Eleições 2022

Observadores internacionais veem atuação 'inusual' do Exército e risco de embate entre TSE e Forças Armadas

"Não existe nenhuma lei brasileira que outorgue às Forças Armadas o poder de fazer qualquer contagem de votos", diz especialista

Observadores internacionais reagiram com surpresa e preocupação à possibilidade de que as Forças Armadas tentem fazer uma contagem dos votos das eleições presidenciais de outubro por meio de uma amostragem de Boletins de Urna, os recibos que cada máquina eleitoral emite com o total de votos para cada candidato armazenados ali.

Todos os especialistas disseram que esse tipo de ação militar é "inusual" e reafirmaram que a instituição brasileira responsável por proclamar o resultado do pleito é o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que goza da "confiança internacional" na tarefa.

A BBC News Brasil conversou com integrantes de três organismos internacionais que já têm ou terão equipes em território brasileiro para acompanhar a eleição de 2022. Dois dos especialistas, no entanto, pediram para que suas identidades não fossem reveladas, para que suas opiniões não atrapalhem o trabalho de observação desenvolvido pelas equipes.

"Não existe nenhuma lei brasileira que outorgue às Forças Armadas o poder de fazer qualquer contagem de votos. Os militares têm, sim, um importante papel logístico, na distribuição das urnas pelo território brasileiro. Cada instituição cumpre a sua função. Convidamos todos os atores políticos no Brasil a aceitarem democraticamente os resultados que serão anunciados pelo único órgão que pode fazê-lo, o TSE", afirmou à BBC News Brasil Daniel Zovatto, diretor para América Latina e Caribe do International Institute for Democracy and Electoral Assistance (IDEA).

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Zovatto comandará pessoalmente uma equipe de analistas no país em outubro. Além do IDEA, observam o pleito no Brasil funcionários da Organização dos Estados Americanos (OEA), do Parlamento do Mercosul (Parlasul), do Carter's Institute, do International Foundation for Electoral Systems (Ifes) e da Rede Eleitoral da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

LR Moreira/Secom/TSE
Bolsonaro já afirmou não confiar nas urnas eletrônicas, embora admita não ter qualquer prova sobre fraude eleitoral

Em reportagem publicada nesta segunda-feira (12/9), o jornal Folha de São Paulo afirmou que as forças pretendem enviar representantes militares para 385 seções eleitorais, nas quais esses oficiais comparariam o Boletim de Urna impresso no local com as informações disponibilizadas pelo TSE. Ainda segundo a reportagem, os votos seriam contabilizados para tentar aferir, de modo amostral, o resultado da eleição.

A BBC News Brasil perguntou às Forças Armadas se existe, de fato, a intenção de fazer essa checagem a partir dos boletins de urna, qual seria a justificativa e o gasto público para tal ação. O Centro de Comunicação Social do Exército encaminhou a reportagem para o Ministério da Defesa.

Em nota, a Defesa negou que tenha pedido acesso ampliado a informações eleitorais e não informou se pretende ou não fazer checagem amostral do resultado eleitoral.

"As Forças Armadas têm atuado como uma das entidades fiscalizadoras (...), não demandam exclusividade e tampouco protagonismo em nenhuma etapa ou procedimento da fiscalização do sistema eletrônico de votação e permanecerão pautando a sua atuação pela estrita observância da legalidade, pela realização de um trabalho técnico e pela colaboração com o TSE", dizia o texto.

Já o TSE negou que os militares terão qualquer tipo de acesso privilegiado ou adicional aos votos. Os Boletins de Urna, recibos impressos por cada uma das máquinas onde se deposita os votos, já são públicos atualmente e estiveram disponíveis para que eleitores e partidos políticos verifiquem os dados e façam suas próprias contagens nas eleições recentes. Em 2022, os Boletins de Urna também serão disponibilizados pelo TSE online.

"O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) informa, em relação à apuração das eleições 2022, que não houve nenhuma alteração do que foi definido no primeiro semestre, nem qualquer acordo com as Forças Armadas ou entidades fiscalizadoras para permitir acesso diferenciado em tempo real aos dados enviados para a totalização do pleito eleitoral pelos TREs, cuja realização é competência constitucional da Justiça Eleitoral", afirmou o TSE em nota.

Cuba e Venezuela

A possibilidade da recontagem por amostragem das Forças Armadas ocorre, no entanto, em meio a uma escalada de tensões envolvendo os militares, o presidente Jair Bolsonaro, que tenta a reeleição, e a Justiça Eleitoral.

"O pior cenário para o Brasil é uma divergência entre as forças armadas e as forças civis em relação ao resultado do pleito", afirma um dos especialistas eleitorais, com experiência em acompanhar pleitos em toda a região. "Talvez os únicos países das Américas em que tenhamos o Exército desempenhando esse tipo de papel sejam Cuba e Venezuela", completou.

Bolsonaro já afirmou não confiar nas urnas eletrônicas, embora ele mesmo admita não ter qualquer prova sobre fraude eleitoral. Ele tem estimulado as Forças Armadas a enviar questionamentos e sugestões ao TSE. O órgão respondeu a todas: acatou algumas das recomendações e descartou outras.

Em abril deste ano, o atual mandatário chegou a sugerir que os militares deveriam fazer sua própria contagem de votos, e não que se esperasse o resultado proclamado "por meia dúzia de técnicos" em uma "sala secreta" do tribunal eleitoral.

"Uma das sugestões é que, esse mesmo duto que alimenta na sala secreta os computadores (do TSE), seja feita uma ramificação um pouquinho à direita para que tenhamos do lado um computador também das Forças Armadas para contar os votos no Brasil", disse Bolsonaro.

"O presidente brasileiro tem denunciado de maneira infundada o processo. Tem dito que a eleição não é segura, que o TSE não é imparcial. Vemos com muita preocupação esse tipo de fala, porque pode levar a um aumento da tensão política, ao não reconhecimento do resultado, o que seria muito grave. Já vimos com Trump o que pode acontecer", afirmou Zovatto.

Segundo outro especialista internacional, a preocupação com a repetição no Brasil de um episódio semelhante à invasão do capitólio dos EUA, em 6 de janeiro de 2021, tem escalado na comunidade internacional.

"Desde o primeiro semestre, estamos trabalhando com o TSE para as observações eleitorais, justamente para garantir transparência à decisão do povo brasileiro. As Forças Armadas não são os garantidores do processo eleitoral. Não é assim que as coisas funcionam", afirmou o especialista ouvido pela BBC que tem no currículo observações em países com alta tensão política, como o Haiti.

A quem interessa?

Ao menos dois dos especialistas apontaram que a eventual amostragem dos militares não é capaz de aferir a correção da apuração de votos pelo TSE. Isso porque seria necessário fazer uma coleta dos dados levando em conta critérios sociodemográficos, geográficos e culturais, para garantir que os eleitores representem o perfil do eleitorado brasileiro na totalidade e que os votos não estejam concentrados entre um ou outro candidato.

"A única coisa que poderia ser verificada ali pelos militares seria a zerésima dessas urnas, que mostra que não havia votos depositados nelas antes do início da votação, e a coincidência entre os dados impressos e os indicados pelo TSE. Não há como recontar votos com esse tipo de amostra", diz um deles.

Para os especialistas internacionais ouvidos pela BBC, chama a atenção que Bolsonaro, um egresso das fileiras do Exército, com um candidato a vice que é general da reserva, e atrás na disputa de acordo com as pesquisas de intenção de voto, conte com as Forças Armadas para endossar dúvidas e inseguranças em relação às eleições.

"É compreensível que pessoas comuns, que consomem informação falsa na internet, possam ter alguma confusão quanto ao processo eleitoral. Mas o que explica que uma das instituições do Estado brasileiro queira patrocinar esse tipo de dúvida contra um processo dirigido por outra parte do Estado?", questionou um dos observadores.

Para outro, tal atuação dos militares alimenta na população a percepção de que eles são "politicamente motivados", quando constitucionalmente deveriam ser agentes neutros, "desinteressados". "Pior ainda se pensarmos que, historicamente, a ditadura militar é um evento recente no Brasil", disse, em referência ao período entre 1964 e 1985.

Observadores domésticos também criticam

Brasileiros especialistas no tema também criticaram eventual envolvimento das Forças Armadas em uma apuração paralela dos votos e consideram que não cabe aos militares nem mesmo fazer alguma contabilização a partir dos boletins de urnas que estarão disponíveis publicamente.

Eles lembram que isso já é feito por outros atores, como partidos políticos, acadêmicos e movimentos sociais.

"Eu sempre achei que é suficiente a participação dos outros órgãos, das outras entidades em fiscalização. Não há necessidade das Forças Armadas. E as Forças Armadas não podem exercer papel político", criticou o advogado Alberto Rollo, especializado em direito eleitoral.

Para o estudioso das Forças Armadas Juliano Cortinhas, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), os militares deveriam se ater a sua função constitucional de proteger o país de ameaças externas. Como portadores do arsenal bélico do país, os militares não deveriam sustentar qualquer opinião política, já que podem coagir os civis no processo.

"As Forças Armadas não deveriam nem estar sendo recebidas pelo TSE. Elas não podem participar de processos internos porque elas são o braço armado. Quem vai desafiar os blindados e os tanques das Forças Armadas se elas se posicionarem e fecharem o Congresso? É muito grave que o braço armado do Estado esteja querendo participar do processo de apuração das eleições. Ao se posicionar em questões políticas internas, se tornam uma ameaça", disse Cortinhas.

Cortinhas ressalta ainda que, nesta eleição, as Forças Armadas estão diretamente envolvidas na candidatura à reeleição do presidente Jair Bolsonaro, que é ex-capitão do Exército e escolheu como candidato a vice-presidente o general da reserva Braga Netto. Na sua avaliação, é mais um motivo para que os militares não atuem na apuração dos votos.

"As Forças Armadas não são imparciais, não estão se comportando como uma força do Estado. Estão se comportando como um órgão político que tem interesse no resultado da eleição. E quem tem interesse para o resultado da eleição não pode participar do processo de apuração", defendeu o professor da UnB.

Apesar de criticarem o envolvimento das Forças Armadas, Rollo e Cortinhas veem baixo risco de isso gerar questionamentos sobre o resultado da eleição de outubro, caso os militares se limitem a checar os boletins das urnas divulgados publicamente pelo TSE.

Esses boletins têm justamente a finalidade de assegurar que os votos depositados na urna serão idênticos aos contabilizados no TSE, já que permitem que qualquer pessoa compare o boletim que é impresso ao final da votação em cada sessão eleitoral com os votos que foram transmitidos no sistema da Justiça Eleitoral. Isso impede que haja alguma fraude durante a transmissão ou contabilidade dos votos.

Referência no estudo da segurança das urnas eletrônicas, o professor Diego Aranha, que atualmente leciona no Departamento de Computação da Universidade de Aarhus (Dinamarca), também considera baixo o risco de questionamentos do resultado eleitoral a partir de eventual contagem dos militares com algumas centenas de boletins de urnas.

Como esses dados são públicos, nota Aranha, eventual contabilização das Forças Armadas poderá ser checada por terceiros.

"Não vejo risco porque terão que fazer isso em público, e vai ficar evidente que a interpretação é equivocada (caso distorçam os resultados)", destacou.

Ele ressalta, como também apontaram os observadores eleitorais internacionais, que eventual contabilização de votos a partir de uma amostra de 385 urnas não terá rigor científico para servir de referência para o resultado oficial.

"A amostra de 385 boletins serve no máximo para verificar a transmissão correta dos resultados, mas naturalmente não serve para totalização paralela (ser somada e comparada com o resultado oficial). Para isso, entendo que a amostra teria que ser muito mais cuidadosa e estratificada por estados, já que a diferença entre candidatos muda muito de uma região para outra", explicou por escrito à BBC News Brasil.

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