O cientista político e escritor Giuliano Da Empoli, dirigente do think tank Volta, com sede em Milão, deparou-se com uma curiosa personagem quando pesquisava os métodos de Steven Bannon, Dominic Cummings e Gianroberto Casaleggio, entre outros “engenheiros do caos”, que, na esteira dos algoritmos e megaplataformas digitais, alavancaram a realidade alternativa de fake news e teorias conspiratórias em que navegam as lideranças da nova onda populista transnacional. Assíduo no círculo mais próximo a Vladimir Putin, aquele conselheiro político foi o mais longevo, diferentemente de empresários, oligarcas e agentes secretos, que se alternavam em permanente órbita na corte ao poder.
Da Empoli o chama de “o mago do Kremlin”, apelido que dá título ao romance, baseado em pessoas e em fatos reais. Se no livro, sucesso editorial e um dos quatro finalistas do Goncourt 2022, o mago é encarnado pelo ficcional Vadim Baranov, este se inspira e personofica um nome verdadeiro: Vladislav Surkov.
Romance de estreia de Giuliano Da Empoli, “O mago do Kremlin” está sendo lançado no Brasil pela Editora Vestígio (Grupo Autêntica), com tradução do original em francês de Julia da Rosa Simões. A nova obra dialoga com a anterior, o ensaio consagrado “Os engenheiros do caos” (Editora Vestígio, 2019), best-seller traduzido para 12 idiomas, em sua quinta edição no Brasil, com 50 mil exemplares vendidos.
É por meio do monólogo do personagem central, Vadim Baranov, ao narrador do romance, que estava em visita à Rússia, que mais de um século de história russa se desfia, da Revolução Bolchevique à anexação da Crimeia, esta em desdobramento à Revolução Laranja na Ucrânia, na avaliação de Putin, potencializada pelas plataformas digitais. Neto de um aristocrata erudito, em princípio diretor e produtor de televisão, Baranov, o “mago” da comunicação de Putin, explica a sua visão do poder, calcada no uso de dados e das mídias digitais, que antevê em desdobramento à nova realidade tecnofeudal.
“Na verdade, a tecnologia militar que nos cerca criou condições para uma mobilização total. A partir de agora, onde quer que estejamos, podemos ser identificados, trazidos à ordem, neutralizados se necessário. O indivíduo solitário, o livre-arbítrio e a democracia se tornaram obsoletos: a multiplicação dos dados transformou a humanidade num único sistema nervoso, um mecanismo feito de configurações padronizadas, como uma nuvem de pássaros ou um cardume de peixes”, afirma Baranov, ao considerar que as tecnologias de controle, como a internet e o GPS, têm origem militar e foram concebidas para sujeitar, não para libertar.
Baranov, assim como o avô, leitor de Eugene Zamiátin (1884-1937), genial autor russo de “Nós”, romance distópico que inspiraria décadas depois Aldous Huxley (“Admirável mundo novo”) e George Orwell (“1984”) – antevê, de certa forma, a nova comunicação disruptiva proposta pelos “engenheiros do caos”, os novos conselheiros políticos do populismo da extrema-direita, que orientados por algoritmos tecem fake news e teorias diversas, para apartar sociedades como estratégia de poder. Mas, como explica o autor Da Empoli – que foi conselheiro político de Matteo Renzi, ex-primeiro-ministro italiano –, ao se deparar com Vladislav Surkov optou por não incluí-lo no ensaio “Os engenheiros do caos”. Optou por guardá-lo para um romance. Não como forma de se afastar da realidade, mas, antes, para se aproximar dela, explica o autor. Abaixo, uma entrevista com o escritor italiano.
Quem são os “engenheiros do caos”?
O livro “Os engenheiros do caos” conta a história de Steve Bannon, o maestro do populismo americano, que pretende construir uma infraestrutura global para o movimento populista mundial; de Dominic Cummings, diretor da campanha do Brexit; de Gianroberto Casaleggio, italiano do Movimento 5 Estrelas, inteiramente fundado na coleta de dados de eleitores sobre suas demandas, independentemente de qualquer base ideológica; de Arthur Finkelstein, conselheiro de Viktor Orban, porta-estandarte da Europa reacionária; e do blogueiro inglês Milo Yiannopoulos, graças a quem a transgressão mudou de campo: quebrar os códigos das esquerdas e do politicamente correto – que, nos anos 1960, era a estratégia para atacar os tabus de uma sociedade conservadora – tornou-se a regra número um de sua comunicação.
O que torna esses personagens interessantes é o fato de terem captado antes dos outros os sinais da mudança nas comunicações proporcionada pela internet e plataformas digitais. Mas, e sobretudo ainda mais importante, é compreender como essas personagens se aproveitaram deste momento para produzir a grande onda populista, que os fez avançar da margem para o centro do sistema por meio do uso de algoritmos para explorar medos, inseguranças de eleitores pela difusão de fake news e teorias da conspiração para influenciar eleições.
Em que condições sociais essa onda populista se produz?
O novo populismo se alimenta de dois ingredientes. O primeiro é a cólera de alguns segmentos da população, sustentada sobre causas sociais e econômicas reais. Não se pode fechar os olhos para o fato de que, um pouco em todos os lugares, os eleitores demonstram medo, insegurança por acreditar ter perdido o controle de seus destinos, em decorrência de forças que supõem ameaçar o seu bem-estar – como as migrações na Europa, o livre-comércio. Os ‘engenheiros do caos’ entenderam que esse mal-estar poderia se transformar em um recurso político e utilizaram a comunicação para potencializar essa insegurança e dirigi-la para seus próprios fins.
Em termos de programa, a resposta que os nacional-populistas trazem na Europa não é nova: fechar as fronteiras, abolir tratados de livre-comércio, proteger do mundo exterior pela construção de um muro, metafórico ou real. Procurei no meu livro me aprofundar nesse segundo ingrediente do novo populismo: a máquina de comunicação superpotente, concebida em sua origem para fins comerciais, mas que foi transformada em instrumento de todos aqueles que têm por objetivo multiplicar o caos.
Como as megaplataformas digitais são utilizadas para produzir o caos e alavancar as lideranças populistas da extrema-direita no mundo?
Por meio de diversos mecanismos possíveis nas novas plataformas digitais de mídia, os discursos e argumentos extremos que antes eram marginais na esfera pública de muitos países se tornam centrais no debate público. Há o exemplo do Brasil, dos Estados Unidos, da Itália e muitos países europeus. Então, se formos realmente sintetizar, é isso. Por trás das aparências extremadas do novo populismo está o trabalho de dezenas de spin doctors (consultores políticos), ideólogos especializados em big data, sem os quais os líderes do novo populismo jamais teriam chegado ao poder.
Eu os chamo de ‘engenheiros do caos’ porque, para esses novos doutores da política, o jogo não consiste mais em unir as pessoas em torno de um denominador comum, mas, ao contrário, em inflamar as paixões do maior número possível de grupelhos para, em seguida, adicioná-los, mesmo à revelia. Para conquistar a maioria eles não vão convergir para o centro, mas vão se unir aos extremos. Sem qualquer preocupação com a coerência do coletivo, cultivam a cólera de cada um. Como as redes sociais, a nova propaganda se alimenta sobretudo de emoções negativas, pois são essas que garantem maior engajamento, por isso o sucesso das fake news e das teorias da conspiração.
Por que a extrema-direita no mundo foi mais rápida em se apropriar desses mecanismos das novas plataformas digitais do que os políticos de centro e de centro-esquerda?
Por duas razões. A primeira é porque, estando à periferia do debate público, da grande imprensa e das plataformas tradicionais de mídia, a extrema-direita investiu antes e mais intensamente em encontrar um lugar nas novas mídias digitais. Então, de certa forma, inovou no uso e aplicação da comunicação por meio dessas plataformas. E também há uma razão de conteúdo. Infelizmente, as mensagens da extrema-direita, que são incendiárias, frequentemente violentas, funcionam bem na lógica dos algoritmos. Correspondem exatamente ao tipo de conteúdo que viraliza nas novas mídias. Não são algoritmos que favorecem o debate político; mas os algoritmos que primam pelo conteúdo extremista, mais transgressivo, mais violento. Então, acredito que há os dois aspectos: o político e o da tecnologia, relativo ao funcionamento das novas plataformas de mídia.
Embora estejam sustentados em big data para orientar ações, os discursos e construir a verdade alternativa dos universos paralelos, parece-lhe uma estratégia dos líderes populistas transparecer certa autenticidade?
Sim, diante da seriedade do poder, da arrogância dos gestos que emanam de quem o exerce, o bufão transgressor à la Trump, o escárnio, funciona como uma ferramenta eficiente para diluir hierarquias. Observe o carnaval: não há lugar para o espectador, todos participam juntos da celebração desvairada do mundo ao avesso, e nenhum insulto ou piada é vulgar, se contribui para a demolição da ordem dominante. O carnaval produz, naquele que dele participa, uma intensa sensação de plenitude e de renascimento, o sentimento de pertencer a um corpo coletivo, que se renova. De espectador, cada um se torna ator, sem importar grau de instrução.
O anonimato proporcionado pela internet tem o mesmo efeito da desinibição que, tempos atrás, nascia no momento de colocar a fantasia e a máscara do carnaval. Os trolls são os novos polichinelos, que lançam gasolina no fogo do carnaval populista. Nesse clima, os checadores de fatos são o espírito de porco. Aos olhos do populista, o progressista é um pedante. Mas por detrás do aparente absurdo das fake news e das teorias conspiratórias, há uma lógica muito sólida: para os líderes populistas, as verdades alternativas não são um simples instrumento de propaganda, mas constituem um vetor de coesão. O blogueiro da direita alternativa americana Mencius Modbug assim escreveu: “o absurdo é uma ferramenta organizacional mais eficaz que a verdade”. Dessa forma, acreditar no absurdo é uma real demonstração de lealdade, o que produz um uniforme e um exército.
No Brasil, após as eleições, parte dos apoiadores de Jair Bolsonaro celebrou uma sequência de fake news: a “vitória” de Bolsonaro nas urnas, a “prisão” do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, o anúncio de uma data aleatória, sempre adiada, para uma intervenção das Forças Armadas. Como as democracias poderão conviver com os fatos alternativos?
Há alguns anos, nos Estados Unidos, havia o entendimento de que você tem direito às suas próprias opiniões, mas não aos próprios fatos. Mas, hoje, isso não é mais verdade. Atualmente, as pessoas têm as próprias opiniões e os próprios fatos. Isso porque cada um vive em uma bolha informativa – e essas bolhas são muito diferentes entre si. Neste novo mundo, é muito raro ter acesso aos conteúdos que não sejam feitos sob medida. Os algoritmos da Apple, do Facebook ou do próprio Google fazem com que cada um de nós receba informações que nos interessam. Como recebemos a informação individualizada, nunca mais voltaremos à época dos jornais televisivos, em que até havia elementos de manipulação, mas havia uma realidade compartilhada.
De certa maneira, a democracia liberal é uma construção newtoniana, baseada na separação dos poderes e na ideia de que é possível, para os governantes e governados, tomar decisões racionais sobre uma realidade mais ou menos objetiva, compartilhada. Na política newtoniana, a realidade objetiva podia ser observada, estava adaptada a um mundo mais ou menos racional, controlável, no qual a uma ação correspondia uma reação e onde os eleitores podiam ser considerados como os atómos dotados de pertencimentos ideológicos, de classe ou de território. Mas agora passamos de uma política newtoniana para uma política quântica. Na política quântica, cada um tem a sua própria realidade, a realidade objetiva não existe, e você modifica essa realidade de acordo com o seu olhar.
Na política quântica, a versão do mundo que cada um de nós vê é literalmente invisível aos olhos de outros, o que afasta cada vez mais a possibilidade de um entedimento coletivo. Na sabedoria popular, para se entender seria necessário colocar-se no lugar do outro, mas na realidade dos algoritmos essa operação se tornou impossível: cada um marcha dentro de sua própria bolha, no interior da qual certas vozes se fazem ouvir mais do que outras e alguns fatos existem mais do que os outros.
Como as democracias no mundo devem enfrentar o desafio do caos informacional a serviço da ascensão da extrema-direita populista?
Há coisas que podemos fazer e coisas que não podemos fazer. Não temos como resolver o problema da individualização da informação que circula e chega a cada um de nós. Mas acredito que podemos fazer algo pela responsabilidade das novas plataformas de mídia, como manter a transparência, podemos regulamentar e podemos impor formas de responsabilidade e regras. Podemos fazer isso porque a União Europeia tenta fazer isso lentamente, está atrasada em relação aos fenômenos, mas acredito que a regulamentação vai ocorrer. Poderemos então limitar e mesmo intervir sobre a engenharia das plataformas, para que não impulsione de forma tão sistemática o conteúdo mais perigoso.
Mas também vai ser necessário gerir as nossas democracias dentro de um sistema que passou da política newtoniana para a política quântica. Vai ser necessário enfrentar isto: não são nossas opiniões sobre os fatos que nos dividem, mas os fatos em si. Então, não é simples. Não tenho a resposta. Mas, sob o mesmo espírito do grande reformador John Keynes – quando passadas a Primeira Guerra e a Revolução Soviética anunciou aos jovens liberais que seria necessário inventar uma nova sabedoria para uma nova época –, todos os democratas precisarão se apropriar para reinventar as formas e os conteúdos da política dos próximos anos se quiserem ser capazes de defender seus valores e suas ideias na era da política quântica.
Como analisa a vitória da extrema-direita na Itália? Em sua avaliação, a União Europeia está em risco?
Sim e não. A primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni (líder do partido pós-fascista Fratelli d’Italia – Irmãos da Itália), encarna uma nova forma da extrema-direita europeia porque a versão precedente – a de Salvini na Itália ou de Marine Le Pen, em sua campanha eleitoral de 2017 contra Macron – eram forças nacionalistas que desejavam sair da União Europeia, muito próximas da Rússia e de Putin. Hoje a situação mudou porque Meloni não quer mais sair da União Europeia. E o mesmo se passa com Le Pen. Não querem mais sair da União Europeia e da Zona do Euro, porque apesar de tudo a Europa soube gerir a crise da Covid, ela se contrapõe à ameaça russa.
Então, mesmo os eleitores de extrema-direita percebem a Europa como uma forma de proteção e de seguridade. Então, a extrema-direita não quer mais sair e Meloni é a primeira da Europa oriental – em relação à Hungria e Polônia – que caminha nessa linha. Mas, por outro lado, são muito liberais no que diz respeito ao plano da política interna. Assim, são soberanistas, muito violentos – não tanto quanto no Brasil –, mas também bastante violentos em relação a um conjunto de temáticas como a imigração, o direito das mulheres, o direito das minorias. Em todos esses temas tem posição da extrema-direita. Mas a diferença é que, em nível internacional, querem estar dentro da Europa e dentro da Otan. E essa combinação é um pouco bizarra e creio que é perigosa para a Europa porque poderá funcionar em outros países, como a França.
O senhor acaba de lançar “O mago do Kremlim”, um dos quatro romances finalistas do Goncourt 2022. Como esse livro dialoga com “Os engenheiros do caos?” Quem é o personagem principal Vadim Baranov, conselheiro de Vladimir Putin, assim chamado o “czar”?
O personagem principal do livro se inspira numa personagem que existe realmente e se chama Vladislav Surkov e eu o descobri quando escrevia “Os engenheiros do caos”, livro que precedeu o novo romance. Naquele momento em que o encontrei virtualmente, dei-me conta de que existia ao lado de Putin um personagem bastante diferente daqueles que gravitam no entorno dele – como as pessoas do serviço secreto e os empresários.
Foi um conselheiro político, como os outros engenheiros do caos, de certa forma. Uma personagem que frequentou a Academia de Artes Dramáticas em Moscou, que escreve sob pseudônimo, que tem folhetos de recall americano afixados na parede em seu escritório. Não pude inserir Surkov no livro “Os engenheiros do caos” porque preferi guardá-lo para um romance. Tinha esse desejo, não para me afastar da realidade, mas para me aproximar dela.
O senhor teve acesso a outras fontes de informação para construir o romance?
Sim, muitas, preparei o romance como se fosse um ensaio sobre Surkov e a comunição russa. Portanto, fiz muita pesquisa, muitas fontes, livros, jornais, viagens. E também com a minha experiência direta com o poder. Penso que certas regras, certo mecanismo do poder, são os mesmos por todo lugar. O que muda são os limites, as situações, mas certas regras e mecanismos da corte, que se forma no entorno do poder, tudo isso se parece muito. Então utilizei também a minha experiência com o poder na Itália e em outros contextos na Europa para escrever o livro sobre o poder russo.
Conheça as obras
O mago do Kremlin
- De Giuliano Da Empoli
- Tradução de Julia da Rosa Simões
- Vestígio Editora
- 256 páginas
- R$ 59,80; e-book: R$ 41,90
Os engenheiros do caos
- De Giuliano Da Empoli
- Tradução de Arnaldo Bloch
- Vestígio Editora
- 192 páginas
- R$ 59,80; e-book: R$ 41,90
Trechos dos livros de Giuliano Da Empoli
“Os engenheiros do caos”
“Onde quer que seja, na Europa ou em outros continentes, o crescimento dos populismos tomou a forma de uma dança frenética que atropela e vira ao avesso todas as regras estabelecidas. Os defeitos e vícios dos líderes populistas se transformam, aos olhos dos eleitores, em qualidades. Sua inexperiência é a prova de que eles não pertencem ao círculo corrompido das elites. E sua incompetência é vista como garantia de autenticidade. As tensões que eles produzem em nível internacional ilustram sua independência, e as fake news que balizam sua propaganda são a marca de sua liberdade de espírito.
No mundo de Donald Trump, de Boris Johnson e de Jair Bolsonaro, cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um escândalo. Mal se está comentando um evento, e esse já é eclipsado por um outro, numa espiral infinita que catalisa a atenção e satura a cena midiática. Diante desse espetáculo, é grande a tentação, para muitos observadores, de levar as mãos aos céus e dar razão ao bardo: ‘O tempo está fora do eixo!’. No entanto, por trás das aparências extremadas do carnaval populista, esconde-se o trabalho feroz de dezenas de spin doctors (consultores), ideólogos e, cada vez mais, cientistas especializados em big data, sem os quais os líderes do novo populismo jamais teriam chegado ao poder. Esse livro conta a história deles.
(...)
Para os novos Doutores Fantásticos da política, o jogo não consiste mais em unir as pessoas em torno de um denominador comum, mas, ao contrário, em inflamar as paixões do maior número possível de grupelhos para, em seguida, adicioná-los, mesmo à revelia. Para conquistar uma maioria, eles não vão convergir para o centro, e sim unir-se aos extremos.
Cultivando a cólera de cada um sem se preocupar com a coerência do coletivo, o algoritmo dos engenheiros do caos dilui as antigas barreiras ideológicas e rearticula o conflito político tendo como base uma simples oposição entre “o povo” e as “elites”. No caso do Brexit, assim como nos casos de Trump e da Itália, o sucesso dos nacional-populistas se mede pela capacidade de fazer explodir a cisão esquerda/direita para captar os votos de todos os revoltados e furiosos, e não apenas dos fascistas.”
“O mago do Kremlin”
“Chamavam-no de ‘mago do Kremlin’, ou ‘novo Rasputin’. Na época, ele não tinha um papel definido. Simplesmente aparecia no gabinete do presidente depois que os assuntos correntes tinham sido despachados. Não eram os secretários que o avisavam. Talvez o próprio czar o convocasse pela linha direta. Ou ele mesmo adivinhasse o momento certo, graças aos seus talentos prodigiosos, dos quais todo mundo falava, mas que ninguém sabia definir ao certo. Às vezes alguém se juntava a eles. Um ministro em evidência ou o diretor de uma empresa estatal. Em Moscou, porém, como ninguém nunca diz nada, por uma questão de princípios e há séculos, nem a presença dessas testemunhas ocasionais conseguia explicar as atividades noturnas do czar e de seu conselheiro. Acontecia, porém, de as pessoas serem informadas de suas consequências.
(...)
Quando cheguei a Moscou, alguns anos depois, a lembrança de Baranov pairava sobre a cidade como uma sombra fugidia que, emancipada de um corpo aliás digno de nota, estava livre para se manifestar aqui e ali, sempre que parecia útil evocá-lo para ilustrar uma medida particularmente obscura do Kremlin. E visto que Moscou – indecifrável capital de uma nova época cujos contornos ninguém conseguia definir – se vira inesperadamente no centro das atenções, o antigo mago do Kremlin tinha seus exegetas até mesmo entre nós, os estrangeiros. Um jornalista da BBC dirigira um documentário no qual atribuía a Baranov a responsabilidade pelo uso em política dos artifícios do teatro vanguardista. Um colega seu escrevera um livro em que o descrevia como uma espécie de prestidigitador que fazia personagens e partidos aparecerem e desaparecerem com um simples estalar de dedos. Um professor lhe dedicara uma monografia intitulada ‘Vadin Baranov e a invenção da Fake Democracy’. Todos se perguntavam sobre suas atividades mais recentes. Ele ainda exercia alguma influência sobre o czar? Que papel desempenharia na guerra contra a Ucrânia? E qual tinha sido sua contribuição na elaboração da estratégia de propaganda que produzira efeitos tão extraordinários sobre o equilíbrio geopolítico do planeta?”
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