As pesquisas irão dizer se valeu a pena a participação do presidente Jair Bolsonaro (PL) e da primeira-dama Michele no funeral da rainha Elizabeth II, que ganhou conotação de ação eleitoral oportunista. A rigor, seria um gesto de grande cortesia, ainda mais porque é um rito de passagem no qual o rei Charles III, simultaneamente, foi consagrado como seu sucessor.
Mas haveria a desculpa da campanha eleitoral para não ir, que seria perfeitamente aceitável. O brasileiro não é uma estrela ascendente da política internacional, principalmente no Ocidente, nem foi um convidado de honra da família.
A morte de Elizabeth II era uma notícia previsível, mas foi inesperada. Ela parecia eterna, principalmente depois de milhões de memes nas redes sociais exaltando sua longevidade. Entretanto, a morte sempre é um fato com grande poder de irradiação e repercussão, apesar da sua previsibilidade, porque só se morre uma vez.
O falecimento concentra e realça todos os acontecimentos de uma vida, emoldurado ainda mais pela longa duração dos funerais, acompanhado em tempo real pela mídia internacional durante 10 dias. Elizabeth II reinou por 70 anos, encabeçando uma monarquia que soube administrar a decadência do Império Britânico e, aliada aos Estados Unidos, manteve sua influência internacional após a descolonização.
A vida de Elizabeth II serve de paradigma para as cortes europeias, com as quais mantinha fortes laços familiares, e atravessou todas as crises internacionais do pós-II Guerra Mundial. Não havia a menor dúvida de que seu funeral seria um grande evento midiático, quando nada porque resgatou um ritual fúnebre sofisticado, que não se via desde a morte de seu pai, o rei George VI, em 1952, reiterando o fascínio exercido pela aristocracia junto ao povo britânico.
Entretanto, Bolsonaro pisou na bola ao se manifestar a apoiadores da sacada da embaixada do Brasil em Londres. Seria apenas mais um chefe de Estado a prestigiar o funeral, cujo cerimonial deu muito mais importância à família real britânica e à realeza europeia do que aos políticos representantes dos regimes republicanos, fantasmas que rondam o rei Charles III e seus descendentes.
A repercussão negativa do encontro de Bolsonaro com seus apoiadores junto à mídia internacional reverberou no Brasil. O efeito é exatamente o contrário do que o presidente esperava ao viajar para o Reino Unido.
Questionado pela imprensa, como de hábito Bolsonaro reagiu irritado: "Você acha que eu vim aqui fazer política? Pelo amor de Deus, não vou te responder. Não tem uma pergunta decente? Compara o Brasil com o resto do mundo", disse.
Mas misturou a morte de Elizabeth II com a política e as eleições no Brasil: "Todo mundo vai ter um julgamento final. O julgamento vai ser pelas suas ações e omissões. Todo aquele que trabalhou contra o próximo ou que se omitiu, na hora em que poderia ajudar, segundo as escrituras, para quem acredita, vai ter o seu veredito. E lá não tem gente — como alguns do Supremo, já vão falar que eu estou criticando o Supremo — para 'descondenar' uma pessoa e torná-la elegível", acrescentou.
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Espírito da coisa
Antes, ao conversar com apoiadores, Bolsonaro também havia atacado o petista Luiz Inácio Lula da Silva, seu principal adversário, que lidera as pesquisas de intenções de voto: "Como está a Europa perto do Brasil? Existe ameaça de fome aqui? Prateleira vazia, aumento de preço... Por que a insistência em querer botar um ladrão de volta na Presidência? Alguém acha que é uma maravilha ser presidente? Botar um ladrão, com aquela quadrilha toda, na Presidência".
Numa crônica intitulada Semiótica dos Ritos Fúnebres, publicada no livro Banalogias (Objetiva), o filósofo carioca Francisco Bosco tece considerações muito interessantes sobre a morte e os velórios. Segundo ele, qualquer cadáver encerra em si toda a dinâmica do sublime: não é "ser" nem "ente", nem "sujeito" nem "objeto". Bosco explica: "O cadáver já não é vida, mas tampouco é a morte em sua condição de certeza encoberta ou fatalidade abstrata. O cadáver é a morte viva. Ora, a morte viva, diante de nós vivos, é precisamente a experiência do sublime".
O velório seria uma experiência do sublime. A fila dos pêsames, uma espécie de rito de compensação coletiva pela perda. "Oferece-se, em primeiro lugar, a própria dor, como para fazer surgir uma fraternidade, a comunidade dos irmanados pela perda. Chorar a perda do morto é também homenageá-lo: elogio que se dirige aos imediatamente próximos do morto como uma compensação", explica Bosco. Parece que Bolsonaro não entendeu o espírito da coisa no funeral de Elizabeth II.
Politicamente, o pior não é isso. Bolsonaro tem uma relação esquisita com a morte. Já deu inúmeras provas disso. Durante a pandemia de covid-19, que ontem registrou 685 mil mortos, não demonstrou a menor empatia com os familiares das vítimas, nem mesmo durante a crise nos hospitais de Manaus, quando dezenas de pessoas morreram por falta de oxigênio e foram enterradas em cova rasa. Daí a dúvida sobre o custo-benefício eleitoral de sua ida aos funerais de Elizabeth II.
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