Eleições 2022

Segurança pública perde espaço na campanha dos candidatos à Presidência

Antes uma das maiores preocupações dos postulantes à Presidência da República, tema foi superado por questões como a fome e a economia. Além disso, as propostas dos candidatos não combatem efetivamente o problema

Taísa Medeiros
Henrique Lessa
postado em 29/08/2022 05:53 / atualizado em 29/08/2022 05:55
 (crédito: Arquivo Pessoal)
(crédito: Arquivo Pessoal)

Ao ver a filha de nove anos sob a mira de um revólver, Gustavo Reis decidiu mudar de vida. Morando em Portugal desde 2020, o engenheiro mecânico baiano, de 46 anos, largou uma carreira bem-sucedida na indústria petroquímica de Camaçari e, junto com as duas filhas menores, buscou, no interior do país europeu, uma convivência mais calma e segura. Mora hoje em Covilhã, uma pequena cidade distante 300km de Lisboa.

Da vida que tinha em Salvador não sente saudades. “Estava insuportável”, lembra. Na capital baiana, sofreu diversos roubos e um sequestro, mas o assalto no qual a filha esteve sob a mira de uma arma foi a gota d’água: “Ali me deu um estalo: preciso ir embora, não dá mais. Não tenho condições psicológicas de continuar no Brasil”.


Pai solteiro, vive com as duas filhas, uma hoje com 13 anos — a que foi vítima do assalto com Gustavo — e outra com 18. Mesmo ganhando, atualmente, a metade do que recebia no Brasil, o que mais deseja é convencer a filha mais velha, que vive com o marido em Manaus, a mudar-se também para Portugal. Empregado na indústria daquele país, conta que logo que chegou ingressou em um mestrado e, algum tempo depois, com a titulação, obteve uma colocação no mercado de trabalho.

Gustavo pouco acompanha o noticiário brasileiro, apenas em função dos parentes que vivem aqui — sonha convencer todos em seguirem seus passos. Ele acredita que a segurança no Brasil só faz piorar, e prefere pensar mais na reconstrução da vida em Portugal.

O engenheiro conseguiu afastar-se daquela que era a maior aflição, mas milhões de brasileiros não têm ou tiveram a mesma sorte — são vítimas da violência e convivem com a sensação permanente de insegurança. Um tema até então presente nas campanhas presidenciais. Mas, na atual corrida ao Palácio do Planalto, pouco tem sido lembrado e deu lugar a outras mazelas nacionais, como a fome e o empobrecimento da população, apesar de alguns indicadores econômicos positivos. Além disso, as questões de costumes e ideológicas mais uma vez ganham espaço, passando à frente da segurança pública nos debates e entrevistas.

O Brasil teve uma significativa diminuição no número de mortes por crimes violentos, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A redução no índice, apesar de positiva, precisa ser observada com cautela, conforme alertam os especialistas. Isso porque tais dados podem ocultar o crescimento de outros tipos de crimes.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, elaborado pelo FBSP, o pico da violência letal no Brasil aconteceu em 2017, quando o país registrava 30,9 mortes por 100 mil habitantes. Mas, já em 2018, registrou-se uma tendência de queda nos números: naquele ano, foram 27,6 assassinatos por 100 mil habitantes. Em 2021, com a continuidade da queda, chegou-se à marca de 22,3 — uma redução, apenas durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), de quase 20%. É preciso considerar que a pandemia, sobretudo no período do lockdown, favoreceu a diminuição dos percentuais.


Ainda assim, só em 2021 mais de 40 mil brasileiros foram mortos violentamente. Por causa disso, e segundo o sistema de dados do Escritório das Nações Unidas para Crimes e Drogas, o Brasil responde por 20,4% dos homicídios do planeta, mesmo tendo apenas 3% da população mundial.

Para Roberto Uchôa, pesquisador ligado ao FBSP, os números de 2017 podem ser explicados pela disputa entre facções criminosas, em especial nas regiões Norte e Nordeste, que registraram um pico de violência naquele ano.


“Estabilidade”


“Depois do conflito, se estabiliza o poder e o território dividido entre as organizações criminosas. Assim, acontece uma queda na criminalidade”, observa.

Para ele “o monopólio conquistado por organizações criminosas, como aconteceu em São Paulo, no início dos anos 2000, é uma explicação possível, mas não a única, para entender a redução nas mortes violentas”.

Uchôa aponta outro elemento a ser considerado: o crescimento dos índices de desaparecimentos. Os dados do último período apresentaram um aumento de 3%, o que significa um acréscimo de mais 2 mil pessoas sumidas ao ano. Ele ressalta que isso acontece especialmente no Rio de Janeiro, “onde o índice de resolução desses casos chega apenas à metade. Isso pode estar ocultando mortes não registradas”.

Assim que assumiu a Presidência da República, Jair Bolsonaro (PL) apostou na facilitação ao acesso às armas de fogo como uma forma de fazer o cidadão não depender do aparato público de segurança para enfrentar a violência. Mas, segundo especialistas ouvidos pelo Correio, isso apenas põe mais lenha na questão.

Sérgio Adorno, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), lembra que políticas de segurança que vinham desde os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), e que abordavam ações preventivas, foram deixadas de lado nos últimos quatro anos. “Isso coloca o Brasil na contramão das estratégias adotadas nos Estados Unidos e na Europa, que resultaram em grande melhora nos índices de violência”, observa.
Ele salienta que armar a população civil não soluciona as questões de segurança e tem o potencial de piorá-las, visto que 75% de todas as mortes intencionais são resultado da utilização de uma arma de fogo. “O Estado deve garantir os bens do cidadão. E o maior bem a ser protegido é a vida. A política de armar as pessoas é a privatização da segurança pública e uma antiga falácia da indústria armamentista norte-americana”, acusa.

Sem dado preciso, combate à violência é voo cego

A construção de políticas públicas para a segurança depende do recolhimento de dados exatos, fundamentais para que o agente governamental possa enfrentar o problema com eficiência e precisão. Mas a falta de compartilhamento, entre as instituições policiais, e também com outros entes que atuam no setor, levam todos a fazer voos cegos, cujos resultados são ações paliativas, periódicas e sem profundidade. A crítica é do pesquisador Roberto Uchôa, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Para piorar esse quadro, ele aponta barreiras como a desagregação dos dados, o que faz com que quem coleta tais informações dependa da “boa vontade” de delegados ou outros órgãos públicos.

“Você não consegue elaborar uma política pública baseada em evidências porque, hoje, sequer se tem evidências confiáveis. É muito complicado. Eu quero saber, aqui, em Campos dos Goytacazes (RJ), quais são os homicídios, onde estão acontecendo. Não tenho acesso a nada disso. Preciso de um favor pessoal da autoridade para obtê-los”, lamenta.

Uchoa observa que sem uma coordenação nacional das bases de dados de segurança pública é muito difícil construir estratégias eficazes. E dá como exemplo disso o caso do armeiro de uma facção criminosa que, mesmo com diversos processos na Justiça, conseguiu registrar-se como CAC (Caçador, Atirador, Colecionador) junto ao Exército apresentando apenas uma autodeclaração de antecedentes.
“Construir uma governança real nas polícias, que hoje não prestam contas a ninguém, além da articulação entre elas, precisa ser uma das prioridades a ser encarada pelo próximo governo”, cobra. Para ele, o compartilhamento de informações é fundamental para se combater tanto o crescimento das organizações criminosas — que inclui as facções e as milícias — quanto o crime interestadual conhecido como “novo cangaço” — cujas ações violentas levam o pânico a cidades do interior do país.



Ausência de padrão


Para Fagner de Oliveira Dias, estudioso da economia do crime e da gestão de segurança pública, a falta de dados padronizados que possibilitem um diagnóstico das deficiências do sistema de segurança prejudica a criação de políticas públicas e de aprimoramento em todo o território nacional. “Um primeiro ponto que se precisa pensar é a metodologia a ser utilizada, que possibilite fazer um bom diagnóstico. Hoje, para um governo ter sucesso na segurança a nível federal, há que se melhorar o diagnóstico, e o sistema integrado facilitaria isso”, destaca.

Na opinião de Sergio Adorno, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, qualquer política pública contra a violência precisa apontar estratégias preventivas e ter um olhar para diferenças e especificidades — como as relacionadas a gênero, raça ou orientação sexual. Para além da importância da integração de informações, ele defende, no longo prazo, a unificação das polícias — ele reconhece os poderosos lobbies no Congresso para interditar tal discussão — e a construção de uma carreira para o agente de segurança.

Os especialistas chamam a atenção, também, para a necessidade de uma política pública mais eficiente no controle das armas que circulam no país. Roberto Uchôa defende a criação de uma agência nacional de armas, que assumiria as funções atualmente exercidas pela Polícia Federal e pelo Exército. Já Fagner Dias não poupa críticas à política de liberação do armamento promovida no governo Bolsonaro, que considera inócua. “Tem outras estratégias mais eficientes, sem grandes ônus, como é o porte de arma”, justifica.

 

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