Um novo desdobramento da investigação da Polícia Federal complica ainda mais a situação do ex-ministro da Justiça Anderson Torres. Agentes da corporação encontraram na casa dele a minuta de um decreto para instaurar estado de defesa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A intenção do documento era reverter o resultado da eleição que definiu Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como presidente da República. A medida é considerada inconstitucional.
O estado de defesa está previsto no artigo 136 da Constituição e tem como objetivo "preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza".
A minuta que estava em posse de Torres imputa abuso de poder, suspeição e medidas ilegais ao TSE na condução do processo eleitoral. A Corte é presidida pelo ministro Alexandre de Moraes, a quem o ex-presidente Jair Bolsonaro hostilizou seguidamente durante seu governo. Moraes conduz inquéritos sensíveis e estratégicos, que pegam aliados do ex-chefe do Executivo e o envolvem também em denúncias.
O documento foi encontrado na terça-feira, quando a PF cumpriu um mandado de busca e apreensão na casa de Torres, em Brasília, na investigação sobre os atos golpistas na Praça dos Três Poderes. A informação foi divulgada, primeiramente, pelo jornal Folha de S. Paulo.
Além das buscas, Moraes ainda mandou prender Torres por ver "fortes indícios" de que ele foi "conivente" com a manifestação terrorista na capital federal. O ex-integrante do governo Bolsonaro está nos Estados Unidos e anunciou que vai voltar ao Brasil para se entregar à Justiça.
Torres era o secretário de Segurança Pública do Distrito Federal no dia em que golpistas depredaram os prédios dos Três Poderes. Ele, porém, não estava na cidade. Na véspera, tinha embarcado com a família para Orlando. No entanto, não estava de férias — que só começariam oficialmente no dia 9, conforme informou o interventor federal na segurança do DF, Ricardo Cappelli.
O ex-ministro de Bolsonaro foi exonerado do comando da SSP-DF na segunda-feira, pelo agora afastado governador Ibaneis Rocha (MDB).
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Gravidade
Durante seu governo, Bolsonaro fez reiterados ataques ao sistema eleitoral e colocou em dúvida a lisura das urnas eletrônicas. Por isso, o fato de a minuta sobre estado de defesa ter sido encontrada na casa de Torres é visto como grave.
"Os argumentos da minuta demonstram claramente elementos tipificadores do crime de atentado ao Estado democrático. As implicações que poderão ocorrer a partir das declarações de Torres podem impactar a situação de Jair Bolsonaro, que poderá ter sua prisão preventiva requerida pela Polícia Federal e pela PGR (Procuradoria-Geral da República)", avaliou Emanuela de Araújo Pereira, advogada criminalista, mestre em direito penal do escritório AVSN Advogados Associados. Ela não descarta a possibilidade de uma delação premiada ser alinhavada com Torres.
Raul Abramo Ariano, especialista em direito penal econômico, destacou que o crime de golpe de Estado, previsto na Constituição, "pune a tentativa da ruptura democrática, não sendo necessário o sucesso da empreitada do terrorismo doméstico para a imposição da sanção penal". "São relevantes aos fatos os delitos: atos terroristas, associação criminosa, abolição violenta do Estado democrático de direito, golpe de Estado, ameaça, perseguição, incitação ao crime e dano ao patrimônio público", listou.
Já Daniel Allan Burg — sócio do Burg Advogados Associados e pós-graduado em direito penal — afirmou que o fato de Torres ter mantido em sua residência a minuta, por si só, não consiste em ato criminoso. "A conduta praticada pelo ex-ministro poderá ser considerada um ato meramente preparatório, tendo em vista que a minuta jamais foi apresentada ou utilizada oficialmente durante seu mandato", frisou.
"Apenas haverá a responsabilização criminal do sujeito quando percorrido o iter criminis (sucessão de atos praticados pelo criminoso para atingir o fim desejado) até sua consumação ou quando o ato preparatório constituir um crime autônomo." (Com Agência Estado)
Torres se defende; Dino critica "ideia criminosa"
O ex-ministro da Justiça Anderson Torres usou as redes sociais para se defender, após a divulgação de que a Polícia Federal encontrou a minuta de um decreto para reverter a eleição presidencial. Ele disse que o documento, "muito provavelmente", estava em uma pilha para descarte. "Tudo seria levado para ser triturado oportunamente no MJSP (Ministério da Justiça e Segurança Pública). O citado documento foi apanhado quando eu não estava lá, vazado fora de contexto, ajudando a alimentar narrativas falaciosas contra mim", escreveu. "Respeito a democracia brasileira", afirmou.
Torres ressaltou, ainda, que debates eram comuns enquanto ocupava a pasta na Esplanada dos Ministérios no governo de Jair Bolsonaro. "No cargo de ministro da Justiça, nos deparamos com audiências, sugestões e propostas dos mais diversos tipos. Cabe a quem ocupa tal posição o discernimento de entender o que efetivamente contribui para o Brasil", argumentou.
De acordo com o ex-ministro, a pasta da Justiça sob seu comando foi a primeira a contribuir para a transição do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "Tenho minha consciência tranquila quanto à minha atuação como ministro", frisou Torres.
Já o atual ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, disse que, se recebesse uma minuta semelhante, prenderia a pessoa em flagrante. "Se um dia alguém me entregar um documento dessa natureza, na condição de ministro da Justiça, será preso em flagrante, porque se cuida de uma ideia criminosa contra o Estado democrático de direito", destacou, em entrevista à CNN Brasil.
Pedido de inquérito
O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), líder do governo no Congresso, informou, nas redes sociais, que pedirá ao Supremo Tribunal Federal (STF) a instauração de inquérito para apurar a tentativa de golpe de Estado por Bolsonaro e por Torres.
"Estamos peticionando ao STF pedindo a instauração de um novo inquérito sobre a tentativa de golpe de Estado, incluindo o sr. Anderson Torres e o sr. Jair Bolsonaro. Eles não passarão", escreveu Randolfe Rodrigues no Twitter.
Os imbróglios de Torres — linha do tempo
» Em julho de 2021, o então ministro da Justiça, Anderson Torres, participou da live na qual o então presidente Jair Bolsonaro atacou, sem provas, as urnas eletrônicas. Por conta disso, ele foi incluído em inquérito no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
» Em outubro de 2022, Torres foi alvo de críticas pela atuação no caso Roberto Jefferson — o ex-deputado recebeu a tiros policiais federais que foram prendê-lo por determinação do ministro Alexandre de Moraes, do STF. Por ordem de Bolsonaro, Torres estava a caminho do Rio de Janeiro para acompanhar a rendição de Jefferson, aliado do então presidente. No entanto, os planos mudaram, por temor de impacto na imagem de Bolsonaro, e o então ministro parou em Juiz de Fora (MG), de onde seguiu os desdobramentos do caso.
» Uma das medidas de Torres à frente da pasta da Justiça foi trocar o chefe da Polícia Rodoviária Federal (PRF) por Silvinei Vasques (foto), nome que viria a ter destaque nas eleições do ano passado. Vasques, que fez campanha para Bolsonaro abertamente nas redes sociais, foi acusado, em novembro, de uso indevido do cargo para favorecer politicamente o então presidente. Ele acabou dispensado no mês seguinte.
» Durante o segundo turno das eleições de outubro do ano passado, a Polícia Rodoviária Federal realizou operações em estradas que dificultaram o acesso dos eleitores às seções de votação, em especial, no Nordeste, reduto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
» Enquadrado no Inquérito 4.879, que investiga a prática de atos antidemocráticos, Torres teve a prisão decretada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por omissão nos ataques terroristas que depredaram os prédios dos Três Poderes.
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