"Antigamente, minha mãe era uma eleitora normal", diz Danielle Helena, de 38 anos, sobre a matriarca da família — uma idosa de 70 anos que até 2018 "quase não usava o celular" e "ficava brava quando pastor falava de política".
Mãe e filha são evangélicas.
Helena, que frequenta a igreja Batista, tinha como primeira opção de voto Simone Tebet (MDB), "que tem valores cristãos como os meus". A mãe, fiel da Assembleia de Deus, vota em Jair Bolsonaro (PL).
"A gente sempre discutia em quem votar. Votávamos em quem pensava e agia parecido com a gente. Havia consenso. Mas, nas eleições passadas, ela comecou a dar ordens: 'Tem que votar em quem estou mandando e tem que ser no Bolsonaro'. Se falar em outro candidato, ela fica agressiva. Diz que todos os outros são do inferno e que Bolsonaro é um salvador. Que eu vou para o inferno. E foi ai que a coisa na família desandou", conta Helena.
A idosa, ela conta, se encantou pelo YouTube. Junto à igreja, a rede se tornou sua principal fonte de informações.
"Ela começou a ver muito vídeo. Descobriu vários pastores que pregam sobre Bolsonaro ser um messias, um enviado de Deus. Pastores que nem moram no Brasil. E, quanto mais ela assiste, mais recomendações ela recebe. E mais vídeos ela vê. E mais radical ela vai ficando."
Alvo de críticas constantes da mãe, que diz que a filha "não tem mais salvação" por não querer apoiar Bolsonaro, Helena nota uma radicalização na postura da idosa nos últimos 4 anos.
"De repente, ela que é evangélica de berço agora diz que pensa em ter uma arma em casa. 'Só para ter', ela me diz. A mente dela está tão cauterizada pelos discursos que ela não entende mais armas como algo que tem a ver com morte, como algo que pode matar", afirma.
"E os pastores têm um discurso muito forte de que nada acontece sem Deus querer. Então, se matar ou morrer alguem, é 'porque Deus quis'."
'Dói porque vem de quem eu amo'
Além das armas, a mãe de Helena, evangélica fervorosa, hoje relativiza falas recentes do presidente, como as cinco vezes em que se autoproclamou "imbrochável" durante as comemorações do bicentenário da Independência do Brasil.
"É isso que mais deixa a gente triste. Lá em casa nunca se pode falar um palavrão. Agora ela acha que tudo é graça, que é um jeito divertido de falar para o povo mais simples entender", diz.
A idosa - que não estava disposta a falar com a reportagem, segundo a filha - não é a única a cair num ciclo de recomendações políticas no YouTube.
Como a BBC News Brasil mostrou recentemente, filhos e aliados próximos do presidente Bolsonaro foram peça-chave no compartilhamento de desinformação sobre "perseguição a cristãos" durante a campanha eleitoral a milhões de brasileiros.
"Percebemos oportunismo de muitos políticos ligados ao bolsonarismo para usar os ambientes de troca de informação dos evangélicos para ganhar confiança, disseminar desinformação e angariar votos", disse recentemente à BBC a professora Rose Marie Santini, fundadora do NetLab, laboratório vinculado à Escola de Comunicação da UFRJ dedicado a estudos de internet e redes sociais.
"As pessoas estão mais informadas em relação ao perigo das fake news do que estavam em 2018, quando muitos foram pegos de surpresa. Mas certamente esse tipo de desinformação com fundo religioso terá grande impacto no resultado", disse Magali Cunha, doutora em Ciências da Comunicação, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e editora-geral do Coletivo Bereia, especializado em checagem de notícias falsas com teor religioso.
As mensagens — compartilhadas não só por políticos influentes como também por usuários comuns — associam candidatos de esquerda, principalmente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a falsos projetos para proibir pregação de pastores, criminalizar a fé evangélica e até retirar o nome de Jesus da Bíblia.
Na família de Helena, qualquer candidato além de Bolsonaro é alvo de duras críticas.
"Agora, ou é fé ou é inferno. Ou é Bolsonaro ou 'não conversa comigo'. Ela rompeu com muita gente na família. Tenho um tio que sempre votou no Lula, e eles sempre tiveram um bom relacionamento. Hoje, não se falam", diz Helena.
Como cristã, a filha se sente particularmente afetada pelas acusações da mãe.
"Ela diz que eu estou desviada e que perdi minha fé. Que eu não tenho mais salvação, simplesmente porque falei que não voto no Bolsonaro", diz.
"A pior discussão foi quando ela falou pra mim e que tinha perdido as esperanças em mim e que eu estava condenada ao inferno. Doeu porque afeta a crença da gente, a religião da gente. Dói mais porque, se fosse de uma pessoa estranha... mas é a minha mãe, alguém que viveu a vida toda do meu lado e que eu amo."
Medo de ir para a rua
Como muitos brasileiros, Helena pretende passar todo o domingo de votação em casa, longe de qualquer possibilidade de conflito.
"Tenho medo do que possa acontecer na rua. No domingo a gente não vai sair de casa, ficamos com medo até de justificar o voto. Minha preocupação é as pessoas se revoltarem. Que alguém vá com camisa do Lula e alguém parta para cima. Tem muita gente com arma", diz.
As últimas semanas foram marcadas por uma série de episódios ligados a violência política em diferentes partes do Brasil.
Entrevistadores de institutos de pesquisa foram agredidos com chutes e socos por apoiadores do presidente.
Só no último dia 13, o instituto Datafolha contabilizou dez episódios de ataques em municípios de diferentes locais: São Paulo, Minas Gerais, Alagoas, Maranhão, Goiás, Pará, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
Um dos ataques mais emblemáticos aconteceu em julho, na festa de aniversário do dirigente do PT em Foz do Iguaçu (PR), assassinado a tiros pelo agente penitenciário federal Jorge Guaranho, apoiador de Bolsonaro.
No sábado (24), um homem que vestia uma camisa com o rosto de Bolsonaro em um bar em Santa Catarina morreu após ser atacado com uma faca por um apoiador do PT. A polícia ainda investiga se o crime teve motivação política.
No mesmo dia, no Ceará, outro homem morreu após tomar facadas em uma discussão sobre política - dessa vez o autor seria um apoiador de Bolsonaro.
'Abri mão do direito de votar em nome da convivência familiar'
"Já deu tanta briga dentro de casa e é tão estressante que decidimos abrir mão do direito de votar em nome do mínimo de convivência familiar", diz Helena, afirmando que a abstenção seria a única forma de aliviar a tensão familiar.
"Meu irmão mora com ela, ele tem 30 anos. Ele quer votar no Lula, mas ela já falou que põe ele para fora de casa. Ele pensou: 'mesmo se eu votar no Bolsonaro, não tenho como provar e ela vai achar que estou mentindo'. Ele ficou sem escolha e decidiu levá-la até a sessão eleitoral, não votar, e passar o resto do dia ao lado dela para ela ter certeza", diz.
"Eu pensei a mesma coisa: se votar em outro candidato, vai ser um inferno ela brigando com a gente. Se votar no Bolsonaro, não vai acreditar. Então, conscientemente não fiz a transferência do meu título e não pedi voto em trânsito. Estou impedida de votar."
À BBC News Brasil, diretores de institutos de pesquisas disseram que é impossível prever a abstenção no primeiro turno — caso de Helena e do irmão. Este pode ser um importante fator para que as eleições só se encerrem depois do segundo turno.
Nas eleições de 2018, por exemplo, a abstenção foi de 20,3%, o nível mais alto desde 1998, quando 21,5% do eleitorado não compareceu às urnas.
Em 2010, de 18,1%. Em 2006, de 16,7%. E em 2002, quando Lula se tornou presidente pela primeira vez, de 17,7%.
Numa eleição em que a disputa por cada voto pode decidir o pleito ainda no primeiro turno (o candidato mais votado tem que ter a maioria absoluta dos votos válidos para assegurar a vitória), essas pequenas diferenças porcentuais podem fazer a diferença, dizem eles.
Luciana Chong, diretora do Datafolha, diz que se o nível de abstenção se mantiver como o de 2018, isso pode "desfavorecer Lula, uma vez que o perfil dessa abstenção é próximo ao perfil dos eleitores dele".
"Mas precisamos avaliar se esse perfil de abstenção se manterá", acrescenta.
Felipe Nunes, diretor do instituto de pesquisas Quaest, concorda. "Se a abstenção seguir o padrão normal, sim, pode dificultar Lula vencer no 1º turno."
E Márcia Cavallari, CEO do Ipec, também. "Nas eleições de 2018, de acordo com o TSE, a abstenção foi maior entre os menos escolarizados e isso pode sim impactar na votação de Lula já que ele tem uma boa votação neste segmento."
Outro elemento que pode mexer nessa xadrez eleitoral é a taxa de comparecimento dos eleitores dos outros candidatos.
Segundo o Datafolha, quase 90% dos apoiadores de Lula e Bolsonaro têm ao menos um pouco de vontade de votar. Entre os eleitores de Ciro Gomes, 34% não têm "nenhuma vontade" de ir às urnas. No eleitorado de Simone Tebet, essa taxa é de 40%.
Como lembra o colunista da Folha de S.Paulo Bruno Boghossian em artigo recente, "o baixo compromisso de eleitores de Ciro e Simone pode ser favorável ao ex-presidente. Se parte não aparecer para votar, o número de votos válidos de que Lula precisa para vencer no primeiro turno fica menor. Esse grupo também pode ajudá-lo se aderir ao voto útil".
Você também pode ter sua história pessoal transformada em reportagem nessas eleições — clique no link abaixo.
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.