“Eu tive o prazer de atuar como promotor eleitoral na minha primeira comarca em Aguaí, estado de São Paulo, 30 mil habitantes. Aqueles que como eu, juízes ou promotores ou fiscais, atuaram, sabem bem do que eu estou falando. Do desvirtuamento das urnas, dos votos riscados, da caneta que se colocava no punho. E a Justiça Eleitoral, com coragem, com competência, com transparência, simplesmente encerrou essa nefasta fase da democracia brasileira”.
A lembrança nada saudosa reproduzida acima é um trecho do discurso de Alexandre de Moraes durante a cerimônia de sua posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 16 de agosto. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), que coordenará as eleições gerais de 2022, cita ali algumas das várias formas de fraudar os pleitos durante o período anterior às urnas eletrônicas. A ampla gama de possibilidades de adulterar o resultado final da votação evidencia a fragilidade do processo.
O coordenador eleitoral do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), Edson de Resende Castro, assim como Moraes, atuou como promotor em eleições no interior. Em entrevista ao Estado de Minas, ele recordou algumas fraudes comuns durante o tempo das eleições manuais. “Na apuração, por exemplo, aconteciam dois problemas básicos.
Um que a gente poderia chamar de fraude mesmo, que era quando o escrutinador pegava um voto em que o eleitor escreveu, por exemplo, 3. Aí o escrutinador, de má fé, completava ali ou interpretava como sendo 8, por exemplo. O 5 virava 6. Assim, você tinha uma margem muito grande para fraude. Alguém pode dizer: ‘ah, mas tem fiscal ali’. Sim, mas para transformar um 5 em 6 é uma fração de segundo, às vezes completava à caneta, outras vezes nem completava, simplesmente colocava num montinho do candidato, até porque os escrutinadores são todos eleitores também, todos tinham suas preferências”, conta.
O promotor também citou uma forma de fraude chamada de “mapismo”. Nesta modalidade, o presidente de mesa, ao preencher o boletim com os resultados parciais da apuração, alterava as linhas ou colunas, invertendo o número de votos entre candidatos para favorecer um deles. “Quando terminavam de contar ali na mesa, passavam aquilo para um mapa. Na hora de passar, trocavam uma linha. O candidato X tinha um voto, o outro tinha 50, e se invertia”.
A ex-vereadora de BH e deputada estadual por Minas Luzia Ferreira relembra outra forma de fraude para a qual ficava em alerta em seus tempos de fiscal nas apurações. “Às vezes acontecia de uma concentração acima da média para um candidato só em uma urna e isso chamava a atenção. Acontecia também de haver vários votos com a mesma grafia, o que também era indicativo de fraude, ainda mais se os votos fossem todos para o mesmo candidato. Poderia mostrar uma falsificação. Acontecia até de uma pessoa já entrar com a cédula pronta e colocar na urna”.
Extravios
As formas de fraude lembradas pelos entrevistados da reportagem figuram na lista de irregularidades comuns do período de eleições manuais elencadas no site do TSE. Além delas, são citados problemas como o extravio de urnas, ou a troca por uma que estivesse já repleta de cédulas que favoreciam candidatos específicos.
No momento da votação, era possível também que mesários preenchessem as cédulas que sobraram na seção eleitoral e colocassem na urna. Outra forma de fraude ocorria quando um eleitor depositava um papel qualquer na urna, levava a cédula oficial para fora da sala de votação, onde alguém a preenchia e entregava a um próximo votante. Este depositava a cédula preenchida e retornava com uma em branco e o processo seguia assim por diante.
Na apuração, além das práticas lembradas pelo promotor Edson de Resende, os escrutinadores poderiam agir incluindo o número de um partido em cédulas onde o eleitor só havia indicado o nome do candidato. Isso faria com que o voto fosse computado para a legenda, que se sobrepunha ao nome escrito.
Os votos em branco também poderiam ser preenchidos por um apurador mal-intencionado. Embora os eleitores só pudessem usar canetas azuis ou pretas e os escrutinadores só usassem a cor vermelha, havia casos de funcionários que levavam canetas escondidas ou trocavam a tinta.
Na chamada ‘fraude cantada’, quem informava os números da apuração para que o presidente da mesa os registrasse no mapa eleitoral trocava os valores para favorecer um candidato específico.
Saiba Mais
Proposta rejeitada
Em agosto do ano passado, a Câmara dos Deputados rejeitou a última proposta formal de trazer de volta o papel ao primeiro plano das eleições brasileiras. De autoria da deputada federal bolsonarista Bia Kicis (PL-DF), a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 135/19, previa que as urnas eletrônicas gerassem um comprovante impresso dos votos, que poderiam ser auditados caso houvesse desconfiança nos resultados apurados de forma informatizada. A ideia foi reforçada diversas vezes pelo presidente Bolsonaro, e as Forças Armadas chegaram a fazer um desfile de tanques em frente ao Congresso Nacional durante a apreciação da PEC. Para especialistas, na prática, a medida traria de volta os problemas da contagem manual de votos.
O voto em papel no Brasil
Série especial do Estado de Minas recorda o período das eleições manuais no país, uma realidade desconhecida por boa parte dos eleitores atuais, que já começaram a escolher seus representantes políticos através da urna eletrônica.
Com entrevistas de personagens que atuaram nos pleitos com voto em papel e registros do acervo dos Diários Associados, a reportagem apresenta o cenário de obstáculos no acesso à democracia e de vulnerabilidade a erros e fraudes que tinham o poder de mudar o curso das eleições.
Colaborou Renato Scapolatempore