Volto hoje a um tema que tem estado presente em muitos dos meus artigos anteriores, mas cuja discussão é cada vez mais urgente: a qualidade da nossa vida democrática. O Brasil é um enigma difícil de ser decifrado. Temos os recursos e as condições para sermos uma das nações mais ricas do mundo. Temos uma grande agricultura, toda a energia de que precisamos, água em abundância, petróleo e muitos minerais, tudo o que é escasso em quase toda a parte. Mas permanecemos um país pobre e que cresce menos do que a maioria das nações. Uma das causas desse fracasso só pode ser a impotência do Estado devido à má qualidade da nossa vida democrática.
Nossa população deveria estar sempre indignada e numa busca incessante por algo realmente novo para transformar o país. Mas se as pesquisas de intenção de voto para as próximas eleições estiverem corretas, parece que os brasileiros estão, em sua grande maioria, dispostos, sem muita reflexão, a voltar ao passado, tal o horror que sentem no presente. O sentimento dominante tornou-se a procura do mal menor, um dos disfarces preferidos do conformismo e da apatia social.
A impressão é que as novas gerações de brasileiros são gerações sem esperança. É a explicação que me ocorre para a passividade e até para o cinismo político das nossas maiorias eleitorais. Creio que o pensamento dominante está contido numa passagem de Shakespeare: o que ficou irremediável tornou-se indiferente.
Há alguma razão para isso, pois nosso sistema político é um ambiente à parte da vida do país. O debate político não contém praticamente nada de interesse público, como políticas de crescimento e de proteção social, por exemplo. Tudo que diz respeito à vida das pessoas numa sociedade tão privada de tudo e tão dependente do Estado. Nada disso separa os partidos que, na verdade, não têm ideologia, nem ideias, nem posições. Seu único propósito é participar dos condomínios do poder e o fazem sem nenhum pudor — e com grande competência.
A conclusão é que a classe política, na sua maioria — pois há exceções à regra nos dois lados do espectro político, embora bastante minoritárias —, apropriou-se do Estado, seus recursos e seus instrumentos apenas em benefício próprio, passando ao largo do interesse comum. Em alguma medida isso sempre ocorreu, mas numa escala infinitamente menor. Hoje, a dominação do Estado pela corte política assumiu proporções sem precedentes, mesmo para a história de nossa velha cultura patrimonialista.
Recursos "privados"
Deputados e senadores sempre tiveram um pequeno limite no Orçamento para beneficiar as suas bases. Agora, além desses recursos, o Parlamento criou uma rubrica de grande valor para ser distribuída aos parlamentares, de forma secreta, como se fossem recursos privados. A soma das emendas, secretas e públicas, em 2022 está próxima de R$ 40 bilhões, enquanto que o total dos investimentos públicos não chega a R$ 45 bilhões. De um lado, o país, com seus 200 milhões de habitantes; de outro, nossos quase 600 parlamentares em pé de igualdade no Orçamento da República. Não é mais uma República.
Como é sabido, o apoio parlamentar ao governo tem como contrapartida a indicação, por deputados e senadores, de nomes para preencher os melhores cargos da administração federal. Por que pessoas eleitas para fazer as leis têm interesse nessas nomeações? É uma pergunta que fica no ar.
Na semana passada, o ministro da Economia, Paulo Guedes, solicitou à Controladoria-Geral da União a criação de um sistema que revele os nomes dos padrinhos de cada indicação, para conhecimento de todos. A CGU não respondeu e as lideranças políticas se indignaram com a ingenuidade ou a falta de tato do ministro. Quem prefere as sombras para agir certamente tem motivos muito fortes.
São apenas dois exemplos. Há muitos outros, sempre a demonstrar que a democracia brasileira tem donos e esses donos são poucos. Que a devolução do Estado à população não esteja na pauta de nenhum dos candidatos, é um sinal de que pouca coisa vai mudar nas eleições de outubro.
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