O "libera geral" do armamento, instituído pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, tem data para acabar. Com a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva a expectativa é de que uma série de decretos que afrouxaram o controle das armas sejam revogados — é o chamado "revogaço das armas".
Apesar de aguardada por aliados, a ação pode trazer problemas ao novo governo. O ponto crítico deve ser o recolhimento ou não do gigantesco arsenal de armas de grosso calibre, como fuzis, que já estão em posse dos colecionadores, atiradores e caçadores, os CACs. Segundo o deputado Delegado Waldir (União-GO), integrante da bancada armamentista na Câmara, o diálogo acontece em busca de um meio termo, especialmente após a sinalização do partido União Brasil a favor do governo Lula.
"O cidadão de bem, que esteja devidamente documentado, deve ter direito a ter sua arma de fogo. É claro que foram cometidos alguns excessos em relação a quantidade de armas e quantidade de munições, em especial dos CACs", pondera.
Conforme o Correio noticiou em setembro, com os dados fornecidos pelo Exército, há mais de 430 mil armas de grosso calibre nas mãos de civis. Esse tipo de armamento deve voltar a ser restrito, e até mesmo a posse está sendo reconsiderada. A deputada Carla Zambelli (PL-SP), que protagonizou uma perseguição armada a um jornalista negro pelas ruas de São Paulo na véspera do segundo turno das eleições se opõe ao revogaço. "Um povo desarmado será escravizado e ainda roubado em sua propriedade privada", disse.
A parlamentar, que ainda não cumpriu a determinação do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em realizar a entrega da arma que apareceu portando no vídeo, optou pela cautela e concluiu a conversa dizendo que "mais que isso não posso falar". Outra fonte, próxima ao governo Bolsonaro, adianta que se houver apreensão de armamento "vamos ter problemas, vai ser ruim, vai ter resistência" — sem detalhar que tipo de objeção poderia ocorrer. O argumento trazido é o do direito à propriedade.
Propostas da transição
Nas propostas apresentadas pela equipe de transição, ficou em destaque a restrição de armas e munições mais potentes para a população civil. Este armamento será restrito às forças de segurança, e o arsenal atual deve ser recolhido por meio de um programa de entrega voluntária. Ainda é estudado o recolhimento dos equipamentos com compensação financeira.
Além da retirada de circulação do armamento, outra sugestão da equipe de transição é a limitação na compra de munições: hoje são liberados 5 mil cartuchos por ano. O limite cairia para apenas 100 por ano para cada arma. Cada cidadão poderá ter apenas quatro armas. Essa regulação deve ser aplicada nos portes de legítima defesa, que são aqueles concedidos pela Polícia Federal (PF), que deverá atuar de forma mais rígida na comprovação de efetiva necessidade, seja na concessão ou na renovação. Espera-se, ainda, o fim do chamado "porte camuflado", em que a autorização de trânsito permitia a arma municiada nos deslocamentos.
Os CACs devem voltar aos padrões anteriores ao governo Bolsonaro. Hoje o grupo tem acesso anual de até mil munições por arma de uso restrito e cinco mil para cada arma de uso permitido, e podem ter até 60 equipamentos — sendo 30 de uso restrito. Tais mudanças foram estabelecidas por decretos.
Com a flexibilização fomentada ao longo dos quatro anos de governo, o número de armas de fogo nas mãos dos CACs chegou ao patamar de 1.006.725 unidades registradas até julho deste ano — em 2018 o número correspondia a 350.683 armas no país. Os dados foram divulgados pelos institutos Igarapé e Sou da Paz, em agosto deste ano, obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Decretos
A proposta do novo governo é que os novos ministros da Justiça, Flávio Dino, e da Defesa, José Múcio, acompanhem a revogação de oito decretos e uma portaria interministerial. Apesar da conhecida posição de Lula quanto às armas, a tendência é que o processo não seja tão rápido quanto o desejado. O fim de novas concessões não resolverá as armas já em circulação, e o tema deve ainda ter alguns embates políticos e jurídicos. O cenário pode representar desafio para o próximo governo efetivar suas promessas desarmamentistas.
O inconformismo da bancada armamentista em relação ao "revogaço" tem como pilar a defesa do direito adquirido e do direito à propriedade. A alegação é refutada por especialistas que julgam que a posse de armamentos, em especial de grosso calibre, foi uma concessão do Estado, e não configura um direito adquirido. A tese é defendida pelo policial federal e pesquisador da área, Roberto Uchôa.
Para ele, a retomada das armas pode ter dois caminhos. "Uma corrente defende que, quando passar a ser proibido, as pessoas terão de entregar, com ou sem compensação financeira. Enquanto outra corrente defende que se proíba o comércio e se aumente a fiscalização em cima das armas existentes. Proibindo a venda de munição, você vai ter um fuzil que não vai servir para nada. Sequer poderá ir com ele para o clube de tiro", aponta Uchôa.
Além dessas mudanças na legislação, é previsto que se intensifique a fiscalização e que se reduzam os prazos de renovação dos registros existentes, os quais ainda devem ter encarecimento das taxas administrativas. Tudo isso deve tornar a posse dessas "armas de guerra" pouco vantajosa. Espera-se que o custo financeiro e burocrático incentive a entrega voluntária ao Estado.
Riscos
Um dos riscos em relação às medidas de desarmamento, antecipam especialistas, é que as armas legais, em vez de recolhidas pelo Estado, sejam desviadas para o mercado ilegal ou para o crime organizado. Um fuzil comprado legalmente custa em torno de R$ 10 mil. No mercado ilegal é possível que custe até sete vezes mais.
Na opinião de Uchôa, que integrou o grupo técnico de Justiça e Segurança Pública da transição, o caminho menos traumático para o novo governo seria promover uma campanha de devolução voluntária, com a indenização ao cidadão, e a transferência do armamento para as forças de segurança. "Para se trabalhar com a questão do armamento pesado, assim que proibido, deveria ser criada uma política para que a pessoa, voluntariamente, entregue essa arma mediante uma indenização", opina.
Mas essa indenização, que teria um valor fixo, ou chegaria a cerca de 30% do valor de tabela, não agrada o setor. Para o deputado Delegado Waldir, isso seria injusto com aqueles que compraram o armamento amparado nas decisões vigentes do governo Bolsonaro. "Desde que devidamente indenizadas, havendo um meio termo, não vai ter problema, mas chegar criando um revogaço, aí com certeza, vai trazer problema."
Quanto a possibilidade de impedir o trânsito de armas ou a compra de munições, Delegado Waldir acredita que a mudança irá "criar milhares de criminosos". "As pessoas não vão deixar de comprar munições, não vão deixar de transportar para treinar", aposta o parlamentar.
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