Ônibus Escolares

Licitação do governo prevê pagar até R$ 732 mi a mais por ônibus escolares

O pregão permitirá a aquisição de até 3.850 veículos como parte do programa Caminho da Escola. O preço total, ao final da compra, pode pular de R$ 1,3 bilhão para R$ 2,045 bilhões, com aumento de até 55% ou R$ 732 milhões

Uma licitação bilionária do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), marcada para a próxima terça-feira, prevê a compra de ônibus escolares com preços inflados. O alerta partiu de instâncias de controle e da própria área técnica do fundo. Segundo documentos obtidos pelo Estadão, o governo aceita pagar até R$ 480 mil por um ônibus que, de acordo com o setor técnico, deveria custar no máximo R$ 270,6 mil. Os recursos sairão de um programa destinado a atender crianças da área rural, que precisam caminhar a pé quilômetros em estradas de terra para chegar à escola.

A operação foi montada dentro do FNDE, que concentra a maior fatia de recursos destinados a investimentos em educação. O fundo é presidido por Marcelo Ponte, que chegou a cargo por indicação do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, de quem foi chefe de gabinete. O processo da concorrência, ao que o Estadão teve acesso, mostra que o FNDE atropelou as orientações dos órgãos de controle e da própria área técnica, que apontaram risco de sobrepreço nos valores dos ônibus que o governo aceita pagar.

O pregão permitirá a aquisição de até 3.850 veículos como parte do programa Caminho da Escola. O preço total, ao final da compra, pode pular de R$ 1,3 bilhão para R$ 2,045 bilhões, com aumento de até 55% ou R$ 732 milhões.

"Entendemos que a discrepância das cotações apresentadas pelos fornecedores em relação ao preço homologado do último pregão (...) implica em aumento não justificado do preço, sem correspondente vinculação com as projeções econômicas do cenário atual", avisou a área técnica do fundo. Em outro parecer, a Controladoria Geral da União (CGU) reforçou: "Observa-se que os valores obtidos (...) encontram-se em média 54% acima dos valores estimados". Alertas também foram feitos pela Advocacia-Geral da União (AGU).

Os documentos obtidos pelo Estadão apontam ainda a atuação direta de um dos diretores do órgão, Garigham Amarante, na definição dos valores superestimados. Ele foi indicado para o cargo por Valdemar Costa Neto, presidente do PL, partido do presidente Jair Bolsonaro. Em ao menos dois despachos, o diretor determina que o prosseguimento do processo, com pequenos ajustes, mas mantendo os preços inflados, apesar dos alertas de sobrepreço.

Mesmo após as ponderações Garigham e Marcelo Ponte assinaram despacho dando prosseguindo ao certame: "Aprovamos o Termo de Referência, o Estudo Técnico Preliminar e a Pesquisa de Preços, bem como autorizamos a reabertura do procedimento licitatório". O certame chegou a ser suspenso, em fevereiro deste ano. Mas retomada depois pelos dois dirigentes do Fundo.

INTERESSE POLÍTICO

Criado pelo Ministério da Educação para ajudar municípios e Estados a diminuir o abandono dos estudantes das salas de aula, o programa tem especial relevância nas regiões rurais de estradas precárias e de difícil deslocamento. Muitos alunos desistem de estudar diante das dificuldades de locomoção.

O programa mobiliza parlamentares interessados em faturar com a entrega dos ônibus em seus redutos eleitorais. No final de 2020, Ciro Nogueira divulgou em suas redes a entrega de ônibus escolares em seu Estado, o Piauí. Nas imagens, o então senador aparece ao lado do seu indicado, o presidente do fundo Marcelo Ponte, e de miniaturas dos veículos. Como ministro, continuou participando de atos de entregas de chaves dos ônibus bancados com recursos do FNDE. O Piauí tem 1 milhão de pessoas na área rural, atendida pelo programa.

O Fundo é órgão vinculado ao Ministério da Educação. Na última segunda-feira, o ministro Milton Ribeiro foi obrigado a deixar o cargo após o Estadão revelar que havia um esquema de cobrança de propina na pasta operado por dois amigos pastores em troca de liberação de dinheiro para creches e escolas.

PRESSÕES

O pregão eletrônico para a compra dos ônibus foi iniciado por ordem de Garigham Amarante, que é diretor de Ações Educacionais do Fundo. O edital tem por objetivo criar uma ata de registro de preços para ônibus rurais escolares de quatro tipos - veículos com capacidade para 29, 44 e 59 assentos. No caso do ônibus menor, há dois modelos: um regular e outro com tração nas quatro rodas.

Nesta modalidade, as empresas vencedoras concordam em vender uma certa quantidade de cada um dos ônibus em disputa por um determinado valor - quem oferece o preço mais barato consegue o contrato. Uma vez registrada a ata, os ônibus podem ser comprados por prefeituras e governos estaduais de todo o País pelo preço ajustado, sem necessidade de nova licitação. A sessão virtual em que as empresas farão os lances está marcada para às 10 horas de terça-feira.

Ao recusar o preço máximo original estimado pela área técnica, a diretoria de Garigham Amarante alegou que corrigir os valores pela inflação não refletiria "os impactos da pandemia" e "o aumento do dólar em uma indústria dependente da importação de peças".

A CGU avisou que o edital poderia favorecer a prática de cartel entre as empresas fornecedoras e recomendou que fosse seguida uma instrução normativa do Ministério da Economia. Pela regra sugerida, o cálculo do preço deveria se basear em valores de licitações anteriores. A diretoria comandada pelo Centrão criou, então, uma nova fórmula de cálculo. Passou a usar um outro indicador de inflação, o IPP, nos custos dos ônibus, além dos valores apontados pelos fornecedores. A alteração do setor, no entanto, pouco mudou o cenário e o valor máximo da licitação foi para R$ 2,045 bilhões.

Procurados, Ciro Nogueira, e a CGU não se manifestaram. O FNDE não comentou as suspeitas de sobrepreço e disse, em nota, que o pregão "atendeu a todas as recomendações da CGU, inclusive quanto à metodologia de cálculo dos preços estimados, que são sigilosos por recomendação do próprio órgão de controle, que acompanha todas as fases do processo licitatório". Apesar do que disse o órgão, não há manifestação da CGU no processo administrativo endossando o cálculo final de preços. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.