O Brasil vai às urnas neste domingo (02/10) em uma situação inédita: não se sabe qual será a reação do presidente Jair Bolsonaro (PL) em caso de derrota para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) — candidato que lidera as principais pesquisas eleitorais e aparece com chance de vencer no primeiro turno.
Em eleições democráticas, é esperado que o perdedor reconheça a vitória do adversário, tão logo o resultado seja anunciado pela autoridade responsável - no caso do Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Bolsonaro, no entanto, tem indicado que pode não fazer isso, caso sua derrota se confirme. Ao ser questionado em agosto durante sabatina do Jornal Nacional, por exemplo, o presidente disse que "serão respeitados os resultados das urnas desde que as eleições sejam limpas e transparentes".
A condição colocada na resposta do presidente levanta desconfiança de que ele não aceitará uma eventual vitória adversária. Isso porque ele já deixou claro que não considera as eleições brasileiras "limpas e transparentes" - opinião que é contestada pelo TSE.
Desde o ano passado, Bolsonaro intensificou seus questionamentos sobre a segurança da urna eletrônica, sem apresentar provas que comprovem suas alegações de possíveis fraudes no sistema de votação brasileiro. Para críticos do presidente, essa postura visa justamente preparar o terreno para futuras contestações do resultado da eleição.
Mas como Bolsonaro poderia questionar o saldo das urnas na Justiça Eleitoral? Em tese, o presidente pode tentar iniciar uma ação no TSE alegando que houve alguma ilegalidade na votação.
A Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (Aime) possibilita que o mandato do candidato eleito seja questionado em caso de abuso de poder econômico, corrupção ou fraude durante a campanha. Ela pode ser apresentada na Justiça Eleitoral em até 15 dias após a diplomação, cerimônia que nesta eleição está prevista para 19 de dezembro.
Porém, ainda que uma ação seja apresentada, ela não impediria a posse do presidente eleito. Seu julgamento pode demorar alguns meses ou mesmo anos e, nesse período, o candidato vitorioso permanece no cargo.
É o que aconteceu, por exemplo, na eleição da chapa presidencial formada por Dilma Rousseff e Michel Temer. Ações apresentadas pelo PSDB questionando a legalidade da campanha petista foram julgadas apenas em 2017, quando Dilma já havia sofrido o impeachment. O TSE acabou rejeitando a ação e manteve Temer como presidente.
No entanto, uma eventual iniciativa de Bolsonaro caso Lula seja eleito poderia nem avançar na Corte, já que o andamento de uma ação dependeria de a campanha de Bolsonaro apresentar elementos concretos que embasassem sua acusação, avaliam especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
"Uma Ação de Impugnação de Mandato Eletivo tem que ter uma prova pré constituída sólida", disse a procuradora da República Silvana Batini, professora de direito eleitoral da FGV.
Na visão dos especialistas entrevistados, parece bastante improvável que o presidente consiga cassar eventual eleição de Lula alegando algum tipo de ilegalidade na urna eletrônica e na contabilização dos votos, já que nunca houve comprovação de fraude em escala significativa no sistema de votação eletrônico.
Eventuais problemas pontuais que podem ocorrer em um ou outra urna não são considerados suficientes para impactar o resultado das eleições, ainda mais considerando o pleito presidencial, que envolve mais de 156 milhões de eleitores.
Por isso, ações desse tipo são extremamente raras. Um precedente conhecido ocorreu em 2006, quando João Lyra, candidato do PTB derrotado ao governo de Alagoas, contestou a vitória de Teotônio Vilela Filho (PSDB) alegando supostas irregularidades nas urnas eletrônicas. Sua campanha, porém, se recusou a pagar uma perícia para verificar as acusações. O TSE avaliou que não havia provas e multou Lyra por "litigância de má-fé".
Eventual contestação pode se voltar contra Bolsonaro
Hoje, iniciar uma ação com falsas alegações contra a urna eletrônica pode ter consequências ainda mais graves do que a multa aplicada contra João Lyra, explicou à BBC News Brasil o coordenador-geral da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político), Luiz Fernando Pereira.
Ele lembra que, em outubro de 2021, o TSE cassou o mandato do deputado estadual pelo Paraná Fernando Francischini devido a acusações infundadas contra o funcionamento das urnas. Além da perda do mandato, ele foi declarado inelegível por oito anos.
A púnição foi aplicada porque Francischini fez uma transmissão ao vivo no Facebook durante a votação de 2018 apontando supostas fraudes em urnas eletrônicas que não estariam registrando votos para o então candidato Jair Bolsonaro. A alegação era que o eleitor digitava 17 (número de Bolsonaro em 2018, quando concorreu pelo antigo PSL), mas não aparecia o rosto e o nome do atual presidente no painel da urna.
Porém, a investigação do caso identificou que, na verdade, essas pessoas estavam digitando 17 no momento em que a urna registrava o voto para governador, e não para presidente, de modo que seria impossível o voto ser registrado para Bolsonaro.
Depois, acrescenta Pereira, uma resolução do TSE de dezembro de 2021 estabeleceu ser proibida "a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinja a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos".
Ainda segundo essa resolução, quem promover esse tipo de alegação falsa contra o processo eleitoral poderá sofrer "apuração de responsabilidade penal, abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação". Isso significa que, além de poder enfrentar uma investigação criminal, tal pessoa pode ser processada na Justiça Eleitoral.
"Então, o Bolsonaro ainda poderia sofrer uma ação e ficar eventualmente inelegível se ele atacar a urna eletrônica a partir de fatos sabidamente inverídicos", ressalta Pereira.
A advogada Vânia Aieta, professora da Uerj e especialista em direito eleitoral, tem leitura semelhante. Em tese, diz ela, Bolsonaro pode tentar questionar eventual eleição de Lula com ações no TSE. Na prática, avalia a professora, é o presidente que enfrenta mais risco de ser punido após a eleição por ter, na sua avaliação, usado ilegalmente a máquina pública federal a seu favor.
"O único candidato que está cometendo verdadeiras aberrações jurídicas, sobretudo no campo das condutas vedadas de agente público, lesando a Lei das Eleições, é ele (Bolsonaro), com o uso da máquina jamais visto", afirma Aieta.
"Todo governo usa a máquina. Isso aí é uma premissa. Agora, a dosimetria do uso é que vai gerar a possibilidade de problemas futuros", disse ainda.
Como exemplo, ela cita o uso da cerimônia do bicentenário da Independência, no dia 7 de setembro, como espaço de campanha eleitoral.
As campanhas de Lula, Ciro Gomes (PDT) e Soraya Thronicke (União Brasil), inclusive, já apresentaram ações acusando Bolsonaro e seu candidato a vice-presidente, o general Braga Netto, de abuso político e econômico e uso indevido dos meios de comunicação, uma vez que a fala do presidente foi transmitida ao vivo e na íntegra para todo o país pela TV Brasil.
Nesse caso, o time de recurso usado é a Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije), que pode ser apresentada até a data da diplomação do candidato para apurar condutas que afetem a igualdade na disputa. Assim como Aime, a Aije pode demorar meses ou anos para ser julgada.
A partir das ações apresentadas sobre o 7 de setembro, o TSE adotou uma decisão liminar que proibiu a campanha de Bolsonaro de usar as imagens da cerimônia da Independência na sua propaganda eleitoral.
A Corte ainda vai avaliar se "as condutas praticadas foram suficientemente graves para ensejar a cassação do registro ou do diploma e a declaração de inelegibilidade dos políticos e demais envolvidos", explicou o ministro do tribunal e corregedor-geral da Justiça Eleitoral, Benedito Gonçalves, na decisão liminar.
Auditoria das urnas em 2014
Além de tentar questionar eventual eleição de Lula por meio de uma ação, Bolsonaro pode tentar questionar o resultado das urnas por meio de um procedimento administrativo semelhante ao que o PSDB solicitou, após a derrota de Aécio Neves em 2014.
Naquela eleição, Dilma venceu por uma margem pequena no segundo turno. Ela obteve 51,64% dos votos válidos, contra 48,36% do candidato tucano.
Depois disso, o PSDB alegou que havia questionamentos na sociedade sobre a "lisura" do pleito e defendeu uma auditoria do sistema de votação, que acabou sendo autorizada pelo TSE.
"É justamente com o objetivo de não permitir que a credibilidade do processo eleitoral seja colocada em dúvida pelo cidadão brasileiro que nos dirigimos neste momento à presença de Vossas Excelências para, respeitosamente, requerer a Vossa Excelência que permita a realização de um processo de auditoria nos sistemas de votação e de totalização dos votos, por uma comissão de especialistas formada a partir de representantes indicados pelos partidos políticos, mediante os seguintes procedimentos", dizia o pedido do PSDB.
Segundo um ex-ministro do TSE ouvido pela reportagem, a Corte decidiu aceitar o pedido de Aécio na intenção de dar mais transparência ao processo eleitoral. Hoje, porém, juristas avaliam que pode ter sido um erro a Corte ter aceito o pedido, na medida em que aquele processo de auditoria parece ter contribuído para o discurso de desconfiança sobre a urna eletrônica.
Ao final da auditoria, que durou cerca de um ano, o PSDB concluiu que não havia provas de fraudes, mas o partido também disse que não era possível auditar o sistema de forma independente da Corte.
"Pode surgir (um pedido de auditoria de Bolsonaro) como uma repetição de 2014, numa outra escala. Mas isso não vai impedir, como da outra vez também não impediu, a sucessão presidencial", ressalta Silvana Batini, da FGV.
"O tribunal foi muito liberal ao deferir isso (o pedido de auditoria do PSDB) e abriram um precedente ruim. Porque a ideia é que a pessoa que pede uma recontagem dos votos tem que ter uma base sólida para isso", disse ainda.
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