Indulto a deputado

Bolsonaro abre nova crise entre Poderes ao conceder indulto, diz especialista

O Correio entrevistou a advogada constitucionalista e mestre em direito público Vera Chemim sobre o que acontece após o perdão presidencial concedido a Daniel Silveira e o que a lei explica sobre os próximos passos relacionados ao caso

Cristiane Noberto
postado em 25/04/2022 18:06 / atualizado em 25/04/2022 18:08
 (crédito: Divulgação)
(crédito: Divulgação)

O deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) recebeu a graça presidencial um dia após ser condenado, pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a oito anos e nove meses em regime fechado. O parlamentar recebeu, na última quarta-feira (20/4), a sentença por cometer atos antidemocráticos ao ameaçar os magistrados da Suprema Corte em vídeos e pronunciamentos.

O decreto do presidente Jair Bolsonaro (PL) que livrou o aliado da sentença do STF provocou dúvidas por parte da sociedade civil, bem como o acirramento da crise entre os Poderes.

O Correio entrevistou a advogada constitucionalista e mestre em direito público Vera Chemim sobre o que acontece a partir de agora e o que a lei explica sobre os próximos passos relacionados ao caso. Confira trechos da conversa a seguir:

Quais as reais possibilidades de o indulto ser estendido a outros condenados?

Exatamente! A palavra-chave é “condenado”. Só se pode conceder o instituto da graça ou indulto individual para os condenados em decisão irrecorrível, isto é, quando todos os recursos processuais disponíveis a sua defesa já foram utilizados. Assim, a regra geral é a de que a sentença condenatória já tenha transitado em julgado e o réu já tenha iniciado o cumprimento da pena (prisão-pena). Contudo, existe jurisprudência no sentido de permitir a concessão do indulto individual antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, ou seja, quando o réu foi condenado, como é o caso do Deputado Daniel Silveira. Mas ainda não ocorreu o trânsito em julgado do acórdão condenatório (porque a decisão é de um colegiado de magistrados), até porque ainda resta um recurso a ser interposto junto ao STF (Embargos de Declaração). Portanto, pessoas em fase de investigação ou réus em ação penal em andamento não podem usufruir desse benefício. Da mesma forma, se o condenado cometeu um crime hediondo ou terrorismo, prática de tortura e tráfico de drogas não terá acesso ao indulto, conforme dispõe taxativamente, o Inciso XLIII do artigo 5º da Carta Magna. É importante observar que o crime de racismo, assim como a ação de grupos armados, civis ou militares contra a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito previstos, respectivamente, nos Incisos XLII e XLIV do mesmo artigo, também não são suscetíveis de graça e indulto.

O que o Supremo deve fazer, neste caso, para não perder sua legitimidade na decisão, especialmente porque o presidente tem uma relação instável com a Corte?

O problema aqui não é a questão de o STF se preocupar em manter a sua legitimidade mas, sim, em reconhecer o poder privativo e discricionário do presidente da República para a concessão de indultos (individual ou coletivo) pari passu com a responsabilidade daquela Corte em exercer o seu controle judicial no sentido de verificar a presença de alguma ilegalidade ou inconstitucionalidade no decreto presidencial, conforme dispõe a Constituição e a legislação sobre o tema. Caso não se encontre qualquer restrição no referido decreto, o STF terá que acatá-lo em atendimento à previsão legal, a despeito da tensa relação entre os dois Poderes públicos.

Existe algum risco institucional, no caso de haver briga entre os Poderes por interferência?

Sim. A causa imediata dessa crise seria o fato de o decreto presidencial ter sido editado antes de o acórdão condenatório ter transitado em julgado, atropelando a decisão do colegiado do STF. O imediatismo do ato presidencial (com relação à condenação pelo STF) pode ser interpretado como uma demonstração de poder em face de um conflito institucional (entre o chefe do Poder Executivo e o Supremo Tribunal Federal) que já vem ocorrendo há algum tempo e que, agora, adquire maior potencial de agravamento em razão desse impasse. Por outro lado, é inevitável a constatação de que a Corte vem assumindo (ou substituindo) progressivamente, a competência do Poder Legislativo e do Poder Executivo em várias situações, o que permite deduzir que tais interferências constituem a causa mediata dessa crise, e cujo núcleo remete à necessidade de se atender rigorosamente ao Princípio Constitucional da Separação dos Poderes previsto no artigo 2º e no Inciso III do § 4º do artigo 60 (como cláusula pétrea), ambos da Carta Magna.

O Supremo pode restringir o presidente de alguma forma, já que ele sempre promove ataques aos Poderes?

Não se trata de restringir o presidente em razão dos ataques, mas, sim, na hipótese de uma denúncia ou queixa-crime, relativamente a uma suposta infração comum (crime comum previsto no Código Penal), verificar se existem indícios suficientes de autoria e materialidade do crime para receber a denúncia e proceder ao seu julgamento — desde que a acusação tenha sido admitida por dois terços da Câmara dos Deputados, conforme prevê o texto constitucional. Uma segunda forma de responsabilizar o presidente teria que ter origem em denúncia de crime de responsabilidade perante a Câmara dos Deputados, a qual teria a tarefa de, igualmente, admitir ou não a acusação em face do presidente, por dois terços de seus membros. Caso seja admitida a acusação, o Senado Federal seria competente para o seu julgamento.

Até que ponto essa interferência causa danos?

Partindo do pressuposto de que tais interferências constituem metaforicamente, uma “via de mão dupla”, em que não se respeita a separação entre os Poderes, gerando riscos de colisões de toda a ordem, o caso do deputado (Daniel Silveira) retrata, oportunamente, essa grave conjuntura em que se constata uma “queda de braço” priorizando quem tem mais poder e quem ganha, em total desprezo aos riscos ao Estado Democrático de Direito. Um Estado, cuja democracia apresenta fragilidades de natureza institucional, estimula o aparecimento de líderes e teorias extremistas, especialmente nas vésperas de um pleito eleitoral. Como se tudo isso não bastasse, há um estremecimento no equilíbrio entre grupos de poder que alimentam a sensação de múltipla insegurança e cujas consequências desembocam na economia e na política propriamente dita. Isso gera um perigoso círculo vicioso, até porque a falta de credibilidade na atuação dos Poderes Públicos e de modo especial, no Poder Judiciário, leva a um quadro de total insegurança jurídica, no qual a Constituição perde a sua força normativa (Konrad Hesse) e passa a ser uma “mera folha de papel escrita”, no dizer de Ferdinand Lassale.

Quem dá a palavra final sobre este caso?

O Supremo Tribunal Federal tem a competência constitucional para processar e julgar parlamentares, em razão do foro privilegiado. Por sua vez, o presidente da República tem a competência privativa de conceder indultos. Partindo do pressuposto de que o decreto presidencial não apresente ranços de inconstitucionalidade ou ilegalidade, o indulto prevalece e o deputado terá extinta a sua punibilidade, cujos efeitos alcançam as sanções de natureza penal. O que resta para o debate é a suspensão dos direitos políticos, a perda do mandato e a consequente inelegibilidade que não são alcançados pelo decreto. Quanto à suspensão dos direitos políticos, a Carta Magna prevê que a perda do mandato será declarada pela Mesa da Câmara dos Deputados (...), assegurada a ampla defesa, no que se depreende que existe uma possibilidade (remota) de manutenção do mandato. Contudo, a Lei da Ficha Limpa dispõe que a inelegibilidade decorre da condenação por um colegiado. Caso se entenda que a sua punibilidade foi extinta é possível que se mantenha elegível. Essa seria a questão que remeteria ou não ao xeque-mate!

Houve algum caso semelhante na história da nova República?

Não. Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, só tivemos a concessão de indulto coletivo.

O excesso de judicialização de temas que seriam da competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo teria contribuído para o agravamento dessa crise institucional?

Obviamente que o excesso de demandas junto ao STF, relativas às políticas públicas operacionalizadas pelo Poder Executivo e referentes às questões interna corporis do Poder Legislativo, constituem uma das causas desse excesso de intervenção do Poder Judiciário nos demais Poderes públicos. O STF teria que adotar uma conduta de autocontenção no julgamento de determinados temas que, eventualmente, não são da competência do Poder Judiciário mas, sim, dos outros Poderes políticos. Conforme observa o ex-ministro Marco Aurélio, com a cautela e sabedoria de sempre, o STF teria evitado todo esse impasse se tivesse encaminhado esse imbróglio (referindo-se ao caso do deputado) ao Congresso Nacional, até porque os artigos 53 e 55 da Carta Magna são bastante claros a esse respeito. Segundo Marco Aurélio, a extrapolação da liberdade de expressão por parte de um parlamentar teria que ser debatida e julgada por seus pares, fixando a sanção prevista em seu regimento interno. Contudo, o pano de fundo desse excesso de judicialização remete, inevitavelmente, a uma já crônica e grave polarização político-ideológica, pivô de toda essa crise e que acaba contaminando de certa forma os integrantes da Corte.

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