Quando a gente ouve Jacqueline Moraes, tem a sensação de que algo, de fato, está mudando. Ainda que o balançar das estruturas seja lento, machismo e racismo cedem um pouco diante da história dela. Talvez por ser a prova viva de que é possível, além de sobreviver a tais condições, sair da periferia, formar-se em direito, ser vice-governadora e se embrenhar agora numa eleição a deputada federal.
Depois de passar anos montando barraca de feira com a família para vender importados a menos de 100 metros do Palácio Anchieta, sede do governo do Espírito Santo, entre 2009 e 2019, saiu da informalidade para subir a escadaria do Palácio Anchieta como a vice-governadora do Espírito Santo. Aceitou a missão com uma condição: ser uma vice atuante e com voz ativa.
Tornou-se uma liderança na pauta das mulheres. Jacqueline acredita que representatividade e informação são os caminhos de luta mais promissores para o empoderamento feminino. "Muitas pessoas perguntam por que reafirmar mulher pobre, preta, periférica? Porque a reafirmação traz a representatividade. Essa representatividade é afirmando, reafirmando, repetindo. A repetição é didática e a gente precisa continuar repetindo, porque a população só vai ter direitos conquistados, se a gente tiver a representatividade", diz, em entrevista ao Correio.
Você é vista como uma liderança da luta da mulher. Uma professora lhe disse: “Você pode”. Foi ela que mudou o seu destino?
A professora é alguém com uma potência, às vezes, maior do que um mandato para mudar o rumo da história de uma pessoa. A voz de uma professora bem colocada, firme, que olha nos olhos, como ela me olhou, muda o destino. Eu não tive mais contato com ela, não sei quem é.
Você estava com quantos anos à época?
26 anos. Naquela época, os camelôs já me viam como liderança. Quanto tinha qualquer debate com o município, eles diziam, “chama a Jacque” para poder resolver. Meu pai, pernambucano que foi para cidade grande tentar uma vida melhor, tinha duas frases. A primeira, ele dizia assim, “a gente só é respeitado se tiver dinheiro”. Então, com isso, acabei abandonando a escola aos 14 anos. Eu dizia: “Quero ganhar dinheiro, quero minha primeira barraca”. Ele também falava: “Em tempo de crise, ou chora ou vende lenço. A gente vai escolher sempre vender lenço”. Então, aprendi da mesma forma.
O que você fez?
Fui ter minha barraca. Meu pai morreu novo lá no Espírito Santo, aos 46 anos, idade que tenho hoje. Ele faleceu, e eu que assumi a frente da barraca, com a minha mãe, para sustentar meus irmãos, César e Andreia. Então, nesse contexto, eu fui para dentro com a minha mãe, me tornei uma mulher muito brava.
Essa foi sua formação.
Isso tudo foi me forjando, você vai virando uma voz. Um dia, estudantes chegaram até mim e disseram que queriam fazer um trabalho sobre marginalização do trabalho informal. Eu falei que não era marginal. Até então, na minha cabeça, eu nunca me vi como marginal. A visão que deles era de que a sociedade marginalizava quem tinha trabalho informal, ou seja, era minha realidade em si. Eles queriam mostrar isso, que, por trás da barraca do camelô, tem uma família que se sustenta. Que, por trás daquela doceira, daquela salgadeira, tem uma mulher, mãe, sozinha, que sustenta sua família.
O que aconteceu?
Eles fizeram esse trabalho, ficou muito bacana, e eu fui apresentar na faculdade. Quando cheguei lá, encontrei essa professora que, ao me ouvir falar, me chamou no canto e disse, “menina, você fala tão bem, você precisa fazer direito”. Aí, eu falei assim: “Nossa, não posso, só tenho até a quinta série”. E ela falou, “Quem disse que você não pode?”. Ela me explicou o caminho da EJA (Educação para Jovens e Adultos).
E você retomou os estudos.
Foi quando recomecei a estudar, a ter um acesso à própria presidência dos camelôs, à Câmara Municipal. Descobri que o cidadão pode solicitar uma tribuna livre. Enfim, coisas que você normalmente não sabe. Se você não for da política, como eu era até aos 26 anos, você não sabe nada. É como você achar um baú de informações. Tanto que até hoje eu falo que o empoderamento da mulher vem a partir da informação. Francis Bacon dizia que informação é poder. E eu acredito que esse empoderamento vem com a informação.
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Você fez Direito?
Fiz, seguindo o que a tal professora recomendou. Estamos tentando recuperar o nome dela, porque tem 20 anos. Terminei a EJA do ensino fundamental, do médio. Fui vereadora na minha cidade. Depois, desisti de ser vereadora, fui para o PSB para trabalhar essa questão das mulheres. Tive dois diplomas antes, o de vereadora e, depois, convidada a ser a primeira mulher vice-governadora. Mas o diploma de Direito veio já na vice-governadoria, em 2020, quando eu já estava havia dez anos na faculdade, tentando terminar. Em 2020, eu me formei em Direito.
O mandato da vice-governadora está terminando. Quais os planos?
Terminar o mandato bem avaliada, porque tenho uma agenda específica na vice-governadoria, a Agenda Mulher. Trabalhamos inclusive formação política de mulheres dentro de um órgão público. Nossa agenda tem uma política pública de formação política apartidária, que fizemos dentro desse programa, Agenda Mulher Empreendedora. Trabalho com a ideia de a mulher empreender. Empreender emocionalmente, politicamente, socialmente. Essa agenda nasceu desde o primeiro dia do governo, junto comigo. Deixo como legado para a sociedade como uma entrega de qualificação, formação, de empoderamento feminino.
Vai tentar o Congresso?
Estou sendo convidada pelo partido para um novo pleito de pré-candidatura a deputada federal. E, acontecendo isso, o plano é ampliar essa participação. De 513 deputados, nós temos 71 mulheres. É muito pouco para um país em que 52% da população são mulheres.
Por que que as mulheres não têm interesse na política?
Fiz uma pesquisa empírica, dentro do que eu tinha — até porque eu não tinha uma formação. Mas fiz uma pesquisa quando desenvolvi a hashtag #nãosejalaranja. Descobri que existe um baixo interesse que gera baixa representatividade, que gera baixa qualidade na política pública e quantidade. Então, faltam quantidade e qualidade na política pública que atenda a mulher. Nós estamos falando aqui, por exemplo, da professora. Majoritariamente, são mulheres. Por que não tem uma valorização? Talvez porque nós não temos mais mulheres ocupando esse espaço político, para falar por mais professoras, mais médicas. Então, gera novamente esse ciclo vicioso, com baixo interesse. E aí gera baixa representatividade.
E onde é preciso quebrar esse ciclo?
É no baixo interesse. Se quebrar ali e inverter, ou seja, aumentar o interesse, aumenta a representatividade, que vai aumentar a quantidade e a qualidade da política pública. Se você pensar na instituição do voto, em 1532, e na conquista do voto das mulheres, em 1932, tivemos 400 anos sem a presença das mulheres construindo a política pública do Brasil. E há apenas 90 anos que essas mulheres começam a construir essa política pública. Então, a gente vai ter que quebrar é no interesse. Esse é o trabalho cansativo que a gente faz e que tem que ser feito, de uma encorajar ou outra a participar.
E tem dado resultado?
Estou percebendo algo diferente, pelo menos, no meu estado, um movimento de mulheres. Por exemplo, tínhamos três vereadoras eleitas pelo PSB, em 2016. Em 2020, tivemos 17, com a minha presença na vice-governadoria. “Ah, mas vocês tiveram só duas vezes na vice, do partido.” Sim, mas muitas vices mulheres. As pessoas tentam desconstruir a ideia da vice. “Ah, as mulheres foram muito chamadas para vice, mas não é por causa do fundo (partidário)?” Não importa, a gente não era nem vice. Se o fundo veio e passaram a nos chamar para vice, nos convidar, o fundo já deu uma contribuição positiva. Ainda não é o ideal. Mas entre o possível e o ideal, a gente está caminhando.
O que é preciso fazer para quebrar o baixo interesse das mulheres pela política?
Precisamos quebrar esse baixo interesse com reeducação social para as mulheres. Não é fácil para a mulher se lançar na vida pública. No contexto da violência política de gênero, é assim. Um homem erra, onde ele é atacado? No erro, no pensamento errado, na frase mal colocada, no projeto que assinou sem ler e tal. Quando a mulher erra, ela é atacada na sua honra, porque é uma burra, porque é isso, é aquilo. Esse tipo de ataque na sua moral, na sua família, na sua honra, é que nos afasta da política.
Tem que ser uma mulher com perfil que nem o seu, mais bravo, para ocupar espaço de poder?
(Risos) A inteligência emocional me ajudou muito a separar. Converso com as mulheres no partido, com as meninas na escola. E sempre digo: mergulhar na vida pública é mergulhar na opinião do outro. Até onde a opinião do outro faz diferença para você? Porque para os homens, não faz. Para os homens, o que o outro está falando e nada é a mesma coisa. Não tem nada a ver com o sentimento, tem a ver com estratégia. Preciso me vestir de terno e parecer um homem? Não. Posso fazer do meu jeito, mas preciso ser estratégica. E uma das estratégias que eu percebo é assim. Por eu ser muito brava, ou eu choro, ou eu parto para cima. Então na política, quando não posso partir para cima, eu choro.
Mas às vezes, chorar pode parecer demonstração de fraqueza.
Exatamente. E aí você tem que beber água, aprender a respirar. Já passei por momentos de muita raiva, mas aprendi a me controlar. Uma das estratégias para as mulheres é aprender as técnicas. Respira quatro vezes, engole quatro vezes, bebe um copo de água, engole. E onde eu coloco a emoção? No discurso.
A politica é racista?
A sociedade é racista. A sociedade brasileira tem o racismo cultural enraizado em todos nós, que a gente precisa ir desmistificando. O racismo vem da não-aceitação. Até mesmo do espaço físico. Eu me tornei vice-governadora e fui morar num apartamento. Sou da periferia, sou do morro mesmo, mas a segurança não permitiu que eu ficasse lá. Vim morar no apartamento na minha cidade. Eu entrando no elevador um dia, oito horas da manhã, entrou uma moça da minha idade, preta, desceu um andar a menos. Eu falei para ela: “bom trabalho”. Eu sou uma mulher preta, mas eu falei para ela “bom trabalho”, porque, nem na minha visão nem talvez na dela, eu não era moradora do prédio. E ali eu fiz uma reflexão.
Como foi assumir o cargo de vice “empoderada”?
Eu brinquei com Casagrande, acho que eu não estou preparada para assumir uma pasta agora, mas não por falta de preparo administrativo. É porque eu quero ser só vice. Aí, ele falou: "Já fui vice e sei que você é uma pessoa atuante. Você acha que dá conta de ficar só na vice? Aí, eu disse: "Eu preciso ser uma vice empoderada, e quem tem que me empoderar é você". E ele brincou: "O que é uma vice empoderada?" Eu respondi: "Preciso participar de tudo no governo". E foi isso que aconteceu desde 2019. Em todos os eventos do governo, eu falo. Ele sempre garantiu a fala. O governador está presente, a vice fala; o governador está ausente, a vice comanda. Então, esse é o perfil dele, e isso empoderou demais a minha presença.
Há resultados práticos?
A gente já está até discutindo a criação de um fundo de política pública para as mulheres. Construímos um pacto de enfrentamento da violência contra as mulheres. O Espírito Santo é um estado violento, não só contra as mulheres, mas em geral. As pessoas gostam de resolver as coisas meio que na briga. E a gente está mudando isso, numa década com redução. Saiu de 2.000 homicídios para menos de mil em 2019.
E como deputada, se eleita, qual será sua bandeira?
Quero continuar essa representatividade das mulheres, levando essa ideia do poder pela informação, pela formação, qualificação, pela educação. É isso que vai tirar as mulheres da falta de representatividade e vai quebrar aquele ciclo de que eu falei, da falta de interesse. Nós vamos fazer uma reviravolta nesta nação, pode ter certeza.
O que há de ruim em misturar religião com política?
Hoje no Brasil ele tem cristãos católicos, cristãos espíritas, cristãos protestantes, como é o meu caso. Eu sou protestante há 30 anos, mas não consigo aceitar um cristão protestante dizer que o bandido bom é bandido morto. Não consigo aceitar que um cristão defenda armamento. Cristão de verdade defende a mensagem de Cristo. E Cristo, o que ele defendeu? A valorização das mulheres, por incrível que pareça. Cristo defendeu as mulheres numa sociedade que era totalmente contrária a elas. Vejo Cristo amando as pessoas, independentemente de qualquer coisa, e enfrentando todo tipo de preconceito religioso e político da sua época. Se você é cristão, não precisa sair muito fora disso.
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