Embora o cenário das apurações dos votos em papel seja descrito como um espaço caótico, barulhento e hostil, características nocivas para o momento crucial de uma democracia, as funções de cada ator naquele processo eram bem definidas. Basicamente, funcionava desta maneira: as urnas onde os votos haviam sido depositados eram levadas até ginásios, galpões ou outros espaços amplos onde mesas eram dispostas para o trabalho dos escrutinadores. Estes, por sua vez, eram os responsáveis por fazer a leitura de cada voto sob o olhar atento dos candidatos e fiscais de partido previamente cadastrados na Justiça Eleitoral.
Antes de contar, era preciso entender os votos e determinar se eles eram ou não válidos. As possibilidades para que o escrutinador determinasse que o desejo do eleitor manifestado na cédula deveria ser anulado ou para que os fiscais de partido apontassem irregularidades e pedissem sua impugnação eram várias. Erros de grafia, caligrafia ilegível, nomes marcados no lugar errado, mensagens de apoio ou críticas escritas na cédula, falta de relação entre o nome escrito e o número do partido, nome do candidato escrito de forma diferente do cadastrado na Justiça Eleitoral, entre outras questões, eram motivo constante de discussão durante os dias de apuração.
Invariavelmente, ainda que não houvesse fraudes comprovadas, toda essa disputa voto a voto resultava em uma apuração morosa e cansativa. Raquel Lott foi chefe de cartório da 26ª Zona Eleitoral de Belo Horizonte e trabalhou nas eleições entre 1988 e 2006. Ela conta como era a rotina de quem trabalhava para transformar milhões de cédulas de papel na definição de quem governaria o país ou o estado durante os próximos anos.
“Demorava demais porque eram muitos votos. A 26ª era uma zona eleitoral muito grande e com muitas sessões. Na votação manual, você não pode abrir uma urna e dizer: ‘ah, deu errado, vamos contar no dia seguinte’. Quando uma urna era aberta, todos os votos precisavam ser apurados no mesmo dia. Então já teve urna em que a apuração demorou 7 horas. A gente contava, contava e, se chegasse no final e houvesse algum erro, contava de novo. Então isso, ao longo dos dias, ia aumentando o cansaço. Já teve apuração que durou 15 dias em Belo Horizonte, e isso era o normal. Em menos de 10 dias não acabava a apuração em BH”, recorda.
Lott também relembra que os primeiros dias de apuração eram os mais conturbados, com uma grande quantidade de fiscais de partido, candidatos, jornalistas e mesmo eleitores curiosos que ficavam nas arquibancadas dos ginásios acompanhando os resultados parciais. Conforme os resultados das urnas iam sendo publicados, o movimento acabava restrito aos que tinham chances restantes de eleição, mas isso não significava uma apuração mais tranquila, já que os escrutinadores sentiam o cansaço acumulado dos dias seguidos lendo e contando as cédulas.
“Os primeiros dias eram mais tensos porque tinha muito mais fiscais. Eu falo que no primeiro dia de votação municipal, para vereador e prefeito, todo mundo acha que está eleito. Todo mundo tem um vizinho, um primo que vai lá ser fiscal então a apuração vira um tumulto. Na medida em que os candidatos vão perdendo o voto, vão vendo que não serão eleitos, diminui o número de fiscais, mas, em contrapartida, os escrutinadores e os outros funcionários vão cansando”, disse a ex-servidora do Tribunal Regional Eleitoral de Minas (TRE-MG).
Cristiano Bothrel atuou como escrutinador nas eleições manuais em Belo Horizonte entre 1988 e 1994. Ele lembra, sem muitas saudades, de como era exercer a função durante as apurações no período. “Era um ‘auê’, sabe? A gente chegava lá pelas 7h, começava a apurar às 8h e ficava até a última urna fechar. Como eu era o presidente de mesa, ainda tinha que colocar os resultados nos boletins. Eram umas seis vias, branca, azul, rosa, verde… você tinha que preencher, colocar uma em cima da outra certinho para bater as linhas e as colunas, batia o carbono e fechava. Isso tudo com os caras bufando aqui nas minhas costas, né? Cutucando, batendo no ombro. Quando tinha uma urna polêmica, com recontagem, tinha 20, 30 pessoas em volta da mesa. Meu Deus!”, recorda.
O voto em papel no Brasil
Série especial Nos tempos do voto em papel, do Estado de Minas, recorda o período das eleições manuais no país, uma realidade desconhecida por boa parte dos eleitores atuais, que já começaram a escolher seus representantes políticos através da urna eletrônica.
Com entrevistas de personagens que atuaram nos pleitos com voto em papel e registros do acervo dos Diários Associados, a reportagem apresenta o cenário de obstáculos no acesso à democracia e de vulnerabilidade a erros e fraudes que tinham o poder de mudar o curso das eleições.