"Quatro anos atrás Venezuela era o exemplo, em 2022 temos mais a Argentina", publicou o empresário Luciano Hang, conhecido como "Véio da Havan", no último dia 11 de agosto.
A frase escrita por um dos empresários mais alinhados ao presidente Jair Bolsonaro ilustra bem um fenômeno que vem ganhando força nas redes sociais: o uso da crise argentina como estratégia eleitoral.
Um levantamento feito pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas (DAPP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a pedidos da BBC News Brasil, mostra que o volume de menções sobre a Argentina no debate político no Twitter já é maior do que o da Venezuela, um país cuja crise foi amplamente utilizada por políticos brasileiros nos últimos anos.
De janeiro a agosto de 2022, foram 494,4 mil menções à Argentina, contra 483,6 mil à Venezuela, em posts que envolvem o debate eleitoral. Levando em conta o período entre o fim de julho e começo de agosto, com a proximidade das eleições, a Argentina já é mencionada mais que o dobro de vezes.
"Os posts com mais retuítes foram feitos por contas bolsonaristas. O movimento é todo puxado por declarações do presidente e posts de seus apoiadores", diz Victor Piaia, pesquisador responsável pelo levantamento na FGV.
O Twitter, diz Piaia, é representativo por ser "a plataforma que reúne mais condições para a disputa de narrativas e visões entre diferentes grupos políticos".
Nos últimos meses, o presidente e pessoas próximas, como o filho Eduardo Bolsonaro, dedicaram espaço em várias redes sociais para falar do país vizinho.
"Essa atual crise passa, a que não passa é a do Socialismo, que o PT ajudou a implementar na Venezuela, está em andamento na Argentina", escreveu o presidente em maio.
Eduardo fez recentemente uma live no Facebook e Twitter sobre "O fracasso político na Argentina" e pediu para seus seguidores combaterem a "desinformação" compartilhando a situação no país vizinho.
Nas eleições de 2018, a situação era diferente. Nos meses que antecederam o pleito, o então candidato Bolsonaro fazia várias menções à Venezuela no Twitter e nenhuma à Argentina, na época governada pelo direitista Mauricio Macri. Já Eduardo mencionava os vizinhos em comentários pontuais sobre futebol.
Naquele ano, sob o governo Macri, a Argentina entrou em recessão, com recuo do PIB. Um ano mais tarde, o próprio presidente admitiu o fracasso econômico do seu governo, após perder nas urnas para o atual mandatário, Alberto Fernández. Atualmente, o país enfrenta problemas como inflação recorde (entenda mais abaixo).
Muda o país, mas o tom segue o mesmo: um "alerta" ou uma "ameaça" de que, se o candidato rival vencer, o destino do Brasil será aquele de vídeos e imagens compartilhadas.
Uma análise feita por pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF) mostrou que, em 150 grupos de Whatsapp ligados ao bolsonarismo nas eleições de 2018, o número de menções à crise na Venezuela disparou nos meses que antecederam a votação.
O professor Viktor Chagas, coautor do artigo "O Brasil vai virar Venezuela: medo, memes e enquadramentos emocionais no WhatsaApp pró-Bolsonaro", ressalta que esse tipo de comparação com as crises venezuelanas vem desde 2002, na campanha de José Serra (PSDB) contra Lula.
A campanha tucana utilizou a situação da Venezuela na época (com greve geral e tentativa de deposição de Hugo Chávez), para atacar Lula, sinalizando que o posicionamento do petista levaria a uma crise similar à vivenciada pelo país vizinho. Lula acabou sendo eleito.
"Bolsonaro resgata isso, justamente porque o bordão 'Brasil vai virar Venezuela' é capaz de evocar o imaginário antipetista que, para 2018, foi exatamente o mote da campanha", diz Chagas.
Por que, então, os holofotes se voltam agora à Argentina?
A crise na Argentina
De fato, a Argentina passa por um momento de crise — algo que não é incomum no país nas últimas décadas, seja em governos de esquerda ou direita.
A Argentina sofre historicamente com uma falta de fio condutor em sua economia. Nas últimas quatro décadas, os modelos de crescimento têm oscilado bastante entre um governo e outro, indo muitas vezes em direções opostas — como aconteceu, mais recentemente, com o governo liberal de Macri, que sucedeu os dois mandatos de Cristina Kirchner, marcados por um viés mais protecionista.
O resultado é que os principais problemas (como inflação, dívida externa e a desvalorização do peso) tiveram bons momentos, mas nunca solução de médio prazo.
"Na Argentina, a profunda divisão causada no Peronismo [o movimento político criado pelo presidente Juan Domingo Perón na década de 1940] faz com que, quem assume quer destruir o que o outro fez", explica Carlos Eduardo Vidigal, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e especialista nas relações entre Brasil e Argentina.
No momento atual, a inflação é o grande pesadelo no país. Em julho, o índice dos últimos 12 meses atingiu 71%, recorde nos últimos 30 anos. No Brasil, esse índice está em 10,07%.
Já em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), que é a soma de todas as riquezas de um país, o da Argentina cresceu 0,9% no primeiro trimestre de 2022, em relação ao trimestre anterior (já descontadas as sazonalidades da economia durante o período de fim de ano), e 6% em relação ao mesmo período em 2021.
O Brasil cresceu 1% no primeiro trimestre de 2022, em relação ao trimestre anterior, e 1,7%, em relação ao mesmo período em 2021.
"As crises de Brasil e Argentina têm naturezas diferentes, com duas situações graves. A Argentina tem muitos e muitos anos de inflação elevada, mas, em termos de pobreza, fome e desigualdade, não saberia dizer qual está pior. O Brasil está numa situação lamentável, mas a Argentina nem sequer tem dados confiáveis para analisar", avalia Carlos Vidigal.
"Acredito que esse maior foco na Argentina se deve ao fato de que a Venezuela perdeu visibilidade na mídia. Em 2018, a crise humanitária venezuelana estava no auge, com muitos imigrantes chegando ao Brasil. E também porque a crise se agravou na Argentina, justamente num governo alinhado ao PT", completa.
A economia da Venezuela dá alguns sinais de recuperação, e alguns venezuelanos que deixaram o país começaram a retornar.
O professor também analisa que não teria como "Brasil virar Argentina'' devido a grandes diferenças estruturais na economia dos dois países, como a grande dívida externa do país vizinho e a dependência que eles têm em relação ao dólar americano.
Segundo Vidigal, nas últimas décadas o Brasil conseguiu diversificar mais os seus parceiros comerciais e suas relações internacionais. Além disso, "por mais profunda que seja nossa desindustrialização, a indústria tem ainda um papel relevante no Brasil".
Politicamente, a Argentina enfrenta ainda outro desafio, de acordo com o professor: lá, os políticos ligados ao peronismo, como os Kirchner, entram em queda de braço constante com o agronegócio, o setor mais poderoso da economia e a quem chamam de "oligarquias". "Aqui, o agro está em todos os partidos políticos".
Bombardeamento nas redes
Não é desde sempre que o que acontece na Argentina repercute no Brasil, apesar da importância histórica dos dois países no cenário regional da América do Sul.
De acordo com professor Carlos Eduardo Vidigal, "se fala muito mais do Brasil na Argentina do que se fala da Argentina no Brasil". Isso se dá principalmente devido à importância do Brasil para as exportações argentinas.
Mas foi nos governos Lula e Kirchner (Nestor e, depois, Cristina) que o debate ideológico dentro dos países começou a repercutir nos seus respectivos vizinhos, diz Vidigal.
"Isso aconteceu porque, até então, não havia uma coincidência [ideológica] tão grande entre os governos dos dois países. Lula fez propaganda para os Kirchner, que usaram politicamente a popularidade do petista". No fim de 2021, Lula foi até o país participar de atos com Alberto Fernández.
Essa aproximação é justamente o alvo dos apoiadores de Bolsonaro, que creditam os problemas econômicos a um aliado (Fernández) que age da mesma forma que Lula.
Para Victor Piaia, da FGV, os eventos que ocorrem na Argentina estão sendo amplamente utilizados porque a rede de militância digital de Bolsonaro é "muito atenta internacionalmente em relação a temas que são caros à sua agenda".
Em agosto, por exemplo, o presidente condenou o país vizinho por ter "aprovado a linguagem neutra".
Na verdade, alguns órgãos federais anunciaram a inclusão da linguagem inclusiva em seus documentos oficiais, mas ela não foi "oficializada" no país. Cidades como Buenos Aires vetaram o uso em suas escolas.
Outro vídeo que circulou no WhatsApp mostra cenas de saque de supermercado como se fossem na Argentina, mas era um vídeo de 2017, gravado no México.
Piaia explica que a tática mais utilizada é a "inundação informacional" - a disseminação intensa de vários conteúdos caros aos bolsonaristas em todas as redes sociais, como a crise argentina.
Ou seja, "se você é pego de surpresa sobre um assunto que não conhece e é bombardeado por diversos conteúdos, pode até não concordar, mas provavelmente alguma dessas informações vai ficar na sua cabeça".
Este texto foi originalmente publicado em: https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-62567470
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