O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva chega ao inédito terceiro mandato, que começa em 1º de janeiro de 2023. Ao longo de boa parte da campanha eleitoral, ele remeteu seu futuro governo ao passado, sobretudo à segunda gestão — quando surfou na boa onda da economia mundial e, ao passar a faixa presidencial para a sucessora Dilma Rousseff, seguia para uma aposentadoria temporária com a popularidade de mais de 80%. Quase esteve de volta ao governo pelas mãos da própria ex-presidente, mas foi abatido pela condenação — hoje anulada —, seguida de prisão, na Operação Lava-Jato.
No discurso da vitória, ontem, em um hotel em São Paulo, Lula deixou claro que todas as forças que estiveram com ele nessa corrida eleitoral serão contempladas no futuro governo. Assim, haverá nacos expressivos de poder para o MDB que apoiou a ele e à senadora Simone Tebet (MS), assim como é certa uma vasta participação do PSB do vice-presidente Geraldo Alckmin e, até mesmo, para o Avante do deputado reeleito André Janones (MG). Outros atores de peso devem se somar ao governo ou à base no Congresso, como o PSD de Gilberto Kassab, e não se afasta nem a hipótese de parcelas do Centrão acenarem para o presidente eleito. Em relação ao PT, será instado a aceitar a divisão do poder que sempre procurou acumular.
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Da carta à herança maldita
A situação atual, em que Lula claramente segue na direção do centro, contrasta com a de 2002, quando chegou pela primeira vez à Presidência. Apesar de já ali tentar trabalhar com outros atores políticos que não só os petistas — a Carta aos Brasileiros, na qual deixou clara a intenção de manter a política econômica que vinha sendo desenvolvida pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) — foi tida como fundamental para que conquistasse apoio dos eleitores de centro. O curioso é que Lula venceu o ex-ministro da Saúde José Serra, candidato de FHC, até hoje considerado um dos mais competentes à frente da pasta, e que legou ao brasileiro o medicamento genérico.
Mesmo com a Carta aos Brasileiros, Lula e seus ministros insistiam que tinham herdado uma "herança maldita" de FHC. Os indicadores econômicos caminhavam para números animadores: de 2003 a 2006, a inflação despencou de 12,53% para 3,14%. Também houve forte crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), impactado, entre outros fatores, por um aumento no valor das commodities no mercado internacional.
Nas políticas sociais, carro-chefe dos governos petistas, Lula implementou o programa Fome Zero e o Bolsa Família, que uniu e ampliou quatro projetos existentes no governo FHC. Nas relações internacionais, fomentou novos acordos de comércio, aumentou a abertura do mercado brasileiro e aumentou o volume de exportações.
Mensalão
Em 2005, o governo de Lula esteve perto de ser abreviado pelo escândalo do Mensalão. O esquema de compra de deputados federais para que votassem conforme os interesses do Palácio do Planalto veio à tona depois que Maurício Marinho, um afilhado político de Roberto Jefferson — então apoiador do governo — que ocupava um cargo no segundo escalão dos Correios, foi filmado recebendo propina em dinheiro vivo de um empresário que extorquia.
Percebendo que o Palácio do Planalto lhe dera as costas, Jefferson denunciou o esquema e mirou no então ministro da Casa Civil, José Dirceu — que já ali era tido como o nome de Lula para sua sucessão. Ele deixou a pasta mais importante do governo e retomou o mandato de deputado federal, para tentar evitar que o escândalo subisse a rampa do Palácio do Planalto. Não conseguiu. Foi cassado, assim como Jefferson, que perderia o mandato logo depois. Outras 40 pessoas foram responsabilizadas, entre elas velhos companheiros de sindicalismo de Lula, como Luís Gushiken — que, tempos depois, concluiu-se que não tinha nada a ver com o esquema.
Sobre o mensalão, Lula fez um pronunciamento que foi transmitido ao vivo pela redes de tevê. Reuniu todo o ministério na Granja do Torto e eximiu-se de qualquer responsabilidade pelo escândalo. Disse, inclusive, que não sabia de coisa alguma.
Ainda assim, Lula partiu para defender seu governo e, quando muita gente não esperava, conquistou a reeleição sobre Geraldo Alckmin — hoje vice-presidente eleito. Já ali o então tucano foi vítima da primeira fake news de peso em uma eleição presidencial brasileira: os petistas disseminaram nas redes que ele privatizaria a Petrobras, algo que passou a negar veementemente na campanha. Porém, esse assunto contaminou de tal forma o debate que facilitou a vitória do petista e obrigou Alckmin a, permanentemente, dar explicações para algo que jamais cogitou fazer.
Alta popularidade e prisão
Uma vez reeleito, Luiz Inácio Lula da Silva surfou numa onda que seu governo ajudou a erguer, mas que foi muito favorecida pela circunstância da economia mundial. No plano interno, com uma economia estabilizada, pôs em prática o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) — um conjunto de investimentos em infraestrutura para projetos de saneamento, construção de portos, aeroportos, rodovias e ferrovias, entre outras obras.
O PIB brasileiro teve um período de grande crescimento, o que abriu portas, junto com a diplomacia do Itamaraty, para o ingresso do país em dois blocos importantes econômicos: o BRICS — que ajudou a formatar com a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul —, e o G20 — que reúne as 20 maiores economias mundiais. A bonança econômica também permitiu maior investimento nas políticas sociais, como programas para a educação.
Em 2009, Lula recebeu a consagração internacional ao ser classificado como “o cara” por ninguém menos que o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. O elogio foi e um encontro do G-20 e, sempre que pode, o petista lembra disso como um dos troféus do segundo mandato.
Com Dirceu abatido pelo mensalão, Lula trouxe para a cena sua então ministra das Minas e Energia e, depois, da Casa Civil, Dilma Rousseff. Vendeu-a como uma pessoa técnica e competente e, ao conseguir fazê-la sucessora, passou-se a dizer que o petista conseguiria eleger até “um poste”, tamanha era sua popularidade. De fato, ele passou a faixa no Palácio do Planalto com mais de 80% de aprovação popular.
Petrolão
Se Dilma começou bem o primeiro mandato, desfrutando da boa memória deixada por Lula, no final da gestão estava em dificuldades por causa da economia. Especulava-se, então, que o petista voltaria à cena para sucedê-la — embora ele sempre tivesse negado isso. A ex-presidente conseguiu o segundo mandato em uma disputa difícil contra Aécio Neves (PSDB) e depois de Eduardo Campos (PSB), que era apontado como um nome de peso na disputa, morrer em um acidente aéreo em Santos (SP). Marina Silva assumiu uma candidatura abalada pelo desaparecimento precoce do ex-governador de Pernambuco.
Dilma foi reeleita e Lula, mais uma vez, esteve para voltar ao governo — agora como ministro palaciano. Porém, aquilo que soou como uma manobra à época foi abatido por um grampo telefônico que veio à tona, vazado pelo então juiz da Operação Lava-Jato Sergio Moro — hoje senador eleito do Paraná pelo União Brasil. A ideia seria dar foro especial ao petista, que já estava entre os apontados como ativo participante do Petrolão, o esquema de corrupção dentro da Petrobras que envolveu vários indicados por partidos políticos que apoiavam Dilma no Congresso.
Na sequência, Lula foi preso por corrupção, em 2018, e solto em 2019, após decisão do Supremo Tribunal Federal, que invalidou as prisões em segunda instância. Nos anos seguintes, a Corte suspendeu e anulou, um a um, os processos contra o petista.
“Ele vem muito mais ‘lulinha paz-e-amor’ do que em 2002 no sentido fiscal e no econômico. Há um déficit fiscal muito alto para 2023 que precisa ser mitigado”, avalia o professor de relações governamentais André Rosa.