Rafael*, de 30 anos, frequentou a mesma igreja batista na zona sul de São Paulo durante toda a sua vida. Seus pais frequentavam o local quando ele nasceu.
Foi ali que Rafael cresceu e aprendeu tudo o que sabe sobre fé e cristianismo. Tinha amigos na comunidade religiosa, trabalhava na congregação e estudava para se tornar pastor.
"A igreja era todo meu projeto de vida. Você acha que vai se casar, vai ver seus filhos crescerem ali", conta ele à BBC News Brasil.
Foi por isso que, quando decidiu deixar de frequentar aquela igreja, o que passou foi "como se fosse um luto".
"Tive que passar por muita terapia porque foi algo bem complexo", diz Rafael. "Você não rompe só com a comunidade, você rompe com o futuro (que tinha planejado)."
O motivo do rompimento? Política. Mais especificamente, o fato que a orientação política da comunidade estava ficando cada vez mais "reacionária e agressiva" e o fato da igreja dar cada vez mais espaço para candidatos políticos de partidos de direita.
"Era muito bizarro. No começo, o tom de 'orar pelos que são da comunidade e estão se candidatando'", conta Rafael. "Mas só alguns políticos tinham esse espaço, se você defende qualquer tipo de obra social ou tem qualquer viés de esquerda, já não teria."
Ao mesmo tempo em que políticos ganhavam espaço, questões sociais como o racismo não eram discutidas, diz ele. "Vivenciei casos de racismo fora da igreja, na vida, mas nunca houve espaço para conversar sobre isso e discutir a questão lá dentro."
Como um jovem negro, era especialmente dolorido para Rafael ver fiéis e membros da direção da igreja se tornando militaristas. "Sempre existiu muita condescendência (entre os religiosos da sua comunidade) com as atitudes racistas da Polícia Militar", conta ele. "Defendia-se as Forças Armadas, a PM, sem espaço para discutir questões como a morte de jovens negros pela polícia."
O bolsonarismo se enraizou na comunidade, diz ele, com parte dos fiéis se tornando defensores tão aguerridos do presidente Jair Bolsonaro (PL) que chegavam a atacar Rafael verbalmente.
"Chegou em um ponto em que se tornou impossível se relacionar. Me chamavam de burro, diziam que eu defendia ladrão, que eu defendia o uso de drogas. Duvidavam se eu era crente mesmo, diziam que não sabiam se eu ia pro céu, que eu não era cristão de verdade, que eu era comunista", conta. "Eu dizia, 'gente, pelo amor de Deus, eu só não vou votar no Bolsonaro'."
Um episódio que o marcou foi quando uma pessoa próxima da igreja disse que "o nordeste tinha que se separar do Brasil" porque o Partido dos Trabalhadores tem votação expressiva na região.
O religioso conta que não escondeu seu desapontamento. "Meu pai é baiano. Quer dizer então que as pessoas da família do meu pai não mereciam votar só porque não votaram no mesmo candidato que você?"
"Chegou uma hora que (se não mudasse de igreja) ou entraria numa depressão ou teria que mudar o que eu acredito", afirma ele, que hoje está em uma igreja presbiteriana que não dá espaço para política partidária.
"Mudar de igreja é um caminho muito doloroso. Não me arrependo, mas deixei de lado uma parte da minha história, tive que ressignificar essa parte da minha vida"
Represálias
Rafael não é o único fiel passando por esse caminho. Com igrejas evangélicas se tornando a principal base de apoio de Bolsonaro, diversos religiosos que não concordam com a defesa do presidente nas suas igrejas têm procurado outras congregações.
"É muito comum", conta à BBC News Brasil o pastor Valdinei Ferreira, professor de teologia e pastor titular da Catedral Evangélica de São Paulo, uma igreja presbiteriana independente no centro da capital. "Sempre aparece alguém vindo (de outras igrejas) com algum tipo de discordância política, principalmente nos últimos anos."
De acordo com uma pesquisa do Datafolha divulgada em 2 de setembro, cerca de 31% dos evangélicos discordam que "política e valores religiosos devem andar sempre juntos para que o Brasil possa prosperar".
Ferreira não se considera progressista — muito pelo contrário, é conservador. Mas é abertamente crítico a Bolsonaro, já que, segundo ele, o presidente não representa os valores cristãos. O pastor não fala de política partidária no púlpito, não defende candidatos, mas prega a favor de valores como a defesa da democracia e dos direitos humanos.
"Quero resguardar a missão da igreja como um espaço plural. Não podemos deixar de defender a democracia quando se usa um discurso pseudo-conservador para atacar o sistema eleitoral e os direitos humanos", afirma Ferreira. "Houve um sequestro do conservadorismo pelo reacionarismo autoritário."
A postura de Ferreira não vem sem riscos. Outros líderes críticos ao presidente ou que defendem outros candidatos têm sido hostilizados por seus pares.
O pastor Alexandre Gonçalves, de Santa Catarina, sofre ataques diários nas redes sociais por ter declarado voto em Ciro Gomes (PDT) — ele lidera um grupo de cristãos que apoiam o candidato.
Já Sergio Dusilek, pastor do Rio de Janeiro, teve que renunciar à presidência da Convenção Batista Carioca após sofrer ataques de outros líderes por ter participado de um ato político-partidário, de apoio à candidatura de Lula.
Em sua carta de renúncia, Dusilek lembrou que diversos pastores batistas têm defendido Bolsonaro abertamente sem sofrer nenhuma reprimenda.
"Ao longo dos últimos doze anos, os batistas convencionais não condenaram os pronunciamentos contra alguns partidos políticos e seus quadros, antes permitiram acenos ao espectro político mais à direita, tolerando inclusive a fala presidencial em assembleia. Tampouco condenaram o apoio de líderes denominacionais à candidatos", escreveu.
"Não contaminei o espaço religioso: o templo. Não profanei o sagrado: o culto. Tampouco violei a consciência de qualquer congregação", continuou ele. "Falei de Justiça Social. Denunciei a mendicância que violenta nossos compatriotas e avilta a Deus."
A postura hostil a quem demonstra discordância política atinge também os fiéis, diz o pastor Valdinei Ferreira. Muitas pessoas que se mudaram para a congregação de Ferreira até tentaram dialogar em suas comunidades antes, diz ele, mas trocam de igreja por não receberem "nenhum tipo de acolhida".
"Quando não são hostilizados, recebem um 'gelo'", afirma. "O que é muito doloroso. Tem famílias que estão há duas, três, quatro gerações na mesma comunidade."
E além de toda a dinâmica local ser diferente em uma nova igreja, há também a questão denominacional: existem diferenças teológicas e no estilo de culto entre igrejas evangélicas de diferentes vertentes.
Luto
A palavra "luto" foi usada por diversos evangélicos que trocaram de igreja e conversaram com a BBC. Gabriel*, de 26 anos, conta que foi exatamente isso que sentiu quando deixou de participar dos cultos da Assembleia de Deus na zona oeste de São Paulo que frequentava desde que se mudou para a cidade, alguns anos atrás.
"Foi um sentimento de luto, de me entristecer. Foi muito difícil", diz ele à BBC News Brasil.
Formado em história, o jovem hoje faz segunda graduação em teologia — e pediu para não ter o nome divulgado com receio de ter problemas políticos na instituição onde faz o curso.
Gabriel conta que teve uma "formação democrática" e já se incomodava com algumas posturas da igreja desde que começou a frequentá-la — como o apoio ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
"Passei a ter um pensamento mais crítico ao perceber que certos posicionamentos não eram uma defesa de valores e pautas, mas uma abordagem eleitoreira e partidária", diz ele à BBC News Brasil.
Mas o apoio aberto a Bolsonaro — principalmente durante a pandemia — foi o que fez o jovem de fato querer se afastar da congregação. A gota d'água, diz ele, foi neste ano, com a participação do presidente em um podcast da igreja.
"Depois disso eu não pretendo voltar lá", afirma. "Na maioria das vezes o apoio não é no púlpito, isso acontece, mas em geral o culto em si não tem apelo político. Esse apoio é principalmente em outras mídias, no dia a dia, nos momentos de conversa. Mas hoje em dia não é uma coisa que dá para separar."
Gabriel diz que "Bolsonaro é uma das páginas mais sombrias do cristianismo evangélico no Brasil".
"Ele pega algumas pautas, usa uma linguagem bíblica, uma preocupação bíblica e distorce para servir ao seu projeto de poder", diz o estudante de teologia.
E posturas do presidente que são diretamente opostas a valores cristãos, diz ele, como a linguagem violenta e a cultura de morte, são ignoradas por essas lideranças.
"Ninguém que conhece Bolsonaro pode dizer que ele é um homem piedoso. Essa aproximação com ele envolve esses apagamentos, silenciamentos sobre a trajetória dele."
Medo
Assim como Gabriel e os outros entrevistados pela BBC, o fotógrafo e técnico de som Leonardo*, de 36 anos, pediu para não ter seu nome verdadeiro divulgado.
Seu receio, diz ele, não é nem menosprezado pelos membros da sua igreja — da qual ele está saindo — mas sofrer ataques violentos de bolsonaristas ao revelar seu apoio a Lula.
"A galera da igreja eu discuto e 'já era'", diz ele, "mas os malucos soltos e armados por ai... Sem contar militantes na internet invadindo contas das pessoas etc."
A violência política que ele teme é bem real. No início de setembro, o fiel Davi Augusto de Souza foi baleado dentro de uma igreja da Congregação Cristã do Brasil em Goiânia. O tiro, que atingiu suas pernas, foi disparado por um policial militar à paisana por causa de desavenças políticas entre um pastor da igreja e o irmão de Davi.
Leonardo frequenta a mesma igreja batista, na zona oeste de São Paulo, há 30 anos. Seus pais, sua esposa e a família dela fazem parte da congregação. Ali também fez amigos e ganhou habilidades que depois transformou em uma carreira. Seu descontentamento, embora tenha se agravado nos últimos anos, é "um desgosto de longo prazo".
"Desde moleque, cantei, atuei, me tornei técnico de som, liderei equipe de som. Toquei em orquestra, fiz parte do ministério de dança. Minha esposa também nasceu na igreja, a gente tem foto junto no berçário", conta.
"Eu realmente me vi como parte da igreja por 3 décadas. Minha igreja é uma comunidade com quase 100 anos. Tem um peso aí, um orgulho de ter sido parte disso. Mas de repente você não se sente mais parte disso. Porque teus valores são outros."
Leonardo diz que na comunidade "não se fala abertamente de partido A ou B" mas existe um apoio velado à direita. O religioso conta que notícias falsas contra candidatos de esquerda se espalham "que nem fogo no palheiro" nos grupos de WhatsApp da comunidade.
Ele enumera outras discordâncias: "Temos uma gestão majoritariamente branca e pouco voltada de fato para a realidade da comunidade. A postura das lideranças femininas ainda frisa a ideia de submissão da mulher e coloca o homem como provedor da casa, algo que na periferia é totalmente desconectado da realidade, as famílias são chefiadas e sustentadas por mulheres."
Leonardo conta que já viu de um pastor convidado posições que enxergam o ensino superior como "uma influência negativa" na fé do jovem.
"Do tipo, de ir pra faculdade e se desviar da igreja. Isso chama atenção porque as igrejas batistas sempre foram mais voltadas para uma linha racional que preza o estudo, a academia. E de certa forma é até elitista por conta disso. Mas nos últimos anos (a igreja batista) vem se desfigurando", afirma.
Seu irmão, que é gay, já saiu da igreja há muitos anos. Mas Leonardo ainda procura uma outra congregação — ele não quer abandonar a religião.
Indignação
O advogado Felipe*, de 26 anos, que trocou uma igreja da Assembleia de Deus na zona leste de São Paulo por uma congregação presbiteriana na mesma região, diz que viu uma lenta entrada da política no púlpito culminando em apoio explícito a Bolsonaro — que, para ele, foi decisivo para o rompimento com a comunidade.
"Era uma coisa um pouco velada até virar uma coisa muito explícita. Em 2010 eles já diziam em quem não votar — em candidatos de esquerda", conta ele.
No começo, diz, suas divergências eram "sanáveis". Mas quando o bolsonarismo se infiltrou no meio evangélico, se tornou impossível continuar.
"Foi um show de horror a adesão da igreja evangélica como um todo ao Bolsonaro. Não só não só da Assembleia de Deus, mas batistas, presbiterianas. Foi um ponto de muita ruptura", conta.
"Eu ficava duplamente ofendido. Sentia muita raiva e indignação com o uso do púlpito para finalidades que ele não tem — ele não é o espaço para política partidária. E também sentia que a igreja não me aceitava ali", diz ele, que diz que tornou sua revolta bastante pública.
"Um dia um pastor subiu no púlpito e começou a falar que Deus tinha eleito Bolsonaro e a esquerda era nojenta. Eu saí do culto — eu tocava na igreja, então estava em um lugar bem visível — e as pessoas perceberam", conta Felipe.
O advogado também acabou entrando em muitas discussões com os irmãos de igreja nas redes sociais que foram esgarçando sua relação com a comunidade.
"A última gota foi em 2020 quando o Bolsonaro foi na minha igreja, no auge da pandemia, a gente estava vivendo toda aquela desgraça, e fizeram uma entrada triunfal pra ele", recorda.
Ele diz que trocar de igreja não foi uma decisão fácil — e foi um processo longo até que finalmente encontrou, neste ano, um lugar em que ficou feliz em servir. Sua igreja hoje está longe de ser progressista.
"Mas a gente consegue ser uma comunidade independentemente do posicionamento político que as pessoas têm ali", afirma.
Suporte
Apesar de todas as dificuldades emocionais que uma pessoa de classe média passa ao trocar de congregação, a possibilidade de mudar de igreja ainda é, de certa forma, um privilégio, diz o cientista político Vinicius do Valle, que realiza pesquisas no meio evangélico há mais de dez anos.
Isso porque, para pessoas mais pobres, a comunidade religiosa da qual fazem parte é a "coluna de sustentação" de ainda mais aspectos de suas vidas.
Além da fé e da religiosidade, a igreja na periferia traz uma série de apoios "muito palpáveis", explica o pesquisador, que é autor do livro Entre a Religião e o Lulismo.
"Envolve uma série de bens, ajuda mútua e sustentação para a vida. Para saber de vagas de trabalho, por exemplo. Para quem precisa alugar um lugar para morar e não tem fiador, para quem precisa de um lugar para deixar os filhos — boa parte está aberta o tempo todo", afirma.
"Quem tem uma rede de apoio ampla percebe que esse tipo de ajuda e contato acontece toda hora. Mas para muitas pessoas que são pobres, sozinhas, que vêm para São Paulo de outros lugares, essa rede só existe na igreja", diz o pesquisador.
São comunidades religiosas que oferecem serviços e ocupam espaços onde o Estado falta, segundo Valle. "Em muitos lugares você tem só a igreja, por isso que ela acaba tomando esse tamanho. Se o pastor diz que um candidato vai dificultar a ação das igrejas, mesmo que não seja verdade, isso gera um medo muito grande."
Ele explica que na periferia, as igrejas funcionam como espaço educativos e formativos. "Na escola bíblica se melhora a leitura, se dá um recurso pedagógico a mais. Além disso, elas viraram centros culturais: têm peças de teatro, grupos musicais, congressos de homens, congressos de mulheres, apresentações de crianças."
Segundo Valle, todos esses recursos fazem com que um rompimento com a comunidade por divergências políticas seja ainda mais doloroso e difícil, pois significa abandonar essa rede que proporciona segurança — e não há garantia de encontrá-la em outra congregação.
Isso também torna mais difícil que a pessoa manifeste uma opinião que não seja majoritária na comunidade por medo do isolamento.
"Existem muitos evangélicos que discordam do apoio a Bolsonaro. Mas muitas vezes eles simplesmente se calam", diz.
*os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados
- Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63055714
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