As Forças Armadas sempre desfrutaram de imagem positiva junto à população. Mas, desde que se associaram ao governo de Jair Bolsonaro, vêm assistindo a sua credibilidade ser questionada. Não sem razão. Além das benesses financeiras, com reajustes salariais que a maioria da população não teve, os militares têm se mostrado extremamente perdulários com o dinheiro público, sem respeito a um Orçamento extremamente restrito. Tornou-se rotina a divulgação de que a caserna tem se empanturrado de picanha, cerveja, conhaque e uísque envelhecido, e gasto com próteses penianas e Viagra. Para piorar, os fardados têm flertado com movimentos nada democráticos, como o questionamento da lisura das eleições, como se isso fosse papel dos quartéis. Mais: episódios vividos na ditadura militar continuam sendo tratados com desdém e indiferença.
Entre os integrantes das Forças Armadas que respeitam a Constituição e se constrangem com o que está acontecendo na caserna, o clima é de preocupação. "Jamais poderia imaginar que, depois de toda a reconstrução da imagem pelas quais passaram as Forças Armadas, fosse testemunhar tanta notícia desfavorável", diz um militar de alta patente. Ele acredita, ainda, que Exército, Marinha e Aeronáutica merecem todo o respeito da população. Contudo, mantido tal quadro, "a situação tende a desandar", acrescenta.
Para o professor de Relações Internacionais da ESPM e especialista em Segurança Nacional Gunther Rudzit, ainda é possível conter o estrago na forma como a sociedade vê as Forças Armadas. Por enquanto, na avaliação dele, o abalo na imagem dos quartéis junto à opinião pública é momentâneo, mas, diante do descrédito das outras instituições públicas, pode ser refeita. Ele acredita, ainda, que o que está sendo divulgado de ruim referente à caserna tem a ver com as diferentes posições nas Forças Armadas a respeito do governo Bolsonaro, o que poderá servir para um ajuste na postura futuramente.
Segundo o general Paulo Chagas, as más notícias envolvendo as Forças Armadas têm um único objetivo: tentar afetar o nível de prestígio dos militares perante a população. "A sociedade acredita e sabe que as Forças Armadas são instituições confiáveis. Tudo o que acontece de errado é punido; ninguém sai ileso de uma transgressão", assegura.
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Carne de primeira
A primeira polêmica envolvendo os militares veio à tona em fevereiro. Levantamento realizado por deputados do PSB, que pesquisaram o Painel de Preços do Ministério da Economia mostrou que 714,7 mil quilos de picanha e 80 mil unidades de cerveja foram comprados pelo Exército e pela Marinha em 2020. Houve, ainda, um desembolso de R$ 56 milhões em filé, picanha e salmão. Parlamentares protocolaram uma representação na Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o que consideram "uso de recursos com ostentação e superfaturamento" pelas Forças Armadas.
Mas os militares não se limitaram a gastar dinheiro público apenas comprando alimentação de primeira categoria. As Forças Armadas aprovaram concorrências públicas para a compra de 35.320 comprimidos de Viagra — medicamento usado para tratamento de disfunção erétil. Os dados, mais uma vez, estavam disponíveis no Portal da Transparência e no painel de preços do governo federal e foram compilados pelo deputado Elias Vaz (PSB-GO).
De acordo com o levantamento feito pelo parlamentar, foram oito processos de compra aprovados desde 2020 pela Marinha, Aeronáutica e Exército. No pregão, o remédio aparece listado com o nome genérico de Sildenafila, nas dosagens de 25mg e 50mg.
A justificativa do Ministério da Defesa para a compra é que o medicamento será empregado no tratamento de militares com hipertensão pulmonar arterial (HPA), o que é aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A doença, porém, atinge mais as mulheres e a recomendação dos especialistas é de que a dosagem-padrão para tais casos seja de 20mg.
A terceira polêmica foi sobre a aprovação de compra de 60 próteses penianas por quase R$ 3,5 milhões. Os dados do Portal da Transparência e do Painel de Preços do governo federal mostram três pregões para aquisição de modelos infláveis de silicone, com comprimento entre 10 e 25 centímetros. Todos foram homologados em 2021. O pregão 036/2020 prevê a aquisição de 10 próteses, custando R$ 50.149.72 cada, para o Hospital Militar de Área de São Paulo. Outro pregão, 010/2021, é para a aquisição de 20 unidades ao custo de R$ 57.647,65 cada.
Outro golpe na imagem dos militares foi a destinação para outros fins de recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) — mais de R$ 150 milhões — que deveriam ter ido para a compra de remédios para a população tratamentos dos mais simples aos mais complexos. O desvio de função consta de documento divulgado pela Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (CNS), em fevereiro deste ano. Conforme o levantamento, a Comissão Aeronáutica Brasileira (CAB), em Washington (EUA), gastou R$ 61 milhões com itens ligados ao conserto ou suprimentos de aviação.
Segundo o mesmo documento, o Centro de Aquisições Específicas do Ministério da Defesa utilizou cerca de R$ 49 milhões do Ministério da Saúde para manutenção, reparo e abastecimento de combustível para aeronaves. A CAB, aliás, torrou R$ 25 milhões com o mesmo tipo de despesa.
Para completar o desgaste na imagem de seriedade dos militares, áudios de sessões do Superior Tribunal Militar (STM), obtidos em 2017 pelo advogado Fernando Augusto Fernandes e pelo historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostraram alguns dos então ministros da Corte comentando a tortura de integrantes de organizações políticas que faziam oposição à ditadura. As gravações chocam pelo teor daquilo que revelam: uma traz um general defendendo a apuração do caso de uma uma grávida de três meses que sofreu aborto após choques elétricos na genitália; outra, um ministro denuncia uma confissão de roubo a banco, de um suspeito que estava preso à época do crime, que foi obtida a marteladas. Porém, há momentos em que alguns casos são tratados com desdém, ironia ou incredulidade.
6 mil na máquina
Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), divulgado em julho do ano passado, mostra que o número de militares no governo Bolsonaro em cargos em comissão passou de 2.765 mil, em 2018, para mais de 6 mil — um aumento de 122,7%. Isso representa mais de 43% dos aproximadamente 14,5 mil postos de livre provimento no Executivo federal.
Tais números confirmam a ocupação da máquina estatal pelos militares, sob inspiração de Bolsonaro. O presidente, aliás, vem agradando os ex-colegas de Forças Armadas com uma série de benefícios que fazem do governo um bom lugar para ocupar alguma função.
Começa pelo fato de que os fardados não estão sujeitos à regra do abate-teto, o que faz com que possam acumular o soldo que recebem com o salário por exercerem algum cargo na máquina pública. Além disso, podem embolsar a remuneração que ganham por participar de conselhos de estatais. Os principais beneficiados são os ministros Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral da Presidência).
Levantamento realizado em setembro do ano passado, mostra que alguns dos integrantes do governo Bolsonaro egressos da caserna podem estar fazendo jus, mensalmente, a algo em torno de R$ 260 mil. A mesma pesquisa aponta que, das 46 estatais sob controle direto da União, 16 (34,8%) são presididas por oficiais das Forças Armadas.
Outra vantagem concedida aos integrantes da caserna foi a reforma da Previdência militar. Sancionada por Bolsonaro em 17 de dezembro de 2019, tem vantagens em relação à reforma dos trabalhadores da iniciativa privada e servidores públicos.
Isso porque os integrantes das Forças Armadas receberão salário integral ao se aposentar, não terão idade mínima obrigatória e vão pagar contribuição de 10,5% — na iniciativa privada, desconto é de 7,5% a 11,68% para o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS).
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