A possibilidade de fraudes justificava a presença de candidatos e fiscais de partido nos locais de apuração, mas a função desses atores ia além de buscar a garantia de eleições honestas. O censo de 1991 apontava que cerca de 20% da população maior de 14 anos no Brasil era analfabeta e o dado não considerava o analfabetismo funcional, quando a pessoa reconhece letras e números, mas não é capaz de interpretar textos. Este era o cenário em que o voto dependia de que os eleitores seguissem normas rígidas e manifestassem seu desejo político de forma escrita.
O resultado desta soma de fatores era uma série de problemas na hora de preencher as cédulas. Isso tornava a leitura de cada voto passível de discussões entre representantes partidários, escrutinadores e pedidos de impugnação em profusão. A ex-vereadora de BH e deputada estadual Luzia Ferreira atuou como fiscal de partido nas eleições de 1982 e conta como a função implicava em disputar a interpretação de cada voto.
“Os partidos ofereciam um treinamento para os fiscais saberem o que era permitido, o que era considerado um voto nulo, como você fazia para impugnar um voto e até uma urna quando era possível constatar indícios de irregularidades. Por exemplo, em uma urna em que 90% dos votos eram para um determinado candidato, a gente poderia identificar uma possível fraude. Então o próprio fiscal e o delegado de partido faziam um pedido de impugnação na hora e isso depois iria para um julgamento de um Juiz Eleitoral. Esse processo também acontecia se um voto não estivesse em conformidade com as regras. Se houvesse divergência entre o presidente da mesa e o fiscal que alegava o problema, isso também iria para um julgamento do juiz. A gente preenchia um documento com uma justificativa para a impugnação”, recorda.
Relembrando os tempos de fiscal, Luzia ainda conta que a atenção devia começar já no momento da chegada das urnas, quando era necessário conferir se estavam todas lacradas e com o número de cédulas condizente com o registrado no momento do fechamento, ao fim da votação. Na apuração, os fiscais precisavam conferir se o eleitor havia assinalado o X no local correto nos votos para presidente, governador, prefeito ou senador (que vinham gravados na cédula), se o nome do deputado ou vereador não estava sendo computado para um homônimo de outro partido pelo escrutinador, se voto de algum candidato adversário tinha alguma irregularidade (como estar escrito no campo errado, com nome não registrado no TRE ou com algum recado que poderia anular a cédula). Eram situações comuns e deveriam ser reportadas imediatamente, criando um clima de tensão constante.
“Era exaustivo. Muito barulho e muita gente, principalmente no início. No começo da apuração era um formigueiro de gente e todo mundo em cima dos escrutinadores, o que para eles também era incômodo. Era bem cansativo, porque são 8 horas que você ficava em pé, não podia sentar. A gente também não comia direito. Levávamos um lanche porque ficávamos com medo de sair para almoçar e o pessoal abrir uma urna e que você ia perder. Aí a gente chegava em casa, colocava o pé para cima e ficava horas ali para tentar se recuperar e, no outro dia, começava de novo. Nenhuma saudade dessa época”, afirma.
Recontagem
Adriana Fulgêncio foi servidora do TRE-MG entre 1980 e 2010 e atuou nas eleições também como chefe de cartório da 31ª Zona Eleitoral de BH. Na organização da apuração, ela recorda que, além dos pedidos de impugnação de urnas e cédulas, as solicitações de recontagem de votos eram muito comuns e inerentes à forma como o processo era realizado.
“As reclamações eram muito recorrentes. O fiscal ficava muito em cima mesmo. Eles até trocavam, um rendia o outro porque cansava muito. Na apuração, você tinha que contar cédula por cédula. Só no manusear, você pode se enganar, errar, e tem também o cansaço. Para computar as parciais, tinha um mapa onde eram preenchidos os números. Às vezes, no final do dia, com o pessoal cansado, a soma total não fechava. Aí tinha que recontar, descobrir onde estava o erro para poder corrigir e preencher todo aquele mapa de novo. Isso levava a muitos erros. É humano”, explica.
O relato de Adriana é corroborado por Cristiano Bothrel ao recordar seus dias como escrutinador e presidente de mesa na apuração das eleições manuais: “Eu vou te falar, se você abrisse uma urna e contasse, o resultado seria X. Se você recontasse, o resultado seria Y. Porque era impossível”.
O voto em papel no Brasil
Série especial do Estado de Minas recorda o período das eleições manuais no país, uma realidade desconhecida por boa parte dos eleitores atuais, que já começaram a escolher seus representantes políticos através da urna eletrônica.
Com entrevistas de personagens que atuaram nos pleitos com voto em papel e registros do acervo dos Diários Associados, a reportagem apresenta o cenário de obstáculos no acesso à democracia e de vulnerabilidade a erros e fraudes que tinham o poder de mudar o curso das eleições.
Colaborou: Renato Scapolatempore
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