranças. "Vi o Pelé jogar duas vezes. Já chorei um monte. Para a minha geração, ele fez parte do nosso imaginário e da nossa educação, como matemática, português, história... Fazer gol como Pelé, vibrar como Pelé. 'Faça como o Pelé', falava meu pai", lembrou o professor Francisco Paulo, que saiu de Curitiba nas férias escolares para se despedir.
Os mais novos, ainda conhecendo a magia em torno da trajetória icônica do Rei do Futebol, alimentam a lenda do maior jogador de todos os tempos a partir do que ouviram de familiares e viram no vasto acervo de registros históricos deixado pelo camisa 10. Assim, criam uma opinião própria do legado. "Pelé foi um grande jogador, me inspiro muito nele. Quero fazer história também no Santos, como o Rei. Futebol é tudo para mim. Sem ele não seria nada", ressaltou o jovem Pablo, de 11 anos. O garoto atua no time sub-11 do alvinegro praiano e tem justamente o Atleta do Século como espelho para os sonhos no esporte.
Nas 24 horas de velório, a maioria dos torcedores enfrentou filas quilométricas ao longo dos quarteirões santistas para se aproximar do corpo de Pelé. Durante as primeiras horas do dia, nem mesmo o sol forte de Santos, de cerca de 30ºC, foi um impeditivo em meio à oportunidade de despedir-se. À noite, a madrugada de temperatura mais amena também não afastou os fãs. Em nenhum momento, os portões 2 e 3 da Vila Belmiro, por onde era organizada a entrada, ficaram vazios. Nos momentos mais movimentados, o tempo para chegar ao centro do gramado da Vila Belmiro durava, em média, duas horas. Vencida à espera, os súditos tinham poucos segundos próximos ao caixão do Rei do Futebol.
Maioria, os torcedores do Santos se revezavam para tremular bandeirões com fotos e frases de Pelé em forma de tributo. A tristeza em torno do adeus uniu, ainda, várias cores e rivalidades. Camisas de outros clubes, como Palmeiras, Corinthians, São Paulo, Flamengo, Vasco da Gama e Cruzeiro, se misturavam em meio às filas de espera da despedida. "O Rei merece todas as nossas homenagens. A cidade também. Sou santista desde pequena. A porta que o Pelé abriu no esporte não tem palavras para explicar. Ele foi uma ótima pessoa. Vida pessoal dele era o Edson Arantes do Nascimento. Mas, para o Pelé, eu tinha de vir aqui e prestar uma homenagem", garantiu a alvinegra Heloísa Nunes.
Nas últimas horas da manhã de ontem, com a proximidade do encerramento do velório, o fluxo de torcedores ficou ainda mais intenso nos arredores da Vila Belmiro. O relógio já rompia a barreira das 10h, horário limite programado para a despedida pública, quando o último torcedor foi autorizado a entrar. Após as milhares de homenagens do povo, o caixão com o corpo de Pelé deixou a tenda central erguida no estádio às 10h15. A urna foi levada a um caminhão do Corpo de Bombeiros e, pelo portão 4, o Rei do Futebol deixou o local onde tanto brilhou pela última vez, às 10h25, sob aplausos. Gesto tão costumeiro sempre que ele entrou no gramado com a camisa 10 do Santos.
Cortejo emociona em frente à casa da mãe do Rei
Após o velório de 24h aberto ao público na Vila Belmiro, o corpo de Pelé partiu em direção ao desfile fúnebre pelas ruas de Santos. O último percurso do Atleta do Século na cidade onde se consagrou e que aprendeu a amar foi do alto de um caminhão do Corpo de Bombeiros. O caixão com o Rei do Futebol percorreu cerca de 13 quilômetros entre o estádio e o Cemitério Memorial Necrópole Ecumênica, onde ocorreu o sepultamento no período da tarde. O ponto de maior emoção do cortejo foi a passagem pelo Canal 6 do município do litoral paulista. No local, vivem a mãe do Atleta do Século, dona Celeste, e a irmã, Maria Lúcia.
Com 100 anos completados no último 20 de novembro, dona Celeste sempre foi uma das grandes incentivadoras da vitoriosa carreira de Pelé no futebol profissional. Durante a celebração da missa de encerramento do velório na Vila Belmiro, foi dito que a matriarca da família Arantes do Nascimento ainda não tinha plena ciência da morte do filho. Em entrevista na última semana, porém, Maria Lúcia afirmou que a mãe, de alguma forma, sabia do falecimento do Rei. Com a saúde bastante debilitada, ela não foi vista na sacada da casa durante o cortejo com o corpo de Pelé.
Mas, certamente, dona Celeste conseguiu sentir o carinho transmitido pelos fãs. Por volta das 12h15, quando o caminhão do Corpo de Bombeiros com o caixão do Rei do Futebol estacionou em frente à residência, que tinha uma das janelas decorada com uma bandeira com os dizeres "Pelé Eterno" e outra do Brasil, centenas de torcedores renderam as mais diversas homenagens para acarinhar, principalmente, a família enlutada do Atleta do Século.
Em vários momentos da despedida, as centenas de vozes, que seguiam em romaria com o desfile fúnebre desde a Vila Belmiro, entoaram, em coro, o nome do maior jogador de futebol de todos os tempos. À pedido dos familiares, a multidão entoou a plenos pulmões um Pai Nosso e uma Ave Maria. As orações foram finalizadas com uma forte salva de palmas e emocionaram quem acompanhava o cortejo.
Maria Lúcia não conteve as lágrimas com todas as manifestações do público em tom de tributo à vida e à obra do Rei do Futebol. Quando surgiu na varanda de uma das residências vizinhas, ela foi bastante aplaudida pelos torcedores e respondeu o carinho com acenos. Acompanhada de familiares e alguns amigos, rezou e deu o último adeus ao irmão. A passagem do caixão pela rua onde a família mora durou cerca de 15 minutos. Dezenas de motociclistas realizaram um buzinaço na saída do corpo.
Antes de chegar ao Canal 6 para receber as últimas homenagens dos familiares, o cortejo passou pelo Canal 1 e pela orla da praia de Santos, um dos lugares preferidos de Pelé. Diversos moradores da cidade ficaram nas sacadas dos prédios de condomínios para dizerem adeus. Na areia, os populares escreveram mensagens e emularam o tradicional autógrafo do Rei do Futebol. Durante todo o desfile fúnebre, os populares se aglomeraram nas calçadas da cidade do litoral paulista. Alguns jogaram pétalas de rosas no caminhão dos Bombeiros que carregava o corpo do Atleta do Século.
Com toda a comoção popular, o trajeto levou quase quatro horas para ser finalizado. O planejamento inicial da organização era percorrer todas as ruas programadas para receber a despedida em pouco mais de 40 minutos. O cortejo fúnebre foi realizado sob uma leve chuva em Santos e em meio aos cânticos de músicas tradicionais das torcidas organizadas do alvinegro paulista. Na chegada ao destino, o Rei do Futebol foi recebido com o hino do clube onde mais brilhou na consagrada carreira.
A cerimônia de sepultamento no Cemitério Memorial Necrópole Ecumênica foi restrita apenas para familiares e amigos próximos. No local, foi realizado um novo velório com missa de corpo presente. Ao todo, cerca de 140 pessoas participaram do ato religioso. A esposa de Pelé, Márcia Aoki, não acompanhou o cortejo pela cidade e foi a primeira a chegar no local. Os filhos do ex-jogador também não estiveram na marcha fúnebre.
O corpo do Rei do Futebol foi sepultado em um jazigo dourado construído há quatro anos no primeiro andar do Memorial. O túmulo é personalizado com uma foto do Atleta do Século em alto relevo comemorando com seu tradicional soco no ar e permanecerá em um mausoléu. O espaço tem cerca de 200m² e tem as paredes decoradas com outras imagens da carreira de Pelé. Em homenagem à trajetória do ex-jogador nos gramados do Brasil e do mundo, o piso foi coberto por um tapete de grama sintética. O pai de Pelé, João Ramos do Nascimento, o Dondinho, falecido 1996, e o irmão, Jair Arantes do Nascimento, o Zoca, morto em 2020, estão sepultados em lóculos no nono andar.