O indulto de Natal assinado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) em 22 de dezembro pode beneficiar com o perdão da pena milhares de pessoas condenadas por uma série de crimes no Brasil, como furto simples, estelionato, receptação e porte ilegal de armas de fogo.
Essa é a avaliação de defensores públicos e juristas ouvidos pela BBC News Brasil, que se surpreenderam com um dos artigos do decreto 11.302. Trata-se do artigo 5°, que afirma que "será concedido indulto natalino às pessoas condenadas por crime cuja pena privativa de liberdade máxima em abstrato não seja superior a cinco anos."
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Ou seja, o presidente beneficiou todos os condenados à prisão por crimes não violentos cuja pena máxima prevista no Código Penal seja inferior a cinco anos de reclusão ou detenção. O decreto já está sendo classificado por alguns especialistas como o indulto mais "benéfico" assinado por um presidente da República nas últimas décadas.
Nesta segunda-feira, a BBC News Brasil questionou o governo Bolsonaro sobre alguns pontos do indulto, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
O indulto — que é o perdão da pena, ou "clemência" — significa que os condenados por esses crimes não vão precisar cumprir as punições pelas quais foram sentenciados, embora a condenação continue na ficha do réu.
Após a decisão presidencial, cada caso será analisado individualmente pelo juiz de execuções penais a partir de uma solicitação de revisão criminal feito por advogados e defensores, o que deve acontecer nos próximos meses.
Não entram nessa conta delitos sinalizados no artigo 7º do mesmo decreto, como crimes hediondos, contra administração pública, tráfico de drogas, violência contra a mulher e lavagem de dinheiro.
"O impacto na Justiça vai ser enorme porque há muitos crimes no Código Penal. Foram perdoados furto simples, estelionato, receptação de produto roubado e até o empregador condenado por não recolher o INSS do funcionário", diz Leonardo Rosa, subcoordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
Porte de armas e furto
Pessoas que foram condenadas por porte de armas de uso permitido também poderão ser beneficiadas com a clemência presidencial.
Nesse caso, o réu responde por portar sem autorização alguma arma de fogo permitida e que poderia estar no mercado (sem numeração raspada, por exemplo).
A pena para esse crime é de dois a cinco anos de prisão.
Pessoas condenadas por furto simples, cuja pena máxima chega a quatro anos, também foram contempladas pelo indulto do presidente.
Condenados por furto de comida, por exemplo, o chamado "furto famélico", poderão ser beneficiados pelo perdão.
No entanto, para o defensor público federal Gustavo de Almeida Ribeiro, que há 15 anos atua no Supremo Tribunal Federal (STF), nesse ponto o indulto terá alcance limitado, pois a Justiça considera "inúmeros fatores para qualificar um furto", característica que aumenta a pena e que acaba sendo mais comum na Justiça criminal.
"A gente tem uma ideia de que um furto qualificado é muito mais grave que um comum. Não é verdade. Por exemplo, se uma pessoa sozinha entra em um mercado e furta um alimento, é furto simples. Mas se ela estiver com mais alguém, vira furto qualificado", explica.
Pular um muro, arrombar uma porta e fazer "uso de destreza" também são qualificadores de um furto.
Penas restritivas
Segundo defensores e juristas, um dos pontos do decreto pode gerar contestação no STF: o benefício é destinado a condenados a "penas privativas de liberdade" (prisão) e não aos sentenciados a "penas restritivas de direitos", como prestação de serviços à comunidade — punição normalmente aplicada a réus primários.
Para Alessa Veiga, defensora pública de Minas Gerais, esse ponto do decreto "é desequilibrado porque beneficia reincidentes em detrimento de primários."
"O texto diz que cada crime vai ser verificado individualmente. Em tese, se eu tiver um preso com 67 crimes de furto, os 67 podem ser indultados um por um. Mas o decreto não indulta o réu primário, com penas restritivas, condenado a prestar serviços à comunidade por ter cometido um único crime não violento", explica.
Outro ponto também chamou atenção: o indulto de Bolsonaro beneficia condenados a penas de reclusão mesmo que eles não tenham cumprido nenhuma parte da punição, algo tido como inédito na história recente dos indultos natalinos.
"Ao contrário de todos os outros decretos presidenciais, esse não prevê cumprimento de pena mínima nem o cumprimento de requisito subjetivo, como bom comportamento (na prisão)", diz Veiga, que estudou os indultos presidenciais assinados a partir de 1988.
Em 2017, por exemplo, o então presidente Michel Temer (MDB) assinou um decreto natalino que perdoava condenados por delitos não violentos, mas era preciso já ter cumprido um quinto da pena para receber o benefício.
À época, o indulto foi criticado porque beneficiava presos por crimes de colarinho branco e peculato, e principalmente alguns condenados na Operação Lava-Jato. Esses crimes não estão contemplados no texto de Bolsonaro.
Então procuradora-geral da República, Raquel Dodge entrou com uma ação contra a medida, afirmando que o indulto "mais generoso" seria a causa de impunidade de crimes graves e que a Operação Lava Jato estava em risco, "assim como todo o sistema de responsabilização criminal."
A ministra Carmén Lúcia, então presidente do STF, chegou a suspender parte do indulto de Temer, mas no ano seguinte o plenário da Corte confirmou sua total validade.
Para o defensor Leonardo Rosa, "o atual indulto de Bolsonaro é mais amplo do que o de Temer e o mais benéfico nos últimos 25 anos". "Se a pessoa tiver uma condenação por tráfico e outra por furto, algo muito comum, essa do furto será perdoada. Então vai ocorrer uma diminuição do tempo da pessoa na prisão", explica.
Ele ressalta que a condenação, porém, continuará na ficha do réu e pode pesar em processos futuros. "O indulto é diferente de anistia, quando o delito é totalmente retirado do histórico da pessoa, como se ele não tivesse existido", diz.
Cada caso será analisado individualmente pelo juiz de execuções penais. Defensores ouvidos pela reportagem afirmam que uma enxurrada de pedidos de revisão criminal devem chegar ao Judiciário nos próximos meses.
Indultos a policiais
Nos três primeiros anos no poder, Bolsonaro havia beneficiado policiais e agentes de segurança pública em seus decretos natalinos, extinguindo penas de crimes culposos, por exemplo.
Neste ano, um outro ponto do indulto gerou polêmica e críticas de ativistas de Direitos Humanos.
Bolsonaro incluiu no decreto o perdão a "policiais condenados, ainda que provisoriamente, por crime praticado há mais de 30 anos e que não era considerado hediondo à época".
Esse dispositivo beneficia os policiais condenados pelo massacre do Carandiru, em outubro de 1992, quando 111 presos foram mortos durante uma invasão da Polícia Militar de São Paulo à Casa de Detenção.
O Ministério Público de SP considerou o trecho "inconstitucional", pois ele "violaria dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos, assinada em novembro de 1992". O MP enviou uma representação à Procuradoria-Geral da República, e o caso provavelmente será decidido pelo STF.
Por outro lado, Bolsonaro já afirmou ser contra o indulto para "criminosos". Em novembro de 2018, dias depois de ter sido eleito, ele criticou o benefício no Twitter: "Garanto a vocês, se houver indulto para criminosos neste ano, certamente será o último."
O indulto é uma prerrogativa do presidente da República, explica o advogado Alamiro Velludo Salvador Netto, professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP).
"Em princípio, o presidente da República tem total liberdade para conceder o indulto. Pela lei, ele só não pode contemplar crimes hediondos, tráfico de drogas, terrorismo e tortura", explica.
"O indulto é um ato político do presidente, e não de direito. Por isso, ele será avaliado politicamente. Bolsonaro pode muito bem ter revisto sua posição sobre indultos com o decreto mais benéfico neste ano", diz Netto.
Já David Teixeira de Azevedo, também professor de Direito Penal na USP, acredita que o indulto de Bolsonaro vai cumprir o papel de "desafogar" o Judiciário dos crimes contemplados.
"Para mim, o propósito foi estabelecer uma política para que permaneça encarcerado quem cometeu crimes graves. Estamos precisando disso. Não é possível termos a terceira maior população carcerária do mundo. Não é possível que 40% de presos do Brasil sejam provisórios", diz.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil tem 815 mil pessoas encarceradas, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.