Na animação brasileira Irmão do Jorel, as crianças são orientados pela professora a escrever uma reportagem com o tema: o que fazer para mudar o mundo. Isso coloca o personagem principal em diversos apuros e gera assunto para mais de um episódio ao longo da terceira temporada. Na vida real, duas estudantes se depararam com uma tarefa semelhante: sugerir um projeto de lei que gere impacto na vida de outras pessoas. Entretanto, o desfecho, para elas, foi bem diferente.
Emilly Santos e Hillary Gomes tinham 19 e 15 anos de idade, respectivamente, nos anos de 2019 e 2021. Foi quando, separadas por mais de 2 mil quilômetros de distância entre Recife e Brasília, elas receberam tarefas de casa semelhantes de duas professoras e pensaram em um problema em comum: menstruação.
Com palavras diferentes, as duas disseram que estavam inconformadas com a mesma coisa: o descaso do poder público com esse período que, inclusive, pode impedir pessoas que menstruam de ir ao trabalho, escola, etc.
Assista o depoimento de Emilly e Hillary
Projeto de lei do Senado
Emilly estudava direito e transformou o trabalho em uma ideia legislativa pela ferramenta e-Cidadania, do Senado Federal. A plataforma abriga diversos tipos de participação popular e, no caso das ideias, pessoas comuns podem sugerir projetos de lei. Para isso, basta que elas consigam pelo menos 20 mil assinaturas, denominadas "apoio", pelo sistema.
A ideia de Emily foi apoiada por 35,9 mil pessoas no prazo de quatro meses, estipulado pela plataforma. Dali, ela se transformou na sugestão nº 43 de 2019 e foi para apreciação na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado. Uma vez aprovada, virou o projeto de lei nº 2992 de 2021.
Já Hillary estava no segundo ano do ensino médio quando recebeu da professora de geografia a tarefa de enviar uma sugestão para o e-Cidadania. A ideia dela recebeu 36,6 mil apoios nos mesmos quatro meses. Depois de se transformar na sugestão nº 7 de 2021, ela foi incorporada ao PL 2992/2021.
O assunto é tão relevante para a vida pública que, na Câmara dos Deputados, uma outra proposição tratava de um assunto semelhante. De autoria da deputada Marília Arraes (PT/PE), o PL nº 4968/2019 propunha a criação de uma ampla política pública de saúde voltada ao período menstrual. Dentre as medidas, estava a previsão de distribuir absorventes pelo Sistema Único de Saúde (SUS) de forma gratuita para estudantes, pessoas em vulnerabilidade econômica e mulheres inseridas no sistema prisional.
Os dois projetos foram apensados. Esse procedimento de nome estranho ocorre sempre que proposições de temática similar estão aptas para votação nas casas legislativas. Assim, os PLs tramitaram juntos, foram aprovados em outubro de 2021, vetados pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) e transformados em lei na última quinta-feira (10/3), depois que o veto foi derrubado pelos legisladores.
“Aqui a gente está fazendo uma reparação em relação a anos que esse assunto foi escondido, guardado ali na caixa. Uma reparação à violência que tantas meninas e mulheres passaram ao ver esse projeto vetado com todas as justificativas do mundo”, comemorou durante a sessão a deputada Marília Arraes.
Garantia de um direito básico
Para Emilly, a principal questão é que o poder público não pensa no direito básico à saúde para mulheres. “Homem não precisa de absorvente, mas ele é um item de higiene básica e isso não foi pensado em nenhum momento”, contou. Ela lembra que começou a se incomodar com a questão quando viu discussões sobre o assunto nas redes sociais, mas era difícil usar as mesmas redes para fazer algo a respeito que tivesse impacto na vida prática das pessoas.
No momento em que o trabalho para a aula de direito constitucional foi proposto, a estudante viu uma oportunidade de pelo menos tentar elaborar algo que fizesse a diferença no mundo real. “Não adianta você tuitar, não adianta você ir para o Instagram, você tem que meter a mão na massa e fazer alguma coisa”, ressaltou a jovem.
Atualmente, com 21 anos de idade, ela precisou trancar o curso de direito por causa dos problemas que teve durante a pandemia. Emily diz que, em alguns períodos, não conseguia ter certeza se teria dinheiro suficiente para continuar pagando as mensalidades, além do fato de que as aulas virtuais se tornaram mais cansativas que as atividades presenciais.
A experiência com a sugestão de um projeto de lei foi um incentivo para ela que, atualmente, trabalha como corretora de imóveis e se prepara para retomar a graduação. “Saia da fantasia e vá para a prática. Saia de rede social. Você tem que ir em uma pessoa que vai agir por você. Não vá para o Instagram porque ele não vai fazer nada, nenhuma rede social vai. O que você pode fazer é se informar sobre como você pode ajudar de uma forma prática”, é o que ela aconselha a outros jovens que tenham inquietações semelhantes às dela.
Um reforço para a democracia
A professora Anna Priscilla Prado foi a responsável pelo projeto que apresentou as ferramentas à turma de direito em que Emilly estava matriculada. Ela comenta que exercícios como esse são uma forma de estimular a participação dos cidadãos a nutrirem um sentimento republicano. Na própria faculdade, o caso virou um multiplicador de experiências e foi repassado para outras turmas.
“A ideia de sugestão legislativa viralizou. Em menos de duas semanas nós já tínhamos mais de 20 mil assinaturas, que é o requisito mínimo. Em duas semanas, a gente já tinha mais de 35 mil assinaturas. E aí ficamos acompanhando a tramitação da sugestão, os alunos foram repassando para outras turmas da universidade e para outras universidades. Dois alunos dessa sala foram convidados para fazer essa oficina na universidade pública para outros estudantes. E assim a gente vai fazendo o processo de transformação”, narrou a professora.
Ela conta que foi uma grata surpresa para todos a notícia de que o projeto começaria a tramitar. “Foi motivo de felicidade. Como é possível, um aluno ou uma aluna que está na graduação, que está no início do curso, participar ativamente da pauta democrática? Essa ideia, que surgiu de um trabalho de sala de aula, pode transformar a realidade de milhares de mulheres brasileiras”, comemorou.
A professora lembra que iniciativas como essa, de participação digital, têm alguns obstáculos a vencer. Os três principais, na opinião dela, são: o acesso à internet e aos meios digitais, que hoje é negado a mais de 47 milhões de brasileiros; o letramento digital, que é um outro tipo de inclusão, sobretudo para pessoas mais velhas e/ou menos escolarizadas nos ambientes da internet; e a divulgação massiva dessas ferramentas como política pública educacional.
Vencidas essas barreiras, que não são pequenas, Anna Priscilla acredita que essas ferramentas possam ajudar a integrar os poderes à vida cotidiana das pessoas. “Quanto mais a gente aproximar os poderes da realidade, da população, mais a gente desperta o sentimento republicano, principalmente com a geração dos nativos digitais. Porque eu já parto de uma geração que é ativista, independentemente do espectro, se é muito positivo ou negativo, se é profundo ou superficial, mas é uma geração ativista, tem presença de rede”, complementa.
Não é uma escolha
Um pouco mais nova que Emilly, Hillary estava no segundo ano do ensino médio em 2021 e precisou fazer a mesma tarefa de casa para a disciplina de geografia: propor um projeto de lei no e-Cidadania. “Eu não conhecia essa plataforma e foi uma surpresa muito grande saber que qualquer pessoa poderia ter esse acesso”, contou.
Para ela, o mais inquietante é que menstruar não é uma escolha. Não fazia sentido, então, que mulheres de diversas idades fossem penalizadas todo mês caso não pudessem arcar com os custos de itens para a higiene menstrual. “Eu pensei assim: no Brasil a gente tem distribuição de preservativos gratuitamente nos postos de saúde. Como mulher, eu sei que ninguém chegou na gente e perguntou ‘ei, você quer sangrar uma vez por mês?’, não. Não é assim que funciona. Eu sempre achei muito injusto o fato de ter que pagar para lidar com uma situação que é natural nossa, sendo que menstruar não é uma escolha”, argumentou.
Ela disse que não contava que fosse conseguir os 20 mil apoios necessários. “Eu só contava com o pessoal aqui do meu colégio, então achava que teria 40 ou 50 apoios. E só acompanhei nessa parte”, diz. Porém, meses depois, Hillary foi pega de surpresa ao ser chamada na secretaria do colégio em que estuda e ser informada de que a ideia legislativa criada por ela tinha conseguido mais assinaturas que o necessário e iria para avaliação da CDH.
A estudante, que agora se prepara para prestar o vestibular de medicina, conta que ficou orgulhosa de ter dado uma contribuição para algo tão grande. “É muito gratificante eu ter essa sensação de que pelo menos uma partezinha eu contribuí para uma coisa que acredito. Futuramente quando eu estiver atendendo uma paciente minha eu lembre que fiz parte disso e pense ‘nossa, na minha época isso não era possível e hoje elas têm essa chance’”, imagina.
Emaranhado legislativo
Para além das contribuições populares, o projeto de lei PL 4968/2019, que institui o programa de proteção à saúde menstrual, foi envolvido em uma série de confusões legislativas. Embora tenha sido aprovada com facilidade pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal em 2021, a lei 14214/2021 foi parcialmente vetada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).
A justificativa oficial foi a falta de indicação de uma fonte de custeio. Entretanto, o presidente deu declarações em que zombava do tema e transformava a questão em mais um capítulo da guerra dele contra o Partido dos Trabalhadores (PT), do qual faz parte a deputada Marília Arraes, envolvida na proposta.
“Não sabia, a mulher começou a menstruar no meu governo. No governo do PT não menstruava, no do PSDB não menstruava também. O cara apresenta um projeto, mas não apresenta a fonte de recurso. Se eu sanciono, se não tiver de onde vem o recurso, é crime de responsabilidade. Se o PT voltar, as mulheres vão deixar de menstruar e está tudo resolvido”, chegou a dizer ironizando o projeto de lei.
Menos de seis meses após a declaração, o presidente assinou um decreto com conteúdo semelhante, estabelecendo uma política pública de distribuição de absorventes. Isso chegou a levantar dúvidas sobre a derrubada do veto imposto por ele aos trechos da lei 14214/2021. Ainda assim, o Congresso Nacional aprovou por ampla maioria a derrubada do veto e, desde a quinta-feira (10/3), a norma sobre saúde menstrual está plenamente em vigor.