Nas Entrelinhas

Análise: Existe muita empatia entre Putin e Bolsonaro

O verdadeiro teor da conversa privada entre os dois em Moscou é um iceberg, não ficou restrita à venda de carne e à compra de fertilizantes

Todos os homens do Kremlin — os bastidores do poder na Rússia de Vladimir Putin, de Mikhail Zygar (Vestígio), é um livro-reportagem com detalhes reveladores sobre o círculo íntimo de Putin e sua longa permanência no poder. É a história de um líder ardiloso e perigoso, mas também de um grupo que assumiu o controle da Federação Russa. Putin "se tornou rei por acaso", levado ao poder por oligarcas e políticos regionais, que o acolheram ao mesmo tempo em que manipulavam seus medos e ambições. Com o tempo, demonstrou uma habilidade incomum para se manter no poder e assumir o controle do grupo com mão de ferro, em meio a intrigas, conspirações e muita corrupção.

Putin assumiu com apoio do grupo de Boris Yeltsin, que promoveu reformas liberalizantes radicais, contra os comunistas, que ainda eram fortes no Parlamento, cujo candidato era Ievgeni Primakov, um antiamericano radical e revanchista. Ataques terroristas em Moscou e o conflito na Chechênia catapultaram a candidatura do ex-diretor da FSB, a antiga KGB. A imagem de líder jovem e modernizador, que seduziu o público doméstico, não convenceu o Ocidente. Seu projeto inicial de integração da Federação Russa à União Europeia, inclusive à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), foi rejeitado pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e pela primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel.

Essa rejeição, que considerou uma humilhação, e a ambição de se perpetuar no poder levaram Putin à guinada nacionalista e autoritária que vem marcando sua trajetória, inicialmente alternando a Presidência e o cargo de primeiro-ministro com Dmitry Medvedev, que presidiu a Rússia entre 2008 e 2012. A consolidação de seu poder se deu em razão do apoio popular à ideia de restabelecer o status de potência mundial da Rússia e à agenda conservadora dos costumes, da aliança com os militares e com a Igreja Ortodoxa, e do controle dos meios de comunicação, dos órgãos de segurança, do Ministério Público e do Judiciário.

É aí que nasce a empatia entre Putin e Jair Bolsonaro, que ficou evidente na recente visita do presidente brasileiro à Rússia. Há um terreno fértil para essa aliança política pessoal. Bolsonaro não tinha um projeto político claro quando foi eleito, bafejado muito mais pela sorte do que em razão de suas virtudes. Tem o mesmo discurso nacionalista, a agenda conservadora, uma aliança religiosa fundamentalista, o apoio de setores militares e do sistema de segurança, porém não controla os meios de comunicação e o Judiciário.

O isolamento de Bolsonaro no Ocidente, antipatizado pela opinião pública e em litígio com os principais líderes mundiais, inclusive o presidente norte-americano, Joe Biden, faria de Putin um parceiro natural de Bolsonaro na cena mundial, após a viagem a Moscou, não fosse a crise da Ucrânia ter virado uma guerra quente. O verdadeiro teor da conversa privada entre Bolsonaro e Putin é um iceberg ainda, não ficou restrita à venda de carne e à compra de fertilizantes, estratégica para os dois países. Houve conversas no âmbito da cooperação tecnológica e militar, na qual a Rússia, sim, pode vir a fazer diferença. E, para a oposição, existe o fantasma da interferência de hackers russos nas eleições.

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Cooperação

O silêncio de Bolsonaro em relação à guerra na Ucrânia é um sinal de que há, de fato, um pacto entre ambos, mal dissimulado pela atuação do Itamaraty e do chanceler, Carlos França, durante a crise. Na quinta-feira, Bolsonaro desautorizou o vice-presidente Hamilton Mourão, que condenou o ataque russo por desrespeitar a soberania da Ucrânia. A nota do Itamaraty pedindo a suspensão das "hostilidades" na Ucrânia, porém, não condenou a invasão. O Itamaraty disse apenas que acompanha as operações militares "com grave preocupação".

A invasão da Ucrânia é o maior ataque de um país europeu contra outro do mesmo continente desde a Segunda Guerra. Putin ameaçou com "consequências nunca experimentadas na história" para quem interferisse, o que pode fazer escalar o conflito, ainda mais com a reação da Polônia, da Lituânia e da Suécia, que também têm históricas relações com o povo ucraniano. É uma reação sem precedentes contra a Rússia, desde o fim da antiga União Soviética. Entretanto, os países do G7 — Alemanha, França, Itália, Reino Unido, Canadá, Japão e Estados Unidos — exigiram que o governo brasileiro condenasse a invasão da Rússia à Ucrânia sem subterfúgios. No Conselho de Segurança da ONU, o Brasil votou a favor da condenação.

Na viagem a Moscou, Bolsonaro havia agradecido a Putin pela histórica oposição da Rússia à internacionalização da Amazônia. Esse é um tema sensível para as Forças Armadas, principalmente o Exército. Mas qual a razão de o vice-presidente Hamilton Mourão ter sido tão enfático na condenação à invasão da Ucrânia, mesmo correndo risco de ser desautorizado, como foi, pelo presidente Bolsonaro? Sem dúvida, devido ao alinhamento do Alto Comando do Exército com o Ocidente nesta crise da Ucrânia. Entretanto, existe outra fronteira de cooperação entre os dois países no âmbito militar: a venda de equipamentos e transferência de tecnologia em áreas estratégicas para a nossa indústria de Defesa.