O presidente Jair Bolsonaro (PL) voltou atrás no cancelamento de decretos de luto oficial, que causou surpresa e polêmica, porque entre os nomes que deixaram de merecer as homenagens do Estado havia religiosos e pelo menos um representante da nobreza europeia. O anúncio foi feito pelo próprio presidente, na página que mantém no Facebook, na noite do último sábado.
Bolsonaro recuou, segundo ele, em função de um "apelo popular", embora tivesse recebido críticas, principalmente, das famílias dos homenageados e de parte da classe política, afetadas pelos cancelamentos. "Tendo em vista o apelo popular para que todos esses decretos permanecessem vigentes, tornarei sem efeito as revogações dos 122 atos, independente do governo que os decretou ou da personalidade homenageada", escreveu Bolsonaro em um post ilustrado com uma foto da estátua de Padre Cícero, uma das personalidades cuja homenagem havia sido cancelada.
Do total de decretos de revogação que perderão a validade, 25 foram editados pelo atual governo. A lista inclui nomes de religiosos como dom Helder Câmara e frei Damião de Bozano; do rei Balduíno I, da Bélgica; do antropólogo Darcy Ribeiro; dos economistas Celso Furtado e Roberto Campos; dos jornalistas Roberto Marinho e Otávio Frias; e de políticos como Franco Montoro, Antônio Mariz, Miguel Arraes, Antônio Carlos Magalhães e Luís Eduardo Magalhães. Também haviam sido revogados decretos de luto coletivo pelas vítimas de acidentes aéreos, como o voo 1907 da Gol, em 2006 — que deixou 157 mortos —, e o 3054 da TAM, em 2007, com 199 óbitos — a maior tragédia aérea do país.
Na postagem na rede social, Bolsonaro citou alguns exemplos de decretos anulados pelo então presidente Fernando Collor — como as homenagens póstumas a Tancredo Neves, papa João XXIII, os presidentes Emílio Médici e Castello Branco, além de Santos Dumont.
Críticas
Antes do recuo de Bolsonaro, na conta que mantém no Twitter a deputada federal Marília Arraes (PT-PE), neta do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes, considerou a política de revogação de lutos oficiais "um grande absurdo" e que é "inadmissível (que o presidente) continue tentando apagar nossa história e o grande legado que figuras como essas nos deixaram. Não iremos permitir esse apagamento", publicou.
Para a antropóloga Adriana Mariz, filha do ex-governador da Paraíba Antônio Mariz, morto em 1995 e cuja homenagem também fora revogada por Bolsonaro, a suspensão das homenagens oficiais de luto "é uma tentativa de cancelamento da própria história do país". Ela afirmou que se sentiu ultrajada com a "política de cancelamento" do governo federal.
"Seria uma forma de queimar os registros oficiais da própria história", disse Adriana, estendendo a crítica ao tratamento dado pelo governo às quase 627 mil vítimas da covid-19.
O mestre em ciência política e professor do Ibmec Danilo Morais afirma que a revogação de decretos só faz sentido para atos que ainda surtam efeitos jurídicos e que, efetivamente, cumpra o papel de desburocratizar a gestão pública. No caso do cancelamento de lutos oficiais, "a providência é completamente equivocada, pois os atos já perderam o seu objeto". "O revogaço do governo vem sendo feito sem nenhum critério, sem nenhuma vinculação com a burocracia do Estado. Há falta de substância", salienta.
Cortina de fumaça
Para Morais, é preciso analisar os cancelamentos como mais um exemplo do comportamento recorrente do presidente Bolsonaro de levantar "cortinas de fumaça" com medidas diversionistas, para tirar o foco de questões que incomodam o governo. "As elites políticas não devem gastar energia com essa temática, que não tem nenhum efeito jurídico, só a intenção de desviar a atenção da opinião pública", sugere.
Morais aponta que a consequência negativa dessa política é a desmoralização do próprio revogaço, que, além de não ter produzido nenhum efeito prático na intenção de enfrentar a burocracia estatal, ainda agride a memória do país. "A decretação de luto oficial faz parte da narrativa histórica oficial, e a tentativa de apagar esses personagens é grave. É uma espécie de negacionismo, uma tentativa do presidente de reescrever a História pela sua própria lente. Não é um outro olhar, é uma tentativa de cancelamento, de negacionismo da História oficial", explica.
O governo Bolsonaro só prestou homenagens oficiais por ocasião da morte do escritor Olavo de Carvalho, na semana passada, e do ex-vice-presidente Marco Maciel, em junho do ano passado. A anulação de documentos considerados sem eficácia teve início no governo Collor sob o argumento de que era preciso desburocratizar a gestão pública e promover uma racionalização normativa.
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