O mote do presidente Jair Bolsonaro de que o Brasil "está há 3 anos sem corrupção" ganhou, recentemente, novas roupagens. Passou para "não há denúncias consistentes de corrupção" e "se aparecer corrupção, que pode acontecer, ajudaremos a esclarecer os fatos, mas corrupção orgânica nunca mais".
O ajuste no discurso presidencial se dá por conta de denúncias de compras injustificadas e superfaturadas, além de casos de desvio de dinheiro. Em abril, por exemplo, veio à tona o gasto de R$ 56 milhões na compra de filé, picanha e salmão para integrantes do Exército e da Marinha. Também foi publicizada a aquisição de 11 milhões de unidades de Viagra e 60 próteses penianas destinadas a militares.
As irregularidades foram levantadas pelo gabinete do deputado federal Elias Vaz (PSB-GO). Na avaliação do parlamentar, há uma clara tentativa — especialmente por parte da caserna — de camuflar dados. "Tenho respeito pelas Forças Armadas, mas meu papel constitucional é fiscalizar os atos do Executivo. E as Forças Armadas não estão fora disso. Infelizmente, nós estamos detectando muitos processos de corrupção", ressaltou.
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Vaz falou dos questionamentos que recebeu por conta do trabalho e como enxerga as consequências da postura de negação do presidente Jair Bolsonaro diante das denúncias.
Na sociedade existe o imaginário de que não há corrupção nas Forças Armadas. O argumento da elite militar é de que os levantamentos visam diminuir o prestígio dessas instituições. Como avalia a crítica?
Para mim, quem está, na verdade, comprometendo a imagem das Forças Armadas é o presidente Bolsonaro. Inclusive, com efeitos colaterais, com o empoderamento de pessoas que não têm compromisso com as Forças Armadas, com desvios éticos. A corrupção é muito mais reflexo de um empoderamento que acha que essas instituições estão acima das leis de uma forma geral, acima de tudo e pode tudo a qualquer custo. O que a gente pega aqui são dados concretos. E podemos enumerar várias situações que comprovam irregularidades nas Forças Armadas. Todos os dados que nós levantamos são de portais oficiais do governo, ou Portal da Transparência, ou portal de preços do Ministério da Economia.
O caso dos 11 milhões de comprimidos de Viagra é um desses exemplos?
Eles alegam que a compra é para atender o Ministério da Saúde, só que o próprio ministério, no período, comprou por um valor que é 20% inferior ao que eles pagaram. O valor total que eles pagaram ficou em torno de R$ 35 milhões. Se nós fizéssemos a compra pelo que o SUS (Sistema Único de Saúde) pagou, que dá mais ou menos R$ 0,48, ficaria em torno de R$ 5 milhões. A diferença, aí, seria brutal. São quase 500% de superfaturamento. Isso tudo são dados concretos, pegando um processo de compra do Ministério da Saúde e um processo de compra das Forças Armadas. Não há o que colocar, não adiante vir com essas conversas. O próprio uso do Viagra é polêmico também. A dosagem que foi adquirido não é a usada para hipertensão pulmonar.
O que essa justificativa sobre o uso do Viagra nos diz em termos de transparência?
Penso que há uma tentativa de camuflar os dados, que são concretos. As Forças Armadas não deixam claro o que está acontecendo. Por exemplo: dizem que estão desenvolvendo um processo de fabricação do Viagra. E aí a gente faz um questionamento: que critério é esse? Por que eles estão fazendo esse produto? Há uma falta de transparência concreta. A gente fez um convite para o ministro, e ele marcou só para agora, em junho, vir responder a uma situação que aconteceu no fim de abril. Certamente, para preparar argumentos, porque ele vai ter de preparar muita coisa. Realmente, acho difícil ele explicar toda essa situação que estamos denunciando. Na minha opinião, ele tinha de, imediatamente, esclarecer para toda a população. Não é só para a Câmara. Tenho respeito pelas Forças Armadas, mas meu papel constitucional é fiscalizar os atos do Executivo. E as Forças Armadas não estão fora disso. Infelizmente, nós estamos detectando muitos processos de corrupção. Essa é a verdade, e afirmo isso categoricamente. Não digo que todas as Forças Armadas sejam assim, mas há uma parcela que acha que pode fazer qualquer coisa, inclusive se apropriar do dinheiro público.
Como é feita essa apuração?
Podemos investigar o que foi pago ou os contratos. O que foi pago é muito mais complicado, porque as notas fiscais vêm com inúmeros produtos — tinha de pegar cada nota fiscal, olhar item por item. Então o que a gente faz? Pega esses contratos. E muitos estão em vigência. Quando você, por exemplo, estabelece uma compra de 12 mil quilos de picanha, eles falam assim: "Olha, vocês estão falando isso, mas a gente não comprou tudo isso". Bom, não comprou porque o contrato não terminou o prazo, o contrato é de um ano. Foi essa a questão das próteses penianas. Eles disseram: "Nós não compramos isso tudo". Só que foram três contratos. Eles têm vigência de um ano, então, eles podem comprar. Até hoje, eles não conseguiram mostrar um item sequer que a gente tivesse denunciado que fosse inverídico.
Mas os questionamentos foram frequentes, não?
Fui abordado por um general uma vez. Ele me perguntou, tentando me intimidar, o que eu tinha contra as Forças Armadas. Falei que não tinha nada contra, apenas era o meu papel investigar. Ele disse que não tinha nada de errado nas Forças Armadas. Falei: "Então nós temos um conceito diferente do que é errado e do que é certo, porque, para mim, compra superfaturada é errado, comprar produto inadequado é errado". E continuei meu trabalho. Não vai me intimidar.
O senhor encaminha essas denúncias para investigação dos órgãos competentes, mas a Câmara também realiza essas apurações por meio de CPIs. Foi ventilada a possibilidade de uma CPI do Viagra, por exemplo?
Toda vez que você tem uma irregularidade concreta, precisa tomar medidas concretas de fiscalização. A CPI é esse instrumento mais eficiente. Seria muito importante, mas o Congresso, exatamente pelo chamado orçamento secreto, se curva diante dessa relação da política do toma lá, dá cá com o governo federal. A gente tem um Congresso, no seu conjunto, omisso. Não na sua totalidade, porque há uma parcela que é atuante, atenta a esse tipo de situação, mas que, infelizmente, não é um número suficiente para fazer as investigações que deveriam ser feitas.
O orçamento secreto deveria ser alvo de uma CPI, o problema é que os próprios parlamentares precisam assinar essa petição, certo?
Exatamente. Esse orçamento secreto é um escândalo. Por si só, sangra o Congresso na sua essência de existência, que é ter independência, fiscalizar os atos do Executivo. E a tudo isso você vai renunciando na política do toma lá, dá cá.
O governo Bolsonaro é campeão de pedidos de sigilos. Como é monitorar o Executivo dessa forma?
Estamos passando por uma dificuldade, inclusive, interna, porque estão vindo muitas questões sob sigilo, que, muitas vezes, só eu posso, como parlamentar, ter acesso. E são sigilos feitos de forma ilegal. Quem teria de recorrer contra esses sigilos seria o presidente da Câmara (Arthur Lira), que a gente vê, por motivos óbvios, pela relação política com o governo, que acaba não tomando essa atitude. Este governo busca, de todas as formas, esconder informações. Isso é um sinal, é um sintoma muito claro de que há muitos problemas neste governo. Tenho certeza que aquilo que a gente já detectou é uma demonstração de que há muita corrupção de governo.