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'A mentira foi aparelhada materialmente na política', avalia especialista

Novo cenário democrático compreende o uso de fake news como estratégia política com padrão profissional. Professor da PUC-RJ alerta para a necessidade da criação de parâmetros para o combate à desinformação

O uso de redes sociais no ambiente eleitoral faz parte da nova realidade vivenciada em todas as democracias do mundo. O mundo digital se tornou palco para debates políticos fomentados por candidatos, com direito a usos de verbas para anúncios pagos nas plataformas e até estratégias baseadas em fake news.

É neste cenário que o professor de Comunicação Política da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) Arthur Ituassu analisa o uso destas mídias e constata: o uso de fake news se tornou de fato uma tática de campanha, com riscos e estratégias calculadas. “A mentira na política foi aparelhada materialmente”, referindo-se ao uso das redes sociais. Para isso, tanto a sociedade, as instituições e o Estado precisarão debater de que maneira irão prevenir a disseminação da desinformação, dentro e fora dos períodos eleitorais", constata o professor. Confira a entrevista.

Nesta campanha eleitoral, vimos um crescimento dos investimentos em anúncios pagos. Há uma relação direta entre quanto mais investimento se tem, mais o público fica engajado por conta da própria segmentação das redes. Como funciona isso na prática?

O que vemos é um investimento bem grande — acima de R$ 100 milhões nessa campanha, por parte de todos os candidatos. Do ponto de vista de 2018 para 2022, houve aumento expressivo, e grande parte é no YouTube, que tem sido a principal plataforma das campanhas para esse tipo de anúncio. Mais até do que o Instagram, os vídeos no YouTube têm sido um recurso bastante utilizado e com alto investimento. Em 2018 o uso foi incipiente. As campanhas ainda não estavam preparadas pra isso, mas, em 2022, a gente vê de fato as campanhas investindo. O anúncio permite a segmentação do seu público, o que torna a comunicação muito eficiente. Traz consequências para a democracia, para o ambiente eleitoral, mas do ponto de vista de campanha eleitoral, é eficiente. Se consegue falar para o público uma determinada coisa que você acha que vai encaixar bem e vai ser favorável para a campanha.

Como são essas campanhas segmentadas no exterior?

As campanhas nos Estados Unidos já trabalham com bancos de dados próprios. A partir desses dados, você vai fazendo comunicação segmentada, anúncios impulsionados, com os dados que você tem do público. Então, você segmenta o público em favoráveis a determinada questão, desfavoráveis a determinada questão, indecisos. Pode fazer várias segmentações. Os partidos têm seus próprios bancos de dados, que conversam com as plataformas. Esse tipo de sofisticação de campanha a gente não vê no Brasil ainda. A gente imagina que essa é a tendência de campanhas pros próximos anos. No Brasil, o que vemos são práticas de segmentação muito incipientes.

Quais os perigos da segmentação que vemos nas eleições brasileiras? Elas criam as famosas bolhas, onde todos pensam parecido?

Existe uma segmentação que ocorre naturalmente quando você usa redes sociais, em que se fica meio preso aos que pensam mais ou menos parecido com você. Não é nem do ponto de vista só da informação que você recebe, mas das realidades políticas que constrói. Esse contexto acaba construindo uma realidade política. Por isso que hoje a gente tem uma tensão muito grande quando realidades políticas muito diferentes se chocam e você não consegue ter o diálogo entre elas. A tensão não constrói um diálogo que pudesse aprimorar o posicionamento de ambos, que seria a teoria da racionalidade.

Dá pra dizer que essa segmentação acirra a polarização?

A consequência principal da segmentação para o ambiente eleitoral é que eu consigo dizer determinadas coisas para determinados públicos que nem todo mundo vai ver. Quando eu falava na televisão ou no rádio, necessariamente o meu público é todo mundo, é um público de massa. Isso me modera de alguma forma, porque não posso tomar posições muito radicais. Se eu tomar posições radicais eu tendo a ganhar a rejeição de grupos centrais. Agora quando falo para um grupo que sei do que posso falar, e vai ficar restrito àquele espaço. Posso, por exemplo, dizer determinadas barbaridades para um grupo específico que ninguém está ciente se eu disse aquilo, e digamos a possibilidade de outros grupos ficarem horrorizados com o que eu disse ela fica praticamente nula. Isso possibilita trabalhar determinados conteúdos mais radicais do ambiente político, mais específicos, mais identitários, mais nacionalistas, mais na fronteira da lei.

Mas uma boa estratégia de redes sociais requer tempo para que se veja um resultado. Isso já foi compreendido pelas campanhas?

A campanha não pode achar que vai começar a fazer comunicação de mídias sociais segmentadas durante o período eleitoral. O que acontece nas mídias digitais é que você tem que ter um investimento de anos em utilização constante daquela ferramenta. Por exemplo, Ciro Gomes de repente vem na campanha eleitoral com uma linguagem toda nova, que ninguém nunca tinha visto e aquilo ali não faz barulho, foi até ridicularizado de tão falso. Porque na verdade você constrói um posicionamento nas mídias sociais de anos. Quando Jair Bolsonaro chega em 2018 ele já tem um posicionamento que ele constrói desde 2010.

O domínio dessa estratégia é mais bem sucedido pela direita?

Não só a direita, como os novos atores do cenário político. É isso que está acontecendo na América Latina toda. São esses novos atores que são mais adeptos ao ambiente da mídia digital que estão ganhando força em todos os lugares. Nayib Bukele, eleito presidente em 2019 em El Salvador, rompeu com 30 anos de governos tradicionais no país. Casos assim ocorreram nas eleições da Colômbia, nas eleições do Chile. Todos são novos atores.

A respeito desses novos atores, temos um exemplo bem forte do Nikolas Ferreira que foi o deputado mais bem votado. Vem com a força das redes sociais também, porque ele é um youtuber.

Os top 10 mais votado do Congresso no Brasil desse ano, não tem nenhum do PT, nenhum do PSDB. Todos são todos outsiders, partidos menores. Agora, por exemplo, Carla Zambelli já está aí há um tempinho mas é uma outsider. O próprio (Guilherme) Boulos, o PSol tinha três ou quatro assentos em 2010, hoje tem 14. O Psol cresceu mais de 350% a sua presença no Congresso Nacional. Boulos tem uma presença na internet muito forte. Esse modelo funciona tanto pra esquerda quanto pra direita. Essas dimensões são novas e pressionam as instituições, o sistema eleitoral, o sistema representativo, porque são coisas novas. Apesar da internet já estar aí há tanto tempo, o que a gente está vendo são fenômenos novos do ponto de vista histórico e social.

Apesar das plataformas terem seu espaço no dia a dia, na política ainda é um processo mais lento, a exemplo do próprio combate às fake news, o qual a gente ainda engatinha para regulamentar. Como você avalia a evolução desse processo, comparando 2018 a 2022?

As fake news se tornaram um recurso das campanhas. Numa campanha eu penso se eu vou utilizar ou não vou utilizar, como eu vou utilizar, em que momento, em que contexto isso me favorece ou desfavorece. Entrevistamos 35 profissionais de campanha digital no Brasil, que trabalham em vários partidos diferentes. 53% deles disseram que usam e pensam as fake news como recurso de campanha. Numa campanha é preciso decidir se irá colocar os recursos em A ou B. Se colocar em A, não estará colocando em B. A ideia do recurso escasso. É preciso pensar muito bem para onde vai, e a fake news é um desses recursos que se tem à mão.

Como é feito esse cálculo de risco das vantagens e desvantagens do uso da fake news na prática?

Prepara-se algo que é estrategicamente verídico. Não pode ser qualquer fake news. Tem elementos: ou eu trabalho com uma meia verdade, ou eu trabalho com uma verdade primeiro, jogo uma meia verdade, e depois eu vou onde quero. Se eu disser que Sergio Moro vai casar com Lula ninguém vai acreditar. Tenho que dizer alguma coisa que as pessoas vão acreditar, ou que determinado público específico vai acreditar. E vou ter que colocar recursos nisso: vou ter que ter gente, a equipe vai ter que parar pra pensar e produzir uma fake news. Depois vai ter que disseminar, e ainda corre o risco de ter consequências hoje — em 2018 não, e essa é a diferença brutal de 2018 pra cá. Em 2018 foi a deus dará, quem fez, fez como quis e não teve consequência nenhuma. Era terra sem lei. Em 2022 já não é mais. Há críticas, tem muita coisa sendo feita errado, mas o trabalho do TSE tem sido incansável para a eleição de 2022, e a gente tem que louvar isso.

Como avalia a atuação do TSE?

O TSE está tentando. Mas há uma dificuldade da organização institucional, de ter que lidar com algo para o qual não está preparado. Não há critérios, não pode uma só pessoa decidir o que é verdade e o que é mentira. É uma centralização de poder enorme.Existem dimensões do problema. Uma delas é o ataque ao procedimento da democracia, é o discurso antidemocrático. Esse, para mim, é onde a gente deveria focar todas as nossas forças. Que tenha uma legitimidade institucional para você coibir draconianamente — e vai ser preciso fazer isso, senão a nossa democracia vai estar o tempo todo tensionada. Temos que criar critérios para separar o discurso antidemocrático e demais critérios para normatizar de alguma forma essa diferença do discurso de disputa das campanhas. Esse tipo de coisa sempre fez parte do jogo político. A mentira sempre fez parte. É diferente a campanha negativa e o discurso antidemocrático. No atual momento a gente vê uma instituição que está demonstrando uma excelente vontade de tentar amenizar os problemas, mas de forma destrambelhada.

Tudo indica que está havendo uma profissionalização das fake news. Como elas impactam de fato o eleitor? Elas são capazes de mudar votos?

É como se a gente estivesse aparelhando materialmente a mentira. A mentira na política foi aparelhada materialmente. Agora ela tem toda a estrutura de recursos digitais a seu favor. Esse é o novo ambiente da política e a gente vai ter que discutir muito isso. Às vezes esse tipo de análise sobre as fake news coloca o eleitorado numa posição como se fosse passivo, submisso. Não é assim também. Quem vai acreditar é quem já está naquele plano ideológico. Entra na dimensão do engajamento, da mobilização, do ataque. Mas não é aquela visão que a gente tem de que vai impactar diretamente no voto. Se isso acontece, é muito pouco.

Todas essas mudanças decorrentes do uso contínuo das redes sociais acabam tensionando o sistema democrático?

Está se construindo realidades políticas muito diferentes no Brasil, em relação a valores. Há mudança na cultura política relacionadas com as transformações na infraestrutura de comunicação que a gente tem hoje. Estas acontecem em paralelo às transformações na infraestrutura de comunicação. Elas tensionam os sistemas tradicionais, as instituições e fazem correr de fato um risco com relação às democracias, questionando de que forma conseguimos construir coesões democráticas de novo. Há certo esfacelamento das comunidades e tensionamento com as instituições tradicionais dos regimes democráticos do Brasil e na América Latina.

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