Os analistas políticos e os economistas do mundo paralelo das finanças são unânimes em afirmar que o país está parado e que o câmbio, a inflação e os investimentos estão perturbados por causa das incertezas quanto aos resultados das eleições do ano que vem. O sentimento é que tudo pode mudar muito conforme o presidente que for escolhido. Penso que isto é reflexo de uma visão idealista da política, porque à semelhança do mundo do príncipe de Salina, do romance O Leopardo. Na maior parte do tempo, no Brasil os presidentes mudam para que tudo fique como está.
Na história das últimas décadas, o Brasil só mudou de fato sob o comando de uma ordem autoritária e impositiva, nos governos dos generais Castello Branco e Ernesto Geisel, ou sob raras lideranças inspiradoras, capazes de projetar uma imagem atraente do nosso destino, como Juscelino Kubitschek e Fernando Henrique Cardoso. No resto do tempo, os sistemas tradicionais da política e da Justiça se impuseram sobre a Presidência e acabaram ditando suas políticas e seu comportamento, muitas vezes no sentido contrário aos discursos de campanha.
As únicas escolhas eleitorais democráticas em nosso país, no sentido de que o povo sabe exatamente quem está escolhendo, e para que, são as de prefeitos, governadores e presidente da República. Nos países em que o regime de governo é o parlamentarismo ou naqueles de regime presidencialista com apenas dois ou três partidos, também a escolha dos deputados é consistente com a vontade dos eleitores.
No Brasil, a eleição dos deputados, que no fim das contas vai definir o que os governos podem realmente fazer, é um tiro no escuro. Ninguém, nem mesmo o cidadão mais sofisticado, tem qualquer noção das consequências do seu voto. O deputado em nosso sistema praticamente não presta contas de nada. Pode cruzar todas as fronteiras, sejam partidárias, ideológicas ou de valores, e faz todos os acordos que forem convenientes.
Limite extremo
Essa realidade vem de longe, mas, no governo atual, chegou a um limite extremo. Não é possível saber se no futuro algum presidente terá a força e a coragem para desmontar esses arranjos, que desmoralizam qualquer administração e ditam sua pauta, tornando-a fragmentária, paroquial e alheia às verdadeiras questões que cabe ao governo enfrentar.
A Constituição, que mudou tanta coisa, não quis reformar a vida política. Deu margem à multiplicação de partidos sem nenhuma razão de ser. Partidos sem projeto, sem propostas, sem nada que tenha relação com o interesse público. Salvo dois ou três, os outros não são democráticos; são partidos que têm donos e funcionam como cartórios, que distribuem franquias. No final, sem que ninguém perceba, dominam as eleições e o Parlamento.
Enquanto perdurar essa ordem política, não há que se falar em incerteza. O que temos, ao contrário, são tristes certezas. A certeza de que o presidente a ser eleito, qualquer que seja ele, não vai ter maioria na Câmara ou no Senado. A certeza de que não precisa perder seu tempo em convencer 10 ou 20 partidos das razões de Estado, das carências da população e da construção de um futuro. Essa língua republicana não é compreendida num círculo que se acostumou com nomeações e emendas, se possível secretas, e que tem sob seu controle todas as pautas legislativas — e, se necessário, a ameaça dos impeachments. E a certeza de que para governar precisa ultrapassar muitos limites.
No fundo, não é só o presidente que é refém desse sistema infeccioso. É também a própria população. A verdadeira polarização da eleição de 2022, a que precisa ser resolvida, não é entre pessoas, mas a que separa, de um lado, a República e a sociedade, e, de outro, um sistema de chefetes partidários que tomou para si o Parlamento.
Pode parecer impossível, mas vou lembrar Hannah Arendt, quando disse que o homem, de um modo misterioso, é manifestamente dotado para fazer milagres e que os homens, enquanto puderem agir, podem realizar o improvável. E continuamente o realizam.
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