Um dos principais mecanismos de sustentação do governo Bolsonaro nos últimos dois anos, o Orçamento Secreto foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Nesta segunda (19/12), a corte formou maioria pela proibição da distribuição de recursos públicos por meio das emendas de relator-geral.
Esse tipo de emenda, identificada na execução orçamentária como RP-9, é considerada por especialistas em orçamento público pouco transparente - o que favoreceria a corrupção.
O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, criticou o mecanismo durante a campanha, mas o Partido dos Trabalhadores (PT) mudou o discurso durante o período de transição e chegou a ficar em silêncio durante uma votação da Comissão Mista de Orçamento em 30 de novembro que deliberava sobre a extinção das emendas de relator.
A leitura feita por cientistas políticos na época era de que o novo governo tentava ganhar apoio para aprovar a chamada PEC da Transição, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que permitiria o pagamento do Bolsa Família com recursos fora do teto de gastos.
A aprovação da PEC era considerada fundamental pela equipe do novo governo para que conseguisse arcar com a manutenção do valor de R$ 600 do benefício.
Ela já havia passado no Senado, mas estava travada na Câmara, justamente porque os parlamentares vinham usando a votação, marcada para esta terça (20/12), para negociar contrapartidas com o novo governo, entre elas indicações políticas para os quadros dos ministérios.
A decisão do STF limita o uso das emendas de relator, que passam a ser permitidas apenas em situações bem particulares, para correção de erros e omissões no projeto de lei orçamentária anual. Na prática, ela derruba o Orçamento Secreto - tirando poder de barganha do Congresso.
Na noite de domingo (18/12), por sua vez, uma decisão liminar do ministro Gilmar Mendes determinou que os programas de renda mínima sejam excluídos do teto de gastos, enfraquecendo, também, a posição dos parlamentares na relação com o Executivo — notadamente na negociação da PEC da Transição.
A BBC News Brasil conversou com cientistas políticos para entender como os episódios mudam o jogo de forças entre Congresso e Executivo e o que significam para a governabilidade do terceiro governo Lula.
Freio na trajetória de ganho de poder do Legislativo
As emendas parlamentares estão entre os principais mecanismos que deputados e senadores usam para enviar recursos para suas bases eleitorais.
O dinheiro é geralmente usado para fazer investimentos e pode ser direcionado, por exemplo, para obras de infraestrutura ou para compra de equipamentos.
Elas se dividem em quatro modalidades: emenda parlamentar individual, de bancada, de comissão e de relatoria. Antes de as emendas de relator ganharem protagonismo em 2020 e 2021 por meio do Orçamento Secreto, as individuais eram as que tinham maior espaço.
Até 2015, o Executivo não tinha obrigação de liberar todo o valor de emendas previsto na Lei Orçamentária Anual. Parte do total poderia ser contingenciado caso o governo decidisse segurar despesas para cumprir a meta de resultado fiscal, por exemplo.
Naquele ano, contudo, o Congresso aprovou uma emenda constitucional que tornou obrigatória a execução das emendas individuais. Em 2019, por sua vez, o Legislativo ampliou o chamado orçamento impositivo e incluiu as emendas de bancada estadual entre as de execução obrigatória.
"Essas duas reformas estão dentro de um contexto de fortalecimento do Congresso que começa em meados dos anos 2000", diz a cientista política Beatriz Rey, pesquisadora visitante do SNF Instituto Agora, na Universidade Johns Hopkins, e pesquisadora na Fundação POPVOX.
Esse processo não aparece de forma marcante no início do governo Bolsonaro, segundo a especialista, porque a gestão "passou seus dois primeiros anos sem tentar construir base de apoio. Depois, quando tenta, é quando passa a crescer o uso da RP-9", ela acrescenta, referindo-se às emendas de relator.
Nesse sentido, Carolina Botelho, cientista política do Instituto de Estudos Avançados - IEA/USP, recorda que Bolsonaro lança mão do mecanismo das emendas de relator e do Orçamento Secreto quando vê seu governo enfraquecido e teme a possibilidade de um processo de impeachment.
"O Executivo se viu obrigado a transferir ao Legislativo poder sobre o Orçamento para que pudesse se manter no poder."
Em sua avaliação, a decisão do STF desta segunda reequilibra os poderes entre Legislativo e Executivo e traz a relação entre os dois para algo mais próximo do que o país viu nos últimos 30 anos, de uma "normalidade institucional".
"Volta a colocar o Executivo como centro controlador do orçamento e centro gravitacional da política", analisa.
"O governo anterior dependeu dessa submissão (ao Congresso) para sobreviver, agora o jogo muda um pouco", completa Botelho.
Com as decisões do STF, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), perde parte do capital político que conseguiu concentrar nos últimos dois anos, mas não necessariamente fica sem poder, avalia Beatriz Rey.
"Lira conta com apoio interno grande, é bem cotado - foi através dele que os deputados do Centrão tiveram acesso a todos esses recursos [do Orçamento Secreto]."
Para ela, as movimentações no decorrer desta semana vão apontar de forma mais clara em que posição fica o atual presidente da Câmara e o reposicionamento das peças no jogo de forças em Brasília.
O cientista político Sérgio Praça, professor da FGV, faz leitura parecida.
"Lira já provou que consegue mobilizar forças dentro da Câmara", pontua.
"Ele e o Congresso sabem que se aproveitaram de um presidente muito fraco em um momento muito fraco. Agora, o jogo começa de novo."
Segundo o colunista do jornal O Globo Lauro Jardim, Lira foi surpreendido pelas duas decisões do Supremo e convocou reunião com alguns líderes de partido nesta segunda para discutir o cenário.
Indicações políticas e construção da base de apoio
Daqui para frente, a questão que se coloca é como o novo governo Lula tentará construir uma base de apoio no Congresso e garantir governabilidade.
Sem as emendas de relator e com as emendas individuais e de bancada com execução impositiva, o Executivo terá de usar outras ferramentas para negociar com o Congresso a aprovação de medidas e reformas.
Um desses mecanismos, diz Praça, podem ser as indicações para os ministérios e a distribuição de cargos de confiança.
A poucos dias da posse, só uma parte do primeiro escalão do governo foi anunciada: os titulares da Fazenda (Fernando Haddad), da Casa Civil (Rui Costa), da Defesa (José Múcio), da Justiça (Flávio Dino), das Relações Exteriores (Mauro Vieira) e da Cultura (Margareth Menezes). Pastas-chave como Saúde e Planejamento seguem sem ministro.
Assim, na negociação por apoio, Lula pode escolher nomes que agradem aliados em vez de nomes técnicos, por exemplo. Reportagens publicadas na semana passada sugeriam que Lira estaria pressionando para que seu partido, o PP, indicasse o novo titular da Saúde. Renan Filho (MDB-AL), por sua vez, estaria sendo sondado para assumir o Planejamento.
O cientista político lembra ainda que a recente mudança na Lei das Estatais, que reduziu de três anos para 30 dias o período de quarentena para que políticos e dirigentes partidários pudessem ocupar cargos em estatais e agências reguladoras, abriu espaço para indicações políticas nessas organizações.
"Essa semana será fundamental para entender como será a construção da base legislativa", ressalta Beatriz Rey.
Em sua avaliação, "seria interessante para o governo eleito tomar rédea da situação e apresentar uma solução diante do vácuo que foi criado" com a derrubada do Orçamento Secreto.
Uma alternativa "transparente, que seja passível de controle social" e que permita ao governo construir uma base de apoio estável, "para que não tenha que ficar negociando a cada votação".
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