O PT e o PSB anunciaram, ontem, o apoio à reeleição do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), num gesto que consolida a aliança do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva com o Centrão para aprovar a PEC da Transição e, com ela, os recursos para viabilizar o Auxílio Brasil de R$ 600, que volta a se chamar Bolsa Família, e mais R$ 150 por criança de até 6 anos.
A PEC começou a tramitar no Senado, a partir de um projeto que garante esses recursos por quatro anos, mas dificilmente será aprovada por esse prazo. A tendência é de que PEC coincida com o novo mandato de Lira, na melhor das hipóteses, mas muitos parlamentares querem que os recursos sejam discutidos a cada aprovação do Orçamento da União.
O mais positivo desse processo é que a "grande política" está de volta à relação entre o Executivo e o Congresso, embora o eixo de atuação do Centrão continue sendo a manutenção do "orçamento secreto" e exista mesmo uma tentativa de legitimá-lo institucionalmente como um grande jabuti nessa emenda constitucional.
Isso, em tese, evitaria uma decisão contrária do Supremo Tribunal Federal (STF), a partir de um posicionamento da ministra Rosa Weber, que preside a Corte. Mesmo assim, como a Constituição tem a transparência como um de seus fundamentos, seria uma emenda constitucional muito discutível. Ou seja, o jabuti pode virar uma girafa.
O "orçamento secreto" é o suprassumo da "pequena política" que pautou a relação entre o presidente Jair Bolsonaro e o Congresso. Em grande parte, é responsável pela reprodução dos mandatos da maioria dos parlamentares reeleitos, com honrosas exceções. Como também foi o eixo da relação entre o presidente da Câmara e os líderes de bancada, a mediocridade e o fisiologismo tomaram conta das relações entre os partidos. Nesse ambiente, pontificaram os bolsonaristas mais radicais, a maioria dos quais se reelegeu e conquistou novos aliados, principalmente os do PL, partido de Bolsonaro, que fez a maior bancada na Câmara.
Mesmo parlamentares que se destacaram pela competência foram arrastados nesse processo para posicionamentos incoerentes com a sua própria trajetória de vida. Esse transformismo se refletiu na redução das bancadas dos partidos da chamada "terceira via", que não conseguiram romper a polarização e viram seus melhores quadros não se reelegerem, com exceção daqueles que aderiram a um dos lados da polarização. E onde entra a grande política?
Entra na medida exata do desalinhamento entre a ampla coalizão de governo em formação pelo presidente Lula e a maioria conservadora do Congresso, que exigirá a realização de grandes debates e negociações à luz do dia para que a sociedade possa influenciar as decisões do Parlamento. Será uma mudança da água para o vinho.
De certa forma, a discussão sobre a PEC da Transição já é uma demonstração de que a sociedade está atenta e a grande política começa dar o ar da graça no noticiário dos jornais. Além disso, a formação de três grandes blocos — o de centro-esquerda, o de centro e o de direita — fará com o a grande política se imponha nas negociações.
Duas políticas
Estão em jogo as grandes questões da atualidade na vida nacional. Por exemplo, a relação entre a questão fiscal e as desigualdades, que exige uma política econômica calibrada para combater a miséria absoluta e, ao mesmo tempo, domar a inflação. O problema do meio-ambiente e da necessidade de um novo modelo econômico, verde e sustentável. O mesmo ocorre em relação às Forças Armadas, que sofrem um inédito assédio bolsonarista para que não aceitem o resultado da eleição e impeçam a posse do presidente Lula.
A volta do controle civil sobre o Ministério da Defesa e a preservação do profissionalismo, da hierarquia e da disciplina na caserna são outras questões de Estado. O mesmo raciocínio vale para a infraestrutura, a segurança pública, a saúde, a educação e a cultura.
O marxista italiano Antonio Gramsci separa a "grande política" da "pequena política", que seria aquela do dia a dia, da intriga, das disputas parlamentares, dos corredores e dos bastidores; enquanto a grande política estaria ligada à fundação e à conservação do Estado, à manutenção de determinadas estruturas econômico-sociais ou sua destruição.
A pequena política, porém, também é associada à crítica de Friedrich Nietzsche ao nacionalismo, ao parlamentarismo e ao antissemitismo e contraposta à grande política. Para o filósofo, estaria relacionada ao enfraquecimento da vontade, do projeto milenar de domesticação das forças humanas advindo da filosofia grega e do cristianismo.
Nessa abordagem filosófica, que foi utilizada por pensadores reacionários, a pequena política produziria um tipo humano baseado nos instintos gregários (medo, conforto, segurança e felicidade), a fim de se conservar. Para isso, sua racionalidade política mobiliza as forças humanas para que elas se concentrem em assuntos, ideais e objetivos supérfluos e se impossibilitem de superar os limites existenciais estabelecidos.
As instituições (Estado, família, igreja, estabelecimentos de ensino e sindicatos) forjariam e educariam cotidianamente seus indivíduos para que eles voltem sua atenção para elas mesmas e, desse modo, se esgotem fisiologicamente, consumindo e esbanjando suas forças por meio da mediocridade. Qualquer semelhança com o projeto do governo Bolsonaro não é simples coincidência.
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