A presença cada vez mais constante de chefes militares na agenda política e em embates públicos com o Supremo Tribunal Federal (STF) e com a Justiça Eleitoral — alimentando teorias conspiratórias de alinhamento com o discurso bolsonarista — levanta dúvidas não só da classe política e de observadores acadêmicos. Dentro das Forças Armadas há, também, preocupação com o envolvimento militar na cartilha ideológica do presidente Jair Bolsonaro (PL).
O tema já não é mais tratado como outra "guerra de narrativas", mas preocupação real em relação ao papel dos militares neste momento de profunda divisão do país, a poucos meses das eleições gerais. Assim como em 2002, o receio de uma vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por parte de setores mais conservadores da sociedade, joga mais gasolina na fogueira da caserna. Esse cenário seria propício para a tese de que Bolsonaro estaria articulando um "golpe" contra as instituições democráticas. Mas, entre oficiais de alto escalão ouvidos pelo Correio, o assunto é rechaçado internamente.
"Quem vencer as eleições assume. É assim e será assim", disse uma dessas fontes. Segundo ela, "a vida segue em sua normalidade nas Forças, não há alteração de rotina, missões são cumpridas normalmente". O problema está mais na relação política entre os Poderes do que em uma suposta mobilização golpista — "alimentada pelas redes sociais e pela imprensa" —, apesar das preferências eleitorais dos militares, hoje majoritariamente favoráveis à reeleição de Bolsonaro, segundo a percepção dos oficiais.
A presença de militares em cargos de governo e, em particular, nos palanques que Bolsonaro frequenta incomoda o oficialato da ativa. Mas a orientação interna, nos comandos, é não nutrir polêmicas.
Da parte do governo, declarações de que não há ameaça golpista costumam vir acompanhadas da ressalva de que a oposição "não pode esticar a corda". Foi o que disse o então chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, em 2020; e Bolsonaro e o presidente do Superior Tribunal Militar (STM), general Luiz Carlos Gomes de Mattos, no ano passado.
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Erros
Sinais de desequilíbrio na relação entre Poderes não faltam. Assim como não falta quem aponte erros dos chefes do Judiciário e do Legislativo que ajudam a cevar teorias golpistas. A volta do debate sobre a segurança das urnas eletrônicas na comissão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que avalia a lisura dos equipamentos, por exemplo, é vista como um desvio da "missão original" dada ao Comando de Defesa Cibernética (ComDCiber), criado em 2020, que conta com representantes das três instituições militares.
O papel das Forças Armadas nas eleições, até agora, limitava-se ao auxílio logístico do transporte das urnas eletrônicas para localidades distantes e à segurança de municípios por forças federais autorizadas pelo TSE. Analistas que acompanham a história dos militares na política brasileira consideram um erro do então presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, ter chamado integrantes das Forças para compor a comissão.
"Os militares foram convidados a participar dessa comissão. Esse convite foi algo absurdo por parte do TSE. Desde quando as Forças Armadas participam desse tipo de coisa a partir da redemocratização? Se há alguma suspeição, deveriam chamar observadores internacionais", disse a doutora em história e professora da UnB Georgete Medleg Rodrigues. "Houve uma inversão total de perspectiva. O Judiciário foi se rendendo à pressão (de chamar as Forças a participar da comissão). Nunca foi preciso isso desde a redemocratização."
O general Paulo Chagas (Podemos-DF), ex-aliado de Bolsonaro e crítico do Judiciário, corroborou a visão da especialista. "O que aconteceu, no fim das contas, é que o Tribunal Eleitoral, não sei a exata intenção, convidou as Forças Armadas. Não foi o presidente que deu ordem para as Forças intervirem por conta da urna", destacou. "Tenho absoluta certeza de que as forças entraram nessa seara sem nenhuma influência política, por mais que o presidente queira passar isso para a sociedade. Vejo companheiros comentando que as Forças foram envolvidas em um processo político-eleitoral por conta do discurso do presidente", complementou o militar.
Derrapagem
O cenário atual mostra que saiu pela culatra o tiro de Barroso — um dos grandes alvos de críticas e ataques de bolsonaristas e do próprio chefe do Executivo. O então ministro da Defesa, Walter Braga Netto, indicou o chefe de segurança cibernética do Exército, o general Heber Portella. Bastidores apontam que o ministro do Poder Judiciário esperava a indicação de um integrante da Marinha, também especialista na área.
Em vez de consolidar a imagem de segurança do sistema do TSE, a presença dos militares ajudou a turbinar a pauta bolsonarista em favor do voto impresso, pois os integrantes das Forças apresentaram uma lista de mais de 80 perguntas sobre a possibilidade de violação das urnas, que foram autorizadas pela Corte a serem divulgadas.
O movimento reacionário também avançou para a arena política, com o anúncio feito por Bolsonaro de que o partido dele, o PL, vai contratar uma empresa independente para auditar as urnas.
Barroso também foi criticado por dar combustível para a crise na relação com os militares ao dizer, em um ambiente acadêmico, que as Forças Armadas estão sendo orientadas para "atacar e desacreditar o processo eleitoral brasileiro". A reação foi imediata e partiu de um general do Exército tido como moderado, o ministro da Defesa, Paulo Sérgio de Oliveira, que assinou nota considerando as declarações do magistrado uma "ofensa grave".
Uma declaração de Lula, que lidera as intenções de voto para a sucessão de Bolsonaro, também ajudou a aumentar a irritação da ala fardada. O ex-presidente afirmou que, se eleito, vai retirar os militares de mais de oito mil cargos comissionados da administração federal.
Na avaliação do professor de ciência política Valdir Pucci, há integrantes das Forças Armadas que apoiariam uma eventual tentativa de golpe, entretanto, o conjunto da caserna "entende qual é sua função".
"O que a gente pode dizer é que, sim, existem elementos, pessoas dentro das Forças Armadas que não teriam o mínimo problema em apoiar um movimento antidemocrático, golpista. Entretanto, o conjunto das Forças Armadas entende qual é o seu papel e qual é a sua função", frisou Pucci. "Ou seja, se houvesse uma tentativa de golpe, seria uma aventura frustrada, que não teria sucesso dentro da realidade política atual do Brasil."
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