Com a proximidade das eleições e em meio a um pleito fortemente polarizado, um tema em particular vem despertando interesse de especialistas e da imprensa: o voto nos candidatos mais bem cotados à presidência — Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) — poderia estar subnotificado?
Alguns passaram a descrever esse fenômeno como "voto envergonhado" ou até "amedrontado", ou seja, eleitores deixariam de expressar sua preferência quando questionados em sondagens eleitorais por "vergonha" ou "medo" — em linha com uma teoria de comunicação de massa conhecida como "espiral do silêncio" e usada para descrever a formação da opinião pública.
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Segundo essa teoria (leia mais no fim desta reportagem), o indivíduo tende a omitir sua opinião quando ela contraria a opinião dominante, por medo de isolamento social.
As últimas pesquisas mostram Lula à frente de Bolsonaro nas intenções de voto, com possibilidade de vitória do petista ainda em primeiro turno.
Não há consenso entre especialistas ouvidos pela BBC News Brasil sobre subnotificação de votos.
O cientista político Antonio Lavareda, que é presidente do Conselho Científico do Ipespe (Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas) e ligado à Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), foi o primeiro a levantar essa hipótese, com vantagem para Bolsonaro.
Já Felipe Nunes, diretor do instituto de pesquisas Quaest, diz exatamente o contrário: que há subnotificação de votos a favor de Lula. E que isso se dá por "vergonha" que parte do eleitorado sente ao votar no petista. Nunes diz que três estudos realizados por ele e sua equipe comprovam esse voto "envergonhado ou amedrontrado".
Por outro lado, Márcia Cavallari, do Ipec, e Luciana Chong, do Datafolha, embora reconheçam a 'espiral do silêncio' como fenômeno da opinião pública, sobre a qual dizem haver vários estudos, afirmaram que não encontraram evidências de subnotificação de votos em nenhum dos candidatos.
Todos ressalvaram que isso só poderá ser verificado com exatidão depois das eleições.
Vantagem para Bolsonaro
Lavareda sugeriu a possibilidade de subnotificação de voto a favor de Bolsonaro como possível explicação para a discrepância entre os resultados das recentes pesquisas de intenção de voto presenciais e por telefone. Em ambas, Bolsonaro aparece atrás de Lula, porém, na primeira modalidade, a diferença entre os dois candidatos é maior.
Ele diz acreditar que eleitores do atual presidente, especialmente entre as camadas de menor renda e escolaridade, nas quais Lula tem intenção de voto muito maior, estariam mais suscetíveis a omitir a preferência pelo atual presidente, quando questionados presencialmente sobre em quem votariam, diante de amigos ou vizinhos. Por outro lado, por telefone, ficariam mais "relaxados" para dizer a verdade.
"Alguns indivíduos, quando têm uma opinião sobre um assunto relevante, mas discrepante da maioria do seu grupo social, omitem essa atitude ou preferências para evitar entrar em conflito e ficar apartado do respectivo grupo", explica, em entrevista à BBC News Brasil.
"Minha hipótese é que isso pode acontecer entre pessoas de baixa renda, nas quais Lula tem três vezes mais intenção de voto do que Bolsonaro, sobretudo em pesquisas presenciais. Nas pesquisas telefônicas, isso não ocorre ou se dá com muito menor intensidade. Esse eleitor que fica ressabiado em expressar sua preferência conflitante com a preferência do grupo tem que 'confessar' essa preferência em público, e isso pode produzir algum constrangimento", acrescenta, reforçando de que se trata apenas de uma "suposição" e que não há dados concretos que a comprovem.
Mas se essa hipótese realmente for verdadeira, o mesmo não poderia acontecer com eleitores de Lula entre os mais ricos, nos quais Bolsonaro tem intenção de voto maior?
"Sim, claro. Mas a magnitude disso, em termos relativos, é muito menor. Há muito menos eleitores nas camadas mais altas da população do que nas camadas mais baixas, portanto, o impacto porcentual nas pesquisas de intenção de voto é bem menor", pondera.
Lavareda destaca ainda que não se trata de um "voto envergonhado".
"A minha hipótese é que não é envergonhado. É um voto de um cidadão em uma eleição altamente polarizada como essa prefere resguardar suas opiniões e atitudes para si próprio, para evitar acentuar conflitos em seu grupo social. Não é um voto envergonhado; o eleitor não tem vergonha de ter aquela preferência. Ele omite a preferência. É a espiral do silêncio e não espiral da vergonha", argumenta.
"Na percepção desse eleitor, ele é minoritário demais e há muita intolerância para um comportamento discrepante do que é modal no grupo", acrescenta.
Lavareda diz ainda acreditar que as manifestações de 7 de setembro "podem ter eventualmente "liberado" esse voto oculto entre as pessoas de menor escolaridade e renda. Ao reforçarem uma percepção de sua forte presença na sociedade".
"Mas esses 38% de pesquisa posterior a elas devem nos deixar alertas para essa hipótese (de subnotificação)", ressalva.
O percentual citado por Lavareda consta em uma pesquisa recente do Ipespe que perguntou "quando o assunto é eleição [você] evita dizer em quem vai votar, diz apenas se perguntado, ou fala abertamente quem é seu candidato?"
Do total de entrevistados, 38% responderam que evitam dizer quem vai votar; 19% dizem apenas se perguntados, 38% falam abertamente quem é seu candidato e 5% dizem não ter candidato ou não sabem ou não responderam.
E entre os que evitam dizer em quem vão votar, a maior parte (41%) tem Ensino Fundamental e ganha até dois salários mínimos (42%).
Vantagem para Lula
Felipe Nunes, da Qaest, pensa diferente.
"Não haveria por que o eleitor de Bolsonaro confessar o voto numa direção em 2018 e agora ter motivo para escondê-lo", acrescenta.
"Fizemos estudos que mostram que o eleitor do Lula não tem a mesma facilidade que o eleitor do Bolsonaro de expressar sua preferência em seu candidato, o que explicaria porque vemos uma diferença tão grande nas ruas, por exemplo, em relação a manifestações."
"Ele tem vergonha de votar no Lula, ou até medo. Muito por causa dos escândalos de corrupção em que o PT esteve envolvido. Já o eleitor de Bolsonaro é muito mais verbal; ele 'aparece mais', o que dá a falsa impressão de que as pesquisas de intenção de voto não estão captando a vontade do povo", explica.
Nunes ressalva que esse comportamento do eleitorado petista "não tem a ver com renda".
Ele lembra que numa pesquisa da Quaest de abril sobre quem o entrevistado preferia que vencesse as eleições, 31% deles expressavam abertamente a preferência por Bolsonaro e que 30,7% preferiam o atual presidente como vencedor. Ou seja, não haveria voto "envergonhado" em Bolsonaro em 2022.
Mas a mesma pesquisa mostrou naquele momento que 41,8% dos entrevistaram expressaram abertamente preferência pela vitória de Lula, enquanto que 42,8% preferiam o candidato do PT fosse presidente outra vez.
"O aumento de 1 ponto percentual favorece a tese de que, se houver voto "envergonhado" nesta eleição, ele tem mais chance de ser do eleitor de Lula do que de Bolsonaro", assinala Nunes em artigo desta quarta-feira (21/9) intitulado "Entre o voto envergonhado e o voto amedrontado" e publicado pela Revista Piauí.
No texto, Nunes recorre à teoria da "espiral do silêncio" para afirmar que, em sua visão, o "enquadramento moralista" adotado por eleitores de Bolsonaro ao falarem de Lula, "com ênfase sobretudo no tema da corrupção, estaria incentivando apoiadores de Lula à autocensura".
"Tanto o medo quanto a propensão à autocensura do voto são maiores entre eleitores de Lula do que entre os de Bolsonaro. Assim, além do voto "envergonhado" — em razão da incapacidade do eleitor de Lula de expressar sua preferência num ambiente de cobrança por uma posição socialmente desejável contra a corrupção -, identificamos uma autocensura causada também pelo medo de intimidação social ou mesmo de violência", conclui Nunes no artigo, escrito em parceria com Frederico Batista, professor da Universidade da Carolina do Norte em Charlotte e pesquisador visitante da Quaest.
Sem subnotificação
No entanto, outras diretoras de institutos de pesquisa eleitorais ouvidos pela BBC News Brasil, embora reconheçam a 'espiral do silêncio' como fenômeno da opinião pública, sobre a qual dizem haver vários estudos, afirmaram que a hipótese levantada por Lavareda não é corroborada, por enquanto, por dados concretos.
"Tenho colocado nos meus questionários em quem você votou no segundo turno de 2018 e não há subnotificação de eleitores bolsonaristas", diz Márcia Cavallari, CEO do Ipec, instituto fundado por parte da equipe que atuava no antigo IBOPE.
Segundo ela, institutos de pesquisa normalmente usam métodos para tentar minimizar a possibilidade de subnotificação de eleitores, ora por meio de "perguntas de controle, de comportamento eleitoral no passado" ou "pedindo ao entrevistado para votar secretamente, num tablet, sem ele ter que falar ao entrevistador em quem ele está votando".
"Esse fenômeno ('espiral do silêncio') é muito antigo e sempre foi estudado; há mecanismos de minimizar isso, mas isso não impede que aconteça. Mas não sabemos se está acontecendo agora".
Luciana Chong, diretora do Datafolha, acrescenta que, por enquanto, não há dados que comprovem subnotificação de votos.
"Temos um aplicativo que simula a urna eletrônica no qual o entrevistado pode reproduzir o voto dele. Realmente, não há dados que me indiquem que isso (subnotificação) possa estar acontecendo. O que faz é sempre ter alguns mecanismos para tentar entender isso melhor", diz.
"Sempre fazemos esse controle e não percebemos isso em outras eleições. Parece algo residual até agora. Mas cada eleição é diferente".
Ou seja, só teremos a certeza sobre a subnotificação de votos após as eleições.
'Espiral do silêncio': a teoria
A 'espiral do silêncio', aludida pelos especialistas, é uma teoria da ciência política e comunicação de massa desenvolvida nas décadas de 60 e 70 pela alemã Elisabeth Noelle-Neumann.
Segundo essa teoria, a vontade das pessoas de expressar suas opiniões sobre questões públicas controversas é afetada pela percepção — amplamente inconsciente — que elas têm dessas opiniões como populares ou impopulares.
Em outras palavras: a percepção de que a opinião de alguém é impopular tende a inibir ou desencorajar sua expressão, enquanto a percepção de que é popular tende a ter o efeito oposto.
Noelle-Neumann decidiu estudar o que levou à surpresa das eleições federais alemãs de 1965. E fez uma descoberta surpreendente sobre a pesquisa eleitoral realizada durante a campanha daquela ocasião.
Meses antes do dia da eleição em setembro de 1965, ela e sua equipe do Instituto Allensbach de Pesquisa de Opinião Pública lançaram uma série de pesquisas destinadas a analisar as opiniões políticas do eleitorado durante a campanha.
De dezembro de 1964 até pouco antes do dia das eleições, os resultados da pesquisa sobre as intenções de voto dos eleitores permaneceram praticamente inalterados. Mês após mês, os dois principais partidos, o governista União Democrata-Cristã - União Social-Cristã (CDU-CSU) e opositor Partido Social-Democrata da Alemanha (SDP), estavam empatados, com cerca de 45% da preferência do eleitorado cada um.
Sendo assim, seria impossível prever qual partido tinha mais probabilidade de vencer a eleição.
Porém, nas últimas semanas da campanha, a situação mudou repentinamente, com os resultados da pesquisa mostrando uma virada de última hora em favor da CDU-CSU. A porcentagem de entrevistados que disse que pretendia votar na CDU-CSU subiu de supetão para quase 50%, enquanto a parcela que pretendia votar no SDP caiu para menos de 40%. No final, o resultado da eleição confirmou o que as pesquisas haviam indicado: a CDU-CSU venceu com 48% dos votos, contra 39% do SDP.
Curiosamente, enquanto as intenções dos eleitores permaneceram inalteradas ao longo de muitos meses, suas expectativas em relação ao resultado da eleição mudaram drasticamente durante o mesmo período. Em dezembro de 1964, a porcentagem de entrevistados que esperava a vitória do SDP era quase a mesma que a parcela que esperava uma vitória da CDU-CSU. Mas, então, os resultados começaram a mudar: a porcentagem de entrevistados que esperava uma vitória da CDU-CSU aumentou continuamente, enquanto o SDP perdeu terreno.
Já em julho de 1965, a CDU-CSU estava claramente na liderança em relação às expectativas dos eleitores e, em agosto, quase 50% esperavam que o partido venceria. No final da campanha, um número considerável de ex-apoiadores do SDP ou eleitores indecisos votaram no partido que acreditam que sairia vitorioso.
Noelle-Neumann investigou as causas sobre por que isso poderia ter acontecido. Ela suspeitou que uma visita da rainha Elizabeth 2ª à Alemanha em maio de 1965, durante a qual ela foi frequentemente acompanhada pelo chanceler alemão democrata-cristão, Ludwig Erhard, pode ter criado um clima otimista entre os partidários da CDU, levando-os a proclamar publicamente suas convicções políticas. Como resultado, os partidários do opositor SDP podem ter (erroneamente) concluído que as opiniões de seus oponentes eram mais populares do que as suas e que, portanto, a CDU venceria.
Os partidários do SDP foram, portanto, desencorajados a articular publicamente suas próprias opiniões, reforçando a impressão de que a CDU era mais popular e mais provável de ser vitorioso.
Isolamento social
Segundo a teoria proposta por Noelle-Neumann, a maioria das pessoas tem um medo natural — e principalmente inconsciente — do isolamento social que as leva a monitorar constantemente o comportamento dos outros em busca de sinais de aprovação ou desaprovação.
Para a cientista política alemã, a fim de evitar esse isolamento, tendemos a nos abster de expor publicamente nossas opiniões sobre assuntos controversos quando percebemos que isso vai atrair críticas, desprezo, chacota ou outros sinais de desaprovação.
Por outro lado, quando sentimos que nossas opiniões serão bem-recebidas tendemos a expressá-las sem medo e às vezes de uma forma bastante intensa.
Começa, assim, um processo em espiral: o campo dominante se tornando cada vez maior e mais autoconfiante, enquanto o outro campo se torna cada vez mais silenciado.
É a 'espiral do silêncio'.
Na visão de Noelle-Neumann, contudo, a popularidade real de uma opinião não determina necessariamente se ela acabará por predominar sobre opiniões opostas. Ou seja, uma opinião pode ser dominante no discurso público mesmo que a maioria da população realmente discorde dela, desde que a maioria das pessoas acredite (falsamente) que essa opinião é impopular e se abstenha de expressá-la por medo de ficar isolada.
O objetivo de Neumann, com sua teoria, era descrever mais amplamente a formação de opinião coletiva e a tomada de decisões da sociedade em relação a questões controversas ou moralmente carregadas.
E entender como os meios de comunicação de massa — e, por que não, as pesquisas de intenção de voto — podem influenciar no comportamento da opinião pública.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62761829
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