Entrevista

'O Brasil precisa de limites', afirma ex-presidente Michel Temer

Com a experiência de quem já ocupou o Palácio do Planalto, adverte que a responsabilidade fiscal é o selo que credencia o país para o aporte de investimentos. E pede que tanto Bolsonaro quanto Lula façam gestos pela pacificação da sociedade

Nova York — Para o ex-presidente Michel Temer, o teto de gastos deve ser rompido apenas em uma hipótese: defender os mais vulneráveis. Ele considera a responsabilidade fiscal a principal credencial para que o Brasil receba os investimentos que pleiteia junto à comunidade internacional e que foi este o alerta ao presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) dado pela carta aberta dos economistas Armínio Fraga, Edmar Bacha e Pedro Malan. “Se houver alguma readaptação do teto, mantendo-o tal como está, mas com algumas possibilidades econômicas para atender os vulneráveis, acho que vale a pena. Se for para atender outros setores, não. Se abrir a porta, primeiro é o Bolsa Família, depois pode ser a infraestrutura, depois os benefícios, o setor A, B ou C. Aí, não tem mais limite”, adverte. Apesar de ser frequentemente hostilizado pelos petistas — que o consideram um artífice do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff —, Temer adverte Lula a não interferir na disputa para a presidência da Câmara — para a qual já há um candidato declarado, o atual comandante da Casa, deputado Arthur Lira (PP-AL), que buscará a reeleição. “Acho que o Executivo deve tomar muito cuidado nessa relação com o Congresso Nacional, especialmente, no momento da eleição do presidente da Câmara”, sugere. Temer considera, ainda, que as manifestações antidemocráticas por causa da vitória de Lula tendem a se dissipar e que a democracia brasileira não corre qualquer risco de ruptura.

Além disso, defende a ação do ministro Alexandre de Moraes contra aqueles que ferem a Constituição. A seguir, os principais pontos da entrevista. 

Começou a tomar forma a preocupação de que o futuro governo pode não ter compromisso com a responsabilidade fiscal. O mercado se agitou nos últimos dias e até mesmo uma carta aberta de três renomados economistas — Armínio Fraga, Edmar Bacha e Pedro Malan — alertou Lula sobre a necessidade de haver firmeza com a saúde das contas públicas. Como avalia essa situação?

É preciso ter limite de gastos e limite significa teto. O que pode haver é uma aclimatação, uma adaptação do teto estabelecido há sete anos. Há uma previsão, na emenda constitucional do teto, que depois de 10 anos, o presidente da República pode, por projeto de lei complementar, sugerir alguma coisa de modificação do teto. É possível até que haja uma adaptação agora. Eliminá-lo será gerar uma descrença fiscal que é muito grave, interna e externamente. Tenho viajado muito ao exterior e vejo que as pessoas querem investir no país, mas querem credibilidade fiscal. Então, se for para modificar
para atender os mais vulneráveis, acho fundamental (alterar o teto). O país tem a realidade da miséria. Se houver alguma readaptação do teto, mantendo-o tal como está, mas com algumas possibilidades econômicas para atender os vulneráveis, acho que vale a pena. Se for para atender outros setores, não. Se abrir a porta, primeiro é o Bolsa Família, depois pode ser a infraestrutura, depois os benefícios, o setor A, B ou C. Aí, não tem mais limite e o Brasil precisa de limites. 

O senhor defendeu que haja um diálogo entre os presidentes Bolsonaro e Lula. Há clima para isso diante do que vemos no país e até mesmo fora dele?

Talvez o que pudesse ser utilizado seriam palavras de moderação e tranquilidade para o país, de ambas as partes. Não apenas do presidente atual como também do presidente eleito. O presidente eleito, vitorioso que é, deve ter um certo gesto de grandeza, ficar acima dos acontecimentos e, portanto, praticar o que muitas vezes diz. Ele fala em pacificar, esta é palavra, mas na ação muitas vezes usa palavras agressivas em relação ao atual governo, e isso não colabora. Eriça, na verdade, os movimentos contrários à sua posse. Não chego ao ponto do diálogo, porque o diálogo se faz por meio da transição e está sendo feita. A chefia natural da transição é sempre da Casa Civil, com aqueles indicados pelo candidato eleito. Seria muito desejável, embora eu ache neste momento bastante difícil, se num dado momento os presidentes, o atual e o eleito, dialogassem.

Vê algum risco para a democracia, diante das manifestações agressivas, inclusive as que aconteceram aqui?

Acho que as instituições estão muito solidificadas. A grande maioria do povo brasileiro tem apreço pela instituição democrática. Ninguém quer um regime forte, centralizador, autoritário. As pessoas querem democracia. É preciso esperar passar essa onda derivada das eleições, em que há um certo inconformismo. O Brasil vai prosseguir com muita tranquilidade. 

Tinha visto relações políticas tão esgarçadas em tantos anos de vida política?

Houve momentos agudos. Em 1964… aliás, a contar de 1961, quando para o vice-presidente (João Goulart) assumir foi preciso um jeitinho brasileiro. Criaram aquele parlamentarismo de ocasião. Foi um momento de muita tensão. Logo em seguida, com 64, evidentemente, houve muita tensão no país, que se prolongou. Não é a primeira vez que se tem tensão. O que podemos dizer é que o Brasil é capaz de superar as dificuldades políticas, econômicas e sociais pelas quais passou desde a primeira república.

Acha que há algum risco de 1964 se repetir?

Não creio. Pelo menos, a minha convivência com os militares, fosse como presidente da Câmara, vice-presidente ou presidente da República, revela que eles são cumpridores da Constituição Federal. Em nenhum momento verifiquei, nem nas linhas nem nas entrelinhas, desejo no sentido de ocupar espaço no governo, no sentido de “nós vamos conduzir o país”. Não creio que as forças militares queiram isso. E por quê? Juridicamente, porque cumprem a Constituição e, politicamente, porque não querem repetir 1964.

Como avalia as notas que os militares divulgaram sobre as urnas eletrônicas e o processo eleitoral? 

O que ocorreu foi o seguinte. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) convidou vários setores: Forças Armadas, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Tribunal de Contas da União (TCU) e outros. Foi um convite e não uma imposição das Forças Armadas. E, até agora, essas instituições todas, militares inclusive, não disseram claramente se houve fraude eleitoral. Pelo contrário: de alguma maneira ressaltaram a lisura das eleições. Acho que esta é uma indicação muito significativa do desejo das Forças Armadas em relação ao momento atual.

Os bolsonaristas acusam o ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, de ferir a Constituição ao mandar prender aliados do presidente. Houve quem considerasse, inclusive, que praticou censura várias vezes. Acha que o Judiciário tem que continuar com aquilo que eles classificam como “ativismo”?

Tudo isso foi fruto do clima que se instalou no país. O ministro cumpriu a lei, a Constituição federal e a infra constitucional. Não fez mais do que isso. Agora, o clima de conturbação nacional, que não começou ontem — na verdade começou muito lá atrás —, em que brasileiros ficaram contra brasileiros e instituições contra instituições, exacerbou a atuação do ministro. Daí porque se faz a acusação. Segundo ponto: sempre critico muito esse conceito do “ativismo judicial”. Costumo dizer que o Judiciário é um poder inerte — só age se provocado. E quem mais provoca, especialmente o Supremo Tribunal Federal (STF), é a classe política. Quando chega lá uma postulação qualquer, o Supremo tem que decidir.

Como vê um governo de centro-esquerda diante de um Congresso mais conservador na próxima legislatura?

Em primeiro lugar, uma posição muito pessoal: não considero mais essa questão de direita, esquerda, centro-direita, centro-esquerda, porque sei que o que o povo quer é resultado. Se o resultado vem do que se chama esquerda, centro-direita, direita, e for positivo, não importa. Sempre dou um exemplo muito singelo: pergunte a quem passa fome se é esquerda ou direita. Ele vai dizer: “Eu quero um pão”. Pergunte para quem não tem emprego se é esquerda ou direita. Vai dizer que quer trabalho. Quem vai ao supermercado quer preços mais baixos. O que se quer é resultado. O Congresso é o órgão legislativo que fala em nome do povo, que quis eleger aquele que você chama de conservador. Penso que o Congresso, seja agora, seja no passado, sempre se conduziu apoiando os bons resultados para o povo. Dou o exemplo do meu governo: quando precisamos fixar o teto para os gastos públicos, que é uma autolimitação para o presidente e para os congressistas, o Congresso deu apoio. Quando fizemos a reforma trabalhista e a da Previdência, verdadeiros vespeiros, tivemos tanto diálogo que o Congresso acabou aprovando. O setor educacional, que é sempre polêmico, quando fizemos a reforma do ensino médio, o Congresso deu todo o apoio sem nenhuma reação popular. Creio que o Congresso está pronto para produzir resultados positivos para o povo. Vai depender muito do diálogo que o Poder Executivo tiver com o Legislativo.

Por falar em diálogo, a presidente Dilma, lá atrás, não apoiou o então deputado Eduardo Cunha para presidente da Câmara. Houve um desarranjo político que desaguou no impeachment. Teme algum problema caso Lula não apoie Arthur Lira?

Acho que o Executivo deve tomar muito cuidado nessa relação com o Congresso. Fui três vezes presidente da Câmara, duas no governo Fernando Henrique Cardoso e uma vez no governo Lula. Tinha, no governo FHC, a simpatia do presidente, mas não tinha a ação do presidente, o que é uma coisa diferente. Portanto, não houve interferência. De igual maneira, no tempo do Lula, não sei se tinha a simpatia dele, mas ele não interferiu na minha eleição para comandar a Câmara. É uma recomendação que tomo a liberdade de fazer: deixe o Legislativo decidir por conta própria. E, daí, é diálogo. É preciso saber, também, que a Constituição — vou dizer uma obviedade — determina a harmonia entre os Poderes. Portanto, quando forem eleitos os presidentes da Câmara e do Senado, a obrigação dos poderes Legislativo e Executivo é trabalhar harmoniosamente em função do interesse do povo.

Crê que pode haver desarmonia?

Espero que não. Sempre digo que quando há desarmonia, há uma inconstitucionalidade, porque há agressão à vontade popular. A vontade do povo está prevista nesse texto chamado Constituição. Quando o povo elegeu o congresso constituinte, disse: “Vocês vão lá para expressar a minha vontade”.

Em 2002, houve uma negociação com o MDB, com o então coordenador da transição pelo PT, o ex-ministro José Dirceu. Mas, na última hora, depois de negociado o acordo, Lula disse não. Dessa vez, acha que o petista pode prescindir de apoio de algum partido? Há paralelo entre 2002 e agora?

Deve fazer um governo em benefício de todo o povo brasileiro — e quando digo todo o povo brasileiro, me refiro tanto às classes mais aquinhoadas quanto às menos. Por isso, que sempre se fala numa equação uniforme entre a responsabilidade fiscal e a social. Acho que isso é o que deve fazer. Se ele se pautar pelo exemplo de 2002, quando o Dirceu esteve no partido, acertou comigo, convidou o MDB para integrar o governo, mas depois Lula resolveu não fazer esse acordo — Dirceu delicadamente me telefonou pedindo desculpas —, não será improvável que tente juntar o maior número de forças políticas para governar.

Desta vez, Lula chamou o MDB para fazer parte dessa imensa transição, com quase 300 pessoas. Isso funcionará?

O número não importa, porque em toda a comissão muito grande quem trabalha são cinco ou seis — os outros fazem figuração. Precisamos ser muito objetivos, verificar quem foi designado para representar os dois lados. Toda a equipe de transição tem 30, 40 pessoas e são quatro, cinco que trabalham.

O senhor apoia a ida da senadora Simone Tebet (MDB-MS) para o futuro governo?

Tem gente no MDB preferindo que não vá. Ela fez uma belíssima campanha, ganhou projeção nacional. Ir para o Ministério, queiramos ou não, é uma função subordinada. Ela ganhou uma projeção significativa. Por isso, muitos no MDB dizem que é melhor se guardar para um futuro próximo.

Acha que será possível fechar um projeto e uma base?

Ouvi deputados dizendo que Lula terá maioria para fechar o projeto que “nós, parlamentares, quisermos”. Só haverá construção com diálogo. Lembro que, no meu governo, havia coisas difíceis. Modernização trabalhista não era fácil e conseguimos com diálogo. Quando se poderia imaginar que faria uma reformatação administrativa sem greve depois? Não houve greve. Tudo depende da capacidade de diálogo e de as pessoas entenderem que todos têm que trabalhar em benefício do país. Qualquer radicalismo agora é contrário aos interesses do povo.

O ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles disse que Lula precisa sair do “modo campanha”. Acha que o presidente eleito está errando?

Não quero fazer comentários sobre o presidente. Nesse momento o Brasil precisa de tranquilidade. Essas agressões (bolsonaristas perseguiram e xingaram ministros do STF em Nova York) derivam muito da agressividade dos principais líderes do país. Se eles dão o exemplo, se transmite imediatamente. Lembro da figura de Juscelino Kubitschek, um estadista. Houve insurreições em Aragarças e Jacareacanga, ele deixou passar aquilo e abafou. Um mês depois, disse: “Vou anistiar todo mundo porque quero a pacificação do país”. É assim que as coisas devem acontecer. Por que é que, agora, estamos nessa disputa quase fratricida, que viola a Constituição, que não permite esse tipo de conflito que assistimos? Se cumprir a Constituição, você tem paz, tem tranquilidade ao mesmo tempo em que tem embate de ideias, de conceitos e de programas. A oposição também ajuda a governar criticando, indicando rumos.

Muitos dizem que Lula gostaria de conversar com o senhor, mas uma parte do PT ainda o chama de golpista.

Lamento essa agressividade, isso só divide. A pessoa que prega a pacificação, e chama o ex-presidente de golpista, não quer paz. Não estive com o presidente e não tenho nenhum encontro marcado. Se procurar para adotar a linha que estou propondo, muito bem.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, tem uma proposta de semipresidencialismo. Acha que é hora de tratar disso?

O semipresidencialismo seria o ideal. Insisto neste tema há tempo precisamente em função desses conflitos. À parte dos dois impeachments (Collor e Dilma), veja o trauma que está causando esta eleição presidencial. É a solução e, evidentemente, não é para agora. Seria para 2026, quem sabe 2030, que é uma tese encampada pelo Lira, que constituiu uma comissão de deputados, que se serviu de uma comissão de juristas. Acho que seria o ideal para o país. Mas espero que não fique só no sonho.

*A repórter viajou a convite da organização do Lide Brasil Conference

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