Por esmagadora maioria — 61,86% —, os chilenos rejeitaram a proposta de uma nova Constituição, que buscava estabelecer maiores direitos sociais e ampliar a democracia chilena. Apenas 38,14% do eleitorado votaram a favor do texto, com 99,97% da apuração oficial concluída. O resultado surpreendeu o mundo político e a própria mídia chilena. Com o voto obrigatório, 13 milhões de eleitores participaram do plebiscito, cujo objetivo era referendar a nova Constituição, em substituição à Carta de 1980, do regime de Augusto Pinochet, reformada durante o governo de Ricardo Lagos, em 2005.
O "Rechazo" da nova Constituição foi geral, vitorioso, inclusive, na Grande Santiago, onde a esquerda e a centro-esquerda sempre foram maioria. "Esse Chile não é apenas Santiago; não foi uma eleição municipal, para se falar em bairros ricos e pobres. Há um sentimento de unidade nacional que se impôs democraticamente. A esquerda mais identitária (de todos os tipos de identitarismo) fracassou em sua perspectiva hegemônica. Isso não se chama 'progressismo', já que parte dos progressistas não apoiou a opção apruebo", destaca o historiador Alberto Aggio, professor titular de História da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Franca (SP), especialista na política chilena.
Segundo ele, a disjuntiva refundação versus pinochetismo fracassou, porque era uma leitura errada do sentimento da sociedade em seu conjunto. "Não houve, da parte da 'nova esquerda', apenas um erro de cálculo, de direção e de voluntarismo; Boric corre um sério risco se não entender o que aconteceu. Sua única opção 'progressista' era e ainda é um governo 'mais amplo', com apoio da ex- Concertación; permanece o sentimento de elaborar e aprovar uma 'nova Constituição', é um sentimento majoritário no país."
Sua observação é muito importante diante do cenário eleitoral brasileiro, no qual o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é favorito, com uma narrativa voltada para o passado, ou seja, as realizações de seus dois mandatos, e uma agenda opaca em relação ao futuro, como quem deseja assumir o poder com carta branca para promover reformas políticas e institucionais. Ninguém sabe quais são essas reformas, a não ser que sejam deduzidas da autocrítica que o PT fez após o impeachment de Dilma Rousseff, o que não seria um bom sinal.
Até agora, a estratégia eleitoral de Lula está fundada no apoio eleitoral das parcelas mais pobres da população e de uma frente de esquerda, que rejeitou alianças ao centro nos maiores colégios eleitorais do país, todas viáveis quando Lula parecia imbatível. O erro da esquerda chilena foi esquecer as lições da crise do governo Allende e do golpe de Pinochet. A Convenção Constitucional autônoma, paritária, externa aos partidos e com uma maioria de independentes, que elaborou a nova Constituição, traduziu o "estallido social" de outubro de 2019 para o texto da nova Carta, na linha de ultrapassagem da democracia representativa, dita burguesa. Foi o erro.
A nova Constituição consagrava a paridade entre homens e mulheres em todos os cargos públicos; um "Estado plurinacional e intercultural", reconhecendo 11 povos e nações (Mapuche, Aymara, Rapa Nui, Lickanantay, Quéchua, Colla, Diaguita, Chango, Kawashkar, Yaghan, Selk'nam); direito à natalidade e ao aborto autônomos; Estado de bem-estar social, com educação, moradia, saúde, previdência, trabalho; a extinção do Senado e a água como bem inapropriável (a crise hídrica chilena é seríssima). Consagrava a utopia política, mas o passo foi maior do que as pernas.
A vitória de Gabriel Boric, jovem político de esquerda radical, parecia dar uma direção política mais permanente ao processo iniciado em 2019, mas o novo presidente, antevendo as dificuldades, assumiu um perfil mais conciliador, apesar da forte oposição à esquerda. A nova Constituição traduzia o desejo da esquerda chilena de refundar o país, mas essa não é a vontade da maioria dos chilenos. Está posto um novo problema, porque também não se pode voltar à velha Carta de Pinochet.
A situação do Chile serve de advertência para a frente de esquerda que se formou em torno do ex-presidente Lula. O presidente Jair Bolsonaro (PL) faz campanha com uma agenda emergencial, alavanca sua candidatura com o pacote de bondades insustentável fiscalmente. Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB) tentam oferecer alternativas de futuro, sem os mesmos lastros de poder e/ou eleitoral dos que lideram a disputa. A mesma coisa faz Felipe D'Ávila (Novo) e Soraya Thronicke (União Brasil). Lula precisa apresentar sua alternativa para o futuro e rechaçar a veleidade de que o Brasil dará uma grande quinada à esquerda. O que as pesquisas estão mostrando é outra coisa.