No dia cinco de fevereiro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro (PL) enviou um projeto de lei ao Congresso Nacional para tentar cumprir uma de suas principais promessas de campanha: a liberação da mineração em terras indígenas.
Dois anos e um mês se passaram sem que o projeto avançasse. Nos últimos dias, porém, o governo passou a usar invasão da Ucrânia por tropas russas como justificativa para acelerar a sua tramitação.
De um lado, o governo afirma que a aprovação da matéria pode acabar com a dependência do Brasil de fertilizantes importados de países como Rússia e Belarus, uma vez que haveria grandes reservas de potássio (matéria-prima do produto) em terras indígenas.
Do outro, lideranças indígenas e pesquisadores alegam que a guerra na Ucrânia é apenas um pretexto para abrir essas áreas para o setor da mineração como um todo e exploração indiscriminada de hidrelétricas.
A invasão da Ucrânia pela Rússia começou no dia 24 de fevereiro e vem causando um rastro de destruição, mortes e gerando milhões de refugiados.
De acordo com o levantamento mais recente da Organização das Nações Unidas (ONU), pelo menos 364 civis foram mortos, incluindo 25 crianças. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), mais de 1,5 milhão de pessoas fugiram da Ucrânia em direção a países vizinhos.
Dependência externa de potássio
Para o Brasil, um dos efeitos práticos mais temidos dessa crise é a interrupção do fornecimento de fertilizantes agrícolas exportados pela Rússia. Segundo o governo, o Brasil é o quarto maior importador desses produtos no mundo.
O Brasil importa aproximadamente 85% dos fertilizantes que consome. Desse total, 23% é exportado pela Rússia e 3% pela Belarus, aliada do regime de Vladimir Putin. Especialistas afirmam que o solo brasileiro em regiões como o Cerrado precisa do uso intensivo desses tipos de fertilizantes para serem mais produtivos.
Na sexta-feira (04/03), diante do agravamento da crise na Ucrânia, o governo russo recomendou a suspensão das exportações de fertilizantes produzidos no país.
O Ministério da Agricultura brasileiro emitiu uma nota informando que a recomendação ainda não estaria afetando o comércio do produto no Brasil. Mesmo assim, a ministra Tereza Cristina tem viagem marcada no final desta semana para o Canadá, outro grande produtor de fertilizantes.
É em meio a esse cenário, o governo vem tentando acelerar a tramitação do projeto que libera a mineração em terras indígenas.
Na segunda-feira (07/03), a liderança do governo na Câmara dos Deputados protocolou um pedido de votação do projeto em regime de urgência. Isso permite uma tramitação mais rápida.
O presidente Jair Bolsonaro disse esperar que o projeto seja aprovado pela Câmara dos Deputados até o final do mês de março. Para entrar em vigor, a matéria ainda precisa ser aprovada pelo Senado Federal e, depois disso, sancionada pelo presidente.
Na segunda-feira (07/03), Bolsonaro afirmou, em entrevista a uma rádio do Estado de Roraima, que a guerra na Ucrânia é uma "oportunidade" para o Brasil aprovar o projeto.
O presidente argumenta que a aprovação do projeto poderia viabilizar a exploração de reservas de potássio localizadas dentro de terras indígenas, especialmente naquelas localizadas na bacia do Rio Amazonas, em uma região entre os Estados do Amazonas e do Pará.
"Na crise, apareceu uma boa oportunidade pra gente. Temos um projeto que fez dois anos e permite nós explorarmos essas terras indígenas. De acordo com o interesse do índio. Se eles concordarem, podemos explorar minério, fazer hidrelétricas [...] Esse projeto já sinaliza uma votação de forma urgente porque estamos numa crise de fertilizantes", afirma.
À BBC News Brasil, o líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR) defendeu a medida como uma forma de diminuir a dependência do país em relação à importação de fertilizantes.
"(Precisamos aprovar o projeto) porque o Brasil tem reservas de matéria-prima para fertilizantes que não são exploradas porque estão em terras indígenas. A mineração em terras indígenas é uma das soluções [...] Os índios também querem prosperar, o Brasil precisa prosperar", afirmou Barros.
Mineração em terras indígenas
O projeto de lei mencionado por Bolsonaro e por Ricardo Barros foi enviado ao Congresso Nacional em fevereiro de 2020. Ele prevê que recursos minerais e energéticos como potencial hidrelétrico possam ser explorados dentro de terras indígenas. A Constituição Federal de 1988 já previa essa possibilidade, mas as atividades nunca foram regulamentadas por lei.
Desde sua campanha presidencial, em 2018, Bolsonaro vem defendendo a mineração em terras indígenas. Segundo o presidente, ela permitiria que comunidades locais pudessem se beneficiar com royalties oriundos dessas atividades. Lideranças indígenas e ambientalistas, por outro lado, criticam o projeto.
Eles argumentam que a liberação da mineração nessas áreas poderia levar a problemas econômicos, sociais e ambientais como o aumento do desmatamento, especialmente causado pelo avanço do garimpo de ouro na Amazônia.
Onde estão as reservas de potássio no Brasil?
Mas enquanto o governo afirma que a liberação da mineração em terras indígenas pode ajudar a resolver a dependência do Brasil em relação a fertilizantes, cientistas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) alegam que o argumento é equivocado.
Pesquisadores do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais (LAGESA) afirmam que as reservas conhecidas de potássio localizadas fora da Amazônia Legal seriam suficientes para garantir o abastecimento do Brasil até 2089.
Além disso, da área total de reservas estimadas na Amazônia, apenas 11% estariam dentro de terras indígenas homologadas, segundo o estudo.
A pesquisa, que está sendo finalizada, compilou informações da Agência Nacional de Mineração (ANM) sobre as reservas conhecidas de potássio do país. De acordo com esses dados, o Brasil tem reservas estimadas em 1,15 bilhão de toneladas de potássio potencialmente exploráveis.
Desse total, 894 milhões de toneladas (77,8%) estão em áreas fora da Amazônia Legal. As maiores reservas estariam no estado de Minas Gerais, entre os municípios de São Gotardo, Matutina, Quartel Geral e Tiros.
Nessa área, a estimativa é de que haja reservas de 837,5 milhões de toneladas. Ainda há depósitos menores nos estados de Sergipe e São Paulo.
A pesquisa também mostra que apesar dos altos volumes de reservas conhecidas, boa parte das que estão fora da Amazônia Legal existem na forma de rocha silicática, uma formação que demanda mais investimentos para a sua exploração na comparação com as encontradas na Amazônia, que estão na forma de silvinita.
Mas segundo um dos cientistas que coordenam o estudo, Bruno Manzolli, essa particularidade não inviabiliza a exploração do potássio no país.
"É preciso investimento nessas reservas já conhecidas. Fizemos cálculos considerando o aumento médio do consumo e constatamos que se o Brasil utilizasse todas as suas reservas fora da Amazônia Legal, seria possível abastecer o país até 2089. Se quiséssemos usar as que estão na Amazônia, essa estimativa subiria para 2100", disse Manzolli.
Os cientistas também utilizaram dados de um estudo divulgado em 2020 pelo Serviço Geológico Brasileiro (CPRM), uma empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia (MME). O documento analisou o potencial para a exploração de potássio na bacia do Rio Amazonas.
Os pesquisadores da UFMG sobrepuseram a área onde a CPRM afirma haver reservas de potássio com os mapas de terras indígenas. Eles constataram que da área de 13 milhões de hectares onde a CPRM estima haver potássio a ser explorado, apenas 1,5 milhão de hectares (11%) fica dentro de terras indígenas homologadas.
"Isso mostra que bastaria explorar o potássio nos 89% das áreas que estão fora das terras indígenas. Não precisaria explorar dentro dessas áreas", afirmou Manzolli.
Na avaliação do pesquisador, o governo está usando a crise na Ucrânia como um "pretexto" para aprovar um projeto que, há muito tempo, é uma das prioridades do presidente Jair Bolsonaro.
"É um pretexto. É usar um argumento que bate mais forte nas pessoas, o de que se faltar fertilizante vai faltar comida na mesa do brasileiro, para aprovar um projeto que, na realidade, não tem impacto sobre esse assunto", afirmou.
A cacique do povo Kayapó, O-é Kayapó Paiakan, avalia que o governo está usando a guerra na Ucrânia politicamente.
"Claramente, a gente vê que são argumentos utilizados por ele para acelerar os seus projetos [...]. a gente acompanha a atuação do governo em relação a essas questões. As lideranças indígenas estão atentas à fala do presidente e discordamos totalmente porque sabemos do impacto que isso vai causar para nós", diz.
A BBC News Brasil questionou a assessoria de imprensa do Palácio do Planalto sobre os dados levantados pelos pesquisadores da UFMG, mas o órgão não enviou resposta.
Indagado sobre os argumentos contrários à aprovação do projeto, Ricardo Barros negou que o governo esteja usando a crise da Ucrânia como pretexto para aprovar a matéria.
"Não é isso (pretexto). Nós estamos tratando deste assunto (potássio). Obviamente que mineração em terras indígenas abrange todos os minerais que existam em terras indígenas, mas não é isso que está em discussão", afirmou.
Barros admitiu, no entanto, que o empenho do governo em aprovar a matéria é uma tentativa de cumprir uma promessa de campanha do presidente.
"Essa alternativa (mineração em terras indígenas) é um compromisso de campanha do presidente Bolsonaro. Ele enviou o projeto para o Congresso e colocou na lista de prioridades deste ano. Não vejo nenhuma surpresa no fato de querermos votar essa matéria", afirmou.
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