A discussão sobre sexualidade — vista pelo filósofo Michael Foucault como privada e reprimida para viabilizar o exercício do poder, de acordo com o modus operandi da ordem social burguesa — ganha palco nos debates políticos atuais. O pensador francês explicava que o sexo, nas sociedades cristãs do século XIX, tornou-se algo que era preciso examinar, vigiar, confessar e transformar em discurso. Tal movimento se repete, atualmente, e toma o centro de uma argumentação que deveria colocar em pauta planos de governo e soluções para os atuais problemas do Brasil.
Na última semana, dois políticos mineiros foram protagonistas de casos que ilustram bem esse movimento. Um, eleito deputado federal pela primeira vez, e outro, reeleito, fizeram um embate com forte matiz homofóbica. Cooptado para reforçar a campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas redes sociais, André Janones (Avante-MG) lançou insinuações em seus canais na internet sobre a orientação sexual de Nikolas Ferreira (PL-MG), campeão de votos na eleição para a Câmara dos Deputados e um dos principais apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) neste segundo turno.
Janones postou um vídeo em que dois homens fazem sexo oral e indicou que o deputado recém-eleito seria um deles. "Estou sendo atacado por mentiras, montagens, acusações de pedofilia e até estupro. Tudo já está entregue aos meus advogados", postou Nikolas Ferreira no Twitter. Antes, porém, havia feito uma postagem homofóbica para comentar o vídeo: "Ah, pronto, agora virei viado. É isso".
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Embate regional
Um outro caso ocorreu em nível estadual: nas eleições para o governo do estado do Rio Grande do Sul. De um lado, concorre o ex-ministro Onyx Lorenzoni (PL), apoiador de Bolsonaro. Do outro, Eduardo Leite (PSDB), candidato à reeleição.
Lorenzoni veiculou uma propaganda de rádio na última quinta-feira, em que atacava a sexualidade de seu oponente. Na peça, o aliado de Bolsonaro dizia que, caso seja eleito, o Rio Grande do Sul terá uma "primeira-dama de verdade". O ex-ministro é casado com a personal trainer Denise Veberling.
"Os gaúchos e as gaúchas entenderam que vão ter, se for da vontade de Deus e do povo gaúcho, um governador e uma primeira-dama de verdade, que são pessoas comuns e que têm uma missão de servir e transformar a vida dos gaúchos para melhor", disse o candidato, na propaganda. Nas redes sociais, dezenas de pessoas saíram em defesa do governador gaúcho, que se assumiu homossexual no ano passado.
Eduardo Leite escreveu nas redes sociais a respeito, sem citar o oponente. "É motivador ver a sociedade e a opinião pública majoritariamente unidas para condenar demonstrações de homofobia. Não ao preconceito! O amor, o respeito e a tolerância falam mais alto", postou.
Na avaliação da doutoranda em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP) e co-diretora d'A Tenda das Candidatas, Hannah Maruci, a utilização da estratégia de trazer a público a suposta homossexualidade de um ou outro político para desqualificá-lo não é uma novidade. "Isso está ligado também à ideia de família tradicional. Se a pessoa não é casada logo se assume que é porque ela é homossexual. Sempre esteve presente trazer a intimidade, tornar-la pública de forma a desqualificar aquela pessoa. Ainda mais agora, em que as pautas LGBTQIA estão mais relacionadas à esquerda, então há de um lado a família tradicional e de outro é a defesa desses direitos, dessas outras formas de organização familiar", explica.
Hannah acredita que, sim, apesar de controversa, a estratégia funciona e desperta a atenção do eleitor. "Existe um interesse enorme por isso, como se a sexualidade fosse ter alguma influência na vida pública, na atividade daquele ou daquela política. A gente tem aí uma população que em grande parte é conservadora em valores e que não vê com bons olhos orientações sexuais que não sejam a heterossexual. Claro que não deveria ter um efeito, mas com certeza tem. Especialmente agora", aponta.
Instinto animal
A psicóloga doutora em ciências da saúde, Tina Zampieri salienta que a arma usada acaba por instituir uma guerra pela sobrevivência. "A sexualidade, que é um tema de privacidade e de todo o respeito de cada um, é usada igualmente por um lado e pelo outro numa guerra pela sobrevivência. Isso está muito atrelado ao instinto de sobrevivência, ambos usam a mesma arma de modos diferentes", detalha.
O corpo humano possui um sistema de neurocepção, o qual detecta riscos que esteja correndo. "Ele inconscientemente prepara o corpo para fugir, para lutar ou simplesmente o corpo é acalmado diante da situação e a pessoa raciocina e tem um comportamento adequado, que é o que não acontece dentro da da guerra pela sobrevivência, que infelizmente a gente tem, hoje, dentro dessa ambivalência de que vença o mais forte e não o mais capaz ou o mais preparado. Esse comportamento mais evoluído cai por terra pelo estado exacerbado de tensão, que é incompatível com o estado que o nosso organismo precisa ter para que funcione dentro dessa resposta de prevalecer a razão e o diálogo", explica Zampieri.
Por trás desses debates, estão anos de uma sociedade reprimida, defende a psicoterapeuta e palestrante, Myriam Durante. "Não podemos nos esquecer que somente há pouco mais de 30 anos é que a homossexualidade foi excluída da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, a homofobia passou a ser crime somente em 2019, ou seja, estamos, no meu ponto de vista, ainda numa fase de transição", salienta a psicoterapeuta.
Com a intenção de diminuir o oponente e colocá-lo em condição de anormalidade, a estratégia acaba por desfocar da pauta central do debate, que são as propostas de governo. "Ainda vemos reflexo desses tempos, especialmente em cenários onde o respeito ao próximo é ignorado e o debate não se dá em torno de ideias, mas de golpes contra os adversários. O Brasil guarda resquícios de uma sociedade onde o homem branco e hétero é considerado o 'padrão', ou seja, é o "modelo desejável". Quem está fora desse padrão está em 'desvantagem'", observa.
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