O Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) concluiu que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teve seus direitos violados durante o processo criminal do qual foi alvo durante a Operação Lava Jato. A conclusão foi divulgada nesta semana e é resultado de quase seis anos de análise de uma queixa feita pela defesa de Lula junto ao comitê.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que o Brasil estaria obrigado a acolher as recomendações que deverão ser feitas pelo comitê em relação ao caso do ex-presidente. Eles alertam, no entanto, que o impacto jurídico da conclusão do comitê é impreciso porque não há mecanismos que obriguem o país a adotar as orientações dadas pelo órgão.
O Comitê de Direitos Humanos da ONU é um órgão criado a partir da Convenção para Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, de 1966. Na época, o Brasil vivia sob a ditadura militar, que governou o país entre 1964 e 1985. O Brasil passou a ser signatário da convenção em 1992, sete anos depois da redemocratização.
A função do órgão é monitorar a implementação da convenção entre todos os países que são signatários do documento, entre eles o Brasil.
O comitê é formado por especialistas em direitos humanos e direito internacional e não são indicados pelos países signatários do tratado.
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Eles cumprem mandatos de três anos que podem ser renovados por mais três. Além de monitorar, o comitê também analisa queixas individuais de cidadãos de quaisquer países que sejam signatários do tratado que, por algum motivo alegam que seus direitos foram violados.
Foi com base nessa possibilidade que os advogados de Lula recorreram ao comitê, em julho de 2016, no auge da Operação Lava Jato.
Lula foi um dos principais investigados da operação. Ele foi acusado de crimes como corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Segundo as acusações, ele teria recebido vantagens indevidas de empreiteiras em troca de contratos com a Petrobras.
Em julho de 2017, ele foi condenado a nove anos de prisão por Sergio Moro no caso do apartamento tríplex no Guarujá (SP) e a 12 anos de prisão no caso do sítio de Atibaia (SP). As condenações foram mantidas pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Em 2021, porém, o Supremo Tribunal Federal (STF) acolheu recursos da defesa do ex-presidente e anulou as condenações alegando, entre outros motivos, que os casos não deveriam ter tramitado na Justiça Federal do Paraná.
Além disso, o STF também considerou Moro suspeito (parcial) nos casos envolvendo o petista. Com as decisões, Lula recuperou o direito de concorrer a cargos eletivos. Atualmente, ele lidera as pesquisas de intenção de voto para as eleições presidenciais deste ano.
As queixas de Lula
A denúncia feita pela defesa do ex-presidente de que seus direitos estavam sendo violados pela Justiça brasileira se baseia em quatro pontos principais:
- a detenção de Lula pela Polícia Federal em uma sala do aeroporto de Congonhas, em 2016, teria ocorrido de forma arbitrária, durante um mandato de condução coercitiva;
- a divulgação de conversas telefônicas e mensagens do ex-presidente Lula ordenada pelo então juiz Sergio Moro;
- parcialidade de Sergio Moro;
- proibição de que Lula fosse candidato à presidência em 2018.
Ao analisar a queixa de que Lula não teve direito a um julgamento justo, o comitê entendeu que os requerimentos de imparcialidade do juiz responsável, na época Sergio Moro, não teriam sido atingidos.
"O comitê considera que, para um observador razoável, os fatos que ocorreram mesmo antes da primeira condenação do autor, em 2017, mostram que o elemento objetivo do requerimento de imparcialidade não foi atingido. O comitê observa que uma decisão tomada no momento certo sobre o assunto teria evitado o prejuízo causado pelo autor, o que incluiu uma condenação, a confirmação da condenação, ser impedido de concorrer à presidência e 580 dias de prisão injusta", diz um trecho do documento.
Em nota, o ex-juiz e ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, contestou as conclusões do comitê e disse que elas foram influenciadas por decisões erradas do Supremo Tribunal Federal (STF). Moro disse ainda que Lula não foi alvo de perseguição.
"Considero a decisão do STF um grande erro judiciário e que infelizmente influenciou indevidamente o Comitê da ONU. De todo modo, nem mesmo o Comitê nega a corrupção na Petrobras ou afirma a inocência de Lula [...] Também é possível constatar, no relatório do Comitê da ONU, robustos votos vencidos que não deixam dúvidas de que a minha atuação foi legítima na aplicação da lei, no combate à corrupção e que não houve qualquer tipo de perseguição política", diz um trecho da nota de Moro.
Impacto jurídico impreciso
Para a professora de Direito Internacional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, Elaini da Silva, o Brasil é obrigado a cumprir as recomendações que ainda serão emitidas pelo comitê em relação ao caso.
Mesmo assim, ela argumenta o impacto jurídico delas ainda é impreciso. Isso acontece porque, quando se trata de direitos humanos, não há mecanismo que obrigue os Estados a cumprirem as determinações do comitê.
"No cenário político brasileiro atual, é pouco provável que a decisão do comitê tenha efeitos práticos no ordenamento brasileiro porque o sistema internacional, apesar de obrigatório não tem aplicação direta", explica.
A questão sobre a obrigatoriedade no cumprimento das medidas expedidas pelo comitê já havia sido alvo de debate em 2018, quando o comitê emitiu uma recomendação ao governo brasileiro para que Lula pudesse ser candidato nas eleições daquele ano. Como estava condenado pela Justiça, Lula foi considerado inelegível e não disputou o cargo.
Na época, o Itamaraty divulgou uma nota afirmando que as conclusões do comitê não teriam caráter "vinculante", ou seja: o Brasil não estava obrigado a cumpri-las.
"As conclusões do Comitê têm caráter de recomendação e não possuem efeito juridicamente vinculante. O teor da deliberação do Comitê será encaminhado ao Poder Judiciário", disse o Itamaraty em agosto de 2018.
A BBC News Brasil pediu um posicionamento ao Itamaraty sobre as conclusões do comitê nesta quinta-feira (28/04), mas até o momento nenhuma resposta foi enviada.
Procurado, o comitê disse que espera que as recomendações sejam implementadas uma vez que o Brasil é um dos signatários do tratado.
"As decisões do comitê representam interpretações oficiais do tratado em questão. Elas são decisões legais proferidas por um por um mecanismo que é quase judicial. Isso significa que o comitê não é uma corte, mas tem funções jurisdicionais, emitindo decisões que contém recomendações para os países-membros que são esperadas que sejam cumpridas", diz um trecho da nota enviada pelo órgão à BBC News Brasil.
Em outro trecho, o comitê diz que os países-membros alvo de decisões são convocados a informarem, dentro de 180 dias, se tomaram as medidas recomendadas. Caso as medidas não sejam tomadas, o caso é mantido como aberto até que ações consideradas satisfatórias sejam adotadas.
O consultor na área de direitos humanos Paulo Lugon discorda do entendimento do Itamaraty de que o Brasil não estaria obrigado a cumprir as recomendações do comitê. Entretanto, ele admite que o país ainda não tem uma tradição de seguir as determinações de instâncias internacionais.
"As cortes brasileiras ainda não desenvolveram completamente um entendimento sobre essa obrigação de implementar as decisões dos órgãos internacionais. Isso acontece muito mais por uma questão de cultura jurídica [...] Obviamente, o Executivo e o Judiciário podem optar por não implementar, mas estarão em violação do direito interno e internacional", explica.
"Quando se trata de direitos humanos em nível internacional, se um Estado não cumpre uma decisão ou uma recomendação, não existe uma figura de um oficial de justiça internacional ou algum tipo de força que obrigue o país a seguir o que foi dito", diz Lugon.
O que acontece se o Brasil não acatar as recomendações
Tanto Lugon quanto Elaini afirmam que, do ponto de vista prático, não há previsão de sanções ao Brasil caso ele não cumpra o que for determinado pelo comitê. As recomendações do órgão ainda deverão ser publicadas.
Mesmo assim, eles afirmam que caso o Brasil se negue a cumpri-las, isso poderia deteriorar a imagem do país junto à comunidade internacional.
"Uma negativa poderia prejudicar ainda mais a imagem do Brasil no exterior, especialmente junto aos outros países do sistema ONU. O Brasil poderia ser visto como um pária em matéria de direitos humanos", explica Paulo Lugon.
Elaini diz que o impacto de um descumprimento se daria no campo simbólico.
"Não faria bem para a imagem e a reputação do Brasil, especialmente porque o país é um dos signatários do tratado. Outro ponto é que este caso se refere à segurança jurídica. É muito ruim mandar um sinal de que pessoas podem não ter seus direitos civis e políticos respeitados em um país como o Brasil", afirma.
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