Há quatro anos, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tentava se candidatar pela sexta vez à Presidência da República. Como agora, em agosto de 2018, o petista liderava as pesquisas com vantagem confortável sobre o segundo colocado, o hoje presidente Jair Bolsonaro (PL).
Mas as semelhanças param por aí. Assim como Bolsonaro passou de uma candidato "antissistema" na eleição passada para uma ampla aliança com grandes partidos do chamado Centrão hoje, mudança que a BBC News Brasil abordou em outra reportagem, a campanha petista também passou por uma profunda transformação nesse período.
Mas antes de destrinchar a metamorfose petista, vale lembrar que Lula não conseguiu se manter candidato até o final de eleição de 2018. Como ele estava condenado em segunda instância em processos da Operação Lava Jato, o ex-presidente acabou preso e teve sua candidatura barrada na Justiça Eleitoral.
O ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad substituiu Lula como candidato do PT em setembro daquele ano e acabou derrotado no segundo turno por Bolsonaro, então candidato de uma sigla nanica, o PSL.
O ex-presidente passou 580 dias preso em uma cela da Polícia Federal, em Curitiba. Foi solto em novembro de 2019, após o Supremo Tribunal Federal (STF) rever a decisão que autorizava a prisão depois da condenação em segunda instância. Já em abril de 2021, a Corte anulou as condenações de Lula por ver ilegalidades nos processos da Lava Jato, o que permitiu ao petista concorrer agora, pela sétima vez.
Alckmin: de alvo a aliado
Quando Lula foi barrado da corrida eleitoral, Bolsonaro assumiu a liderança das pesquisas, enquanto Haddad entrou na corrida ainda pouco conhecido, com menos de 10% das intenções de voto.
Apesar disso, o foco inicial da campanha petista em 2018 não era o candidato do PSL, mas o então concorrente do PSDB, Geraldo Alckmin. O tucano era rotulado pelo PT com o candidato do governo Michel Temer (MDB), acusado por petistas de ter dado um golpe na ex-presidente Dilma Rousseff ao assumir o comando do país após o Congresso aprovar o impeachment em 2016.
"Hoje, o maior representante do Temer na eleição é o Alckmin. Perguntado, quem é o candidato do governo, ele (Temer) falou 'é o Alckmin, né'. Por quê? Porque toda a base de apoio dele, com exceção do MDB, que hoje não tem um candidato com expressão, com viabilidade, está apoiando o Alckmin. E o Alckmin, se você ler o plano de governo dele, é o plano Temer", disse, por exemplo, Haddad, em uma entrevista à TV Bandeirantes.
Lula estava preso e sem poder conceder entrevistas naquele momento, mas suas redes sociais eram usadas para reforçar esse discurso, em mensagens como essa que replica uma fala de Haddad durante sabatina realizada pelo SBT: "A população não quer a continuação da política econômica do Temer como querem Alckmin e o Centrão", diz um tuíte de setembro daquele ano.
"A população não quer a continuação da política econômica do Temer como querem Alckmin e o centrão" - @Haddad_fernando, durante sabatina do SBT/Folha/ UOL
— Lula 13 (@LulaOficial) September 17, 2018
Numa reviravolta surpreendente, o alvo principal do PT em 2018 se tornou o grande aliado de Lula agora. Isolado no PSDB, Alckmin decidiu migrar para o PSB neste ano e se tornou candidato à vice-presidente na chapa petista.
Apelidado jocosamente de Picolé de Chuchu por seu perfil pouco carismático, o ex-governador de São Paulo simboliza a guinada que o PT deu, indo de uma campanha presidencial mais isolada e voltada para as bases de esquerda em 2018 para uma ampla aliança com campos mais conservadores hoje — incluindo forças que apoiaram o impeachment de Dilma em 2016.
"Obviamente que eu não faço política parado no tempo e no espaço. Eu faço política vivendo o momento em que estou vivendo. Eu agora estou conversando com muita gente que participou do golpe contra a Dilma. Porque, se eu não conversar, não faço política. Se eu não conversar, você não avança na relação política com o Congresso Nacional, com os partidos", disse Lula em maio deste ano, em entrevista à rádio Band de Porto Alegre.
Outra mudança importante na campanha é o espaço dado à Lava Jato. Há quatro anos, existia um tom forte de indignação contra a prisão de Lula, e a defesa dele era central na propaganda eleitoral petista.
Agora, o ex-presidente tem deixado o tema de lado e retomou o discurso "Lulinha paz e amor" que marcou sua primeira campanha vitoriosa ao Palácio do Planalto, em 2002.
'2018: PT em seu pior momento'
Para entender a reviravolta na campanha petista, é importante analisar os diferentes contextos políticos das duas eleições. Em 2018, com sua maior liderança presa, o PT vivia seu pior momento.
Era o ápice de um processo de desgaste alimentado por crise econômica no governo Dilma e pelos escândalos da Lava Jato, operação que teve início em 2014 e revelou um grande esquema de desvio de dinheiro da Petrobras.
Esse cenário levou milhões de pessoas às ruas do país pela queda da petista, que teve o impeachment aprovado em 2016. Nas eleições municipais daquele ano, o PT teve uma queda de 60% no número de prefeitos eleitos, resultado que já evidenciava a força do antipetismo que marcaria a eleição presidencial dois anos depois.
De volta à oposição, o partido adotou um posicionamento mais à esquerda na agenda econômica. Se contrapôs totalmente, por exemplo, à reforma da Previdência proposta por Temer, embora ela incluísse pontos defendidos por Dilma no fim de seu governo.
Foi nesse contexto que o PT, após governar por mais de treze anos com amplas alianças, inclusive com forte apoio de partidos conservadores do chamado Centrão, chegou a 2018 bastante isolado, numa coligação enxuta, tendo Manuela D'ávila, do PCdoB, como candidata a vice-presidente.
Durante a campanha presidencial, o partido tinha dois discursos principais. Um deles era a campanha Lula Livre, que consistia em defender a inocência do ex-presidente e denunciar como ilegal sua condenação. E a outra era se contrapor à política econômica de Temer, marcada pela adoção do teto de gastos, que limitava as despesas públicas.
Temer era um presidente impopular e não tentou a reeleição. Sua base aliada, composta em grande parte por partidos do Centrão que tinham abandonado Dilma, acabou se reunindo em torno da candidatura de Geraldo Alckmin.
A tentativa de associar o tucano ao governo Temer era repetida por Haddad nos debates, entrevistas e na propaganda eleitoral. A campanha petista batia muito no apoio do PSDB ao corte de gastos do governo, apontando essa política como causa do desamparo da população mais pobre e da alta do desemprego.
Enquanto batia em Alckmin, a campanha petista poupava o novo líder das pesquisas, Jair Bolsonaro. Para analistas políticos ouvidos pela reportagem, isso aconteceu porque houve uma demora do mundo político em entender a força de Bolsonaro em atrair a insatisfação popular não só com o PT, mas contra todo o sistema tradicional.
Assim, a campanha petista continuou presa à antiga polarização com o PSDB, que vinha marcando todas as eleições presidenciais desde 1994.
Além disso, existia dentro do PT uma percepção de que seria mais fácil vencer Bolsonaro do que Alckmin no segundo turno.
"Eu ouvi de muitos dirigentes do PT na época, quadros mais intermediários que atuavam na campanha, dizendo que eles estavam escolhendo Bolsonaro no segundo turno, porque o Bolsonaro seria um candidato mais fácil de derrotar do que o Alckmin", lembra o professor de História Contemporânea da USP Lincoln Secco, que há muitos anos acompanha de perto o Partido dos Trabalhadores.
"Mas naquele momento (considerar Bolsonaro mais fraco que Alckmin) fazia sentido pra quem estava analisando a política como ela vinha acontecendo nos últimos vinte anos. Porque (normalmente) é mais fácil, de fato, ter um candidato extremista, que tem menos capacidade de aliança e apoio social, no segundo turno, do que um outro que agregador, que seria o Alckmin. Só que isso não funcionava mais", ressalta o historiador.
O PT passou a divulgar ataques pesados contra Bolsonaro no fim do primeiro turno. Naquela altura, ele já tinha disparado nas pesquisas. Um mês antes da votação, Bolsonaro sofreu uma facada, episódio trágico que, na visão de analistas políticos, acabou beneficiando sua campanha, ao gerar comoção em torno do candidato e permitir que ele faltasse a debates e sabatinas.
Mas na eleição de 2018 não foi apenas o PT que bateu em Alckmin. Na verdade, o partido de Lula também era alvo de fortes críticas da campanha tucana, que atacava tanto o PT como Bolsonaro, tentando atrair para si o eleitor antipetista.
Pragmatismo na aliança
O que explica, então, que Lula e Alckmin estejam de mãos dadas agora? O discurso oficial é a necessidade de união contra Bolsonaro, acusado de ser um presidente extremista e autoritário.
"A primeira razão de nós estarmos juntos com o presidente Lula é para salvar a democracia brasileira. É por isso, presidente, que o Brasil precisa de Lula para salvar a democracia", discursou o ex-governador de São Paulo em um ato político em Minas Gerais, em junho, ao lado do ex-presidente.
Mas analistas políticos destacam outros dois fatores pragmáticos da política que impulsionaram essa união. Um deles foi o isolamento de Alckmin dentro do PSDB, após romper com seu antigo afilhado político, o ex-governador paulista João Doria.
"À medida que o PSDB foi se tornando um partido que tentou concorrer por esse voto conservador e reacionário com o bolsonarismo, o Alckmin foi sendo naturalmente deslocado. Ele tem uma campanha presidencial (em 2018) ruim, depois Doria toma de assalto o partido, e Alckmin vai perdendo seu espaço (no PSDB)", nota o cientista político Creomar de Souza, professor da Fundação Dom Cabral.
O outro fator seria o interesse de Lula em atrair o apoio de setores conservadores e da elite econômica, já pensando nas alianças necessárias para governar se for eleito.
"Claro que existe uma percepção hoje bastante generalizada de ameaça (de Bolsonaro) à democracia, mas em política sempre tem a parte especialmente pragmática. Não acho que seja só a defesa da democracia", afirma Lincoln Secco.
"O Alckmin não traz exatamente votos, porque ele não tem mais máquina partidária, não tem máquina de governo nas mãos, mas ele é um símbolo para essa aproximação de Lula com setores que ele tentou atrair em 2002 também. Assim como ele tinha um vice de centro-direita, em 2002, que era um empresário, o José Alencar, agora ele tem de novo um político visto como conservador para avalizar uma aliança com setores que normalmente não estariam do lado do PT", reforça.
Essa aproximação de Lula com a elite econômica tem sido forjada nos bastidores, com uma série de encontros com empresários e pessoas do mercado financeiro. Mas, em público, o ex-presidente tem mantido críticas à "elite" e aos "banqueiros".
Para Secco, é uma estratégia para manter a militância mais à esquerda mobilizada ao mesmo tempo em que estabelece alianças no campo mais conservador.
Ainda assim, o historiador vê uma frustração na base do PT.
"A aliança com o Alckmin foi um banho de água fria naquilo que a base militante do PT e as pessoas que compõem o dia a dia do partido esperavam. Porque todo mundo apostava que o Lula teria um programa político e econômico um pouco mais radical, não é revolucionário, mas um pouco mais à esquerda, e que ele teria alianças restritas ao campo da esquerda", contou Secco.
"A aposta seria num discurso igualmente radical à esquerda contra o radicalismo de Bolsonaro à direita. Essa era uma aposta que muita gente fazia, mas ela não se revelou correta", disse ainda.
Um exemplo dessa movimentação à direita é a nova postura do partido sobre a reforma trabalhista adotada no governo Temer. Antes, o PT defendia a revogação. A partir desse ano, passou a defender uma revisão.
Segundo o presidente do grupo Esfera, o empresário João Camargo, que no final de junho participou de um desses encontros com a elite econômica, Lula teria até reconhecido pontos positivos na nova legislação trabalhista.
O petista teria também enfatizado no encontro sua abertura para o diálogo com o setor empresarial, tanto quando foi líder sindical, quanto no período em que esteve na Presidência.
"Ele disse que na questão trabalhista, os próprios sindicatos dos trabalhadores acham que a grande modificação não precisa ser alterada porque foi realmente muito bom pra assinatura de carteiras de trabalho. O que ele falou é que a função dele de vida é estabelecer um diálogo entre os trabalhadores e os empresários. Disse que vai fazer (esse diálogo) se ganhar. O governo todo", contou Camargo.
"Na questão do teto de gastos, ele disse que nunca fez uma medida sem antes ouvir a sociedade, sem antes ouvir a Faria Lima, sem antes ouvir o Congresso. Foi isso que ele passou lá com a gente", acrescentou.
Lava Jato ainda assombra campanha petista?
Para Lincoln Secco, o leque de alianças mais amplo do PT nesta eleição também explica outra mudança central da campanha: a redução dos ataques à Lava Jato.
Na sua avaliação, ela deixou de ser foco porque hoje o partido está aliado com setores que apoiaram a operação.
Além disso, o fato do ex-juiz Sergio Moro não ter se viabilizado como candidato à Presidência e de Bolsonaro enfrentar acusações de corrupção no seu governo também teria reduzido a presença do tema na eleição.
Já o cientista político Creomar de Souza considera que Lula tem evitado falar da Lava Jato para não transformar a eleição em um embate moral, que poderia favorecer Bolsonaro.
Ele acredita que as acusações de corrupção contra o PT ainda voltarão com força nas campanhas adversárias quando a propaganda eleitoral começar.
"A campanha na TV vai certamente colocar o PT contra a parede", prevê.
Apesar de as condenações de Lula terem sido anuladas pelo STF, uma pesquisa da consultoria Quaest de junho mostrou que 48% dos eleitores acreditam que Lula foi condenado corretamente, contra 46% que têm opinião contrária.
E o escândalo de corrupção na Petrobras pesa contra o PT. Ainda que o STF tenha entendido que a Lava Jato cometeu abusos, R$ 6 bilhões desviados da estatal foram devolvidos após acordos de colaboração, leniência e repatriações.
O próprio Lula reconheceu em 2019, em entrevista para a BBC News Brasil prisão, que a operação não deveria ser inteiramente anulada.
"O que eu acho que a Suprema Corte tem que fazer? Tem que se debruçar sobre o processo (os casos da Lava Jato), tudo que foi certo, tudo que foi julgado corretamente, que houve investigação, que houve apuração e que provou que cometeu crime, tem que condenar. Agora, tudo aquilo que a Suprema Corte analisar e descobrir que houve falha (no processo), que a pessoa é inocente, que a pessoa foi acusada equivocadamente, tem que absolver. É só isso", defendeu Lula na época.
"Eu acho que a operação Lava Jato tem coisas que foram verdade, tem pessoa que confessou. Se o cara confessou que roubou, o cara é ladrão", afirmou ainda.
Apesar disso, o PT nunca fez a cobrada autocrítica sobre os desvios da Petrobras durante seu governo. Lula inclusive ironizou esses pedidos no início do ano, quando disse o seguinte no Twitter: "Tem gente que cobra autocrítica. Eu tenho autocrítica, quero sempre melhorar. Mas se eu me criticar, o que quem se opõem a mim vai falar? Eles querem que eu fale bem de mim e que eu fale mal de mim também?".
Essa é uma postura que existia em 2018 e que não deve mudar nessa eleição. Segundo Creomar de Souza, fazer essa autocrítica seria uma escolha complexa para o PT, pois poderia esvaziar o apoio da militância mais tradicional.
Por outro lado, diz, a falta de uma revisão interna mais profunda dos erros petistas reduz o diálogo com outros eleitores que Lula busca atrair para vencer a eleição.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62556663
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