Na crônica A morte dos outros, publicada no livro Alta ajuda (Foz Editora), o filósofo e professor Francisco Bosco — filho do cantor e compositor João Bosco — afirma que se uma divindade lhe desse a chance de fazer um único pedido, não seria um pedido para a vida, mas para a morte. “Eu escolheria como morrer, aliás, como não morrer: eu pediria que, entre as infinitas formas possíveis de encontrar a morte, eu fosse poupado unicamente de ser buscado por ela em um acidente de avião.”
Segundo ele, todos sabemos que vamos morrer, mas o que torna suportável a nossa finitude é ela ser indeterminada, porque não sabemos quando vamos morrer e, por isso, essa é uma verdade encoberta, como uma doença indolor. Por isso, é tão aterrorizante ser desenganado por uma doença incurável e saber que os nossos dias estão contados. Entretanto, Bosco não tem medo do perigo, da morte no mar ou mesmo num voo de asa delta, já levou até um tiro durante um assalto, mas não quer morrer num acidente aéreo:
“Deus não permita que eu morra em um avião. Um Airbus que não sei quem construiu, não sei quem nomeou, não sei quem abasteceu, não sei quem pilotou. Sentado espremido no meio de centenas de pessoas que eu não sei quem são. Emboscado por um céu que não sei qual é. Emboscado por uma emboscada que não saberei qual é. E que não terá rosto. E que nem mesmo tocará a minha pele. Que me matará sem me conhecer. E que não poderei lutar. E de nada valerá a força do meu corpo. Nem minha força moral. Nem toda a minha história. E assim nem serei um homem. Nem terei tempo de pensar no meu amor. E morrerei assim sem sentido. E ter-me-ão roubado a única coisa que sempre tive: meu rosto sairá nos jornais junto aos rostos dos demais, e minha morte será apenas dos outros.”
De Platão e Epicuro a pensadores como Arthur Schopenhauer, Sören Kierkegaard, Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger, a morte é um tema recorrente na Filosofia. Nas religiões, tem um lugar especialmente reservado: o dia de finados, que está associado ao luto eterno dos familiares e amigos pela perda do ente querido. Francisco Bosco é um filósofo do nosso cotidiano, seu pavor em relação aos acidentes de avião é muito comum, a ponto de muitos passageiros terem síndrome de pânico em pleno voo.
O maior acidente aéreo do Brasil ocorreu em 17 de julho de 2007. Chocou o Brasil e o mundo. Ao aterrissar no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, o Airbus A320-233 — usado no voo 3054, procedente de Porto Alegre — avançou além da pista, cruzou a Avenida Washington Luís e se chocou com um posto de gasolina e com um prédio da própria empresa responsável pela aeronave, a TAM (atual Latam). Morreram todos os 187 passageiros e tripulantes a bordo e outras 12 pessoas em solo, totalizando 199 óbitos.
Saiba Mais
Desastre sanitário
O desastre sanitário foi o coroamento de uma inepta gestão do general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde, à frente de uma equipe de militares despreparados. Sob comando do presidente Jair Bolsonaro, na base do “ele manda, eu obedeço”, trataram a pandemia como uma “gripezinha” e acreditavam que a “imunização de rebanho” era a estratégia correta de combate à pandemia. Bastaria a cloroquina para mitigar os efeitos letais do vírus.
O luto dos familiares e amigos das vítimas da pandemia equivale à 3.050 tragédias de Congonhas, o que faz de hoje um finados ainda mais triste. As vítimas de covid-19 foram sepultadas em caixões fechados, com os corpos lacrados, sem que amigos e familiares sequer pudessem ver, pela última vez, o rosto de seus entes queridos. Em muitos casos, as mortes poderiam ter sido evitadas com isolamento social, máscaras, álcool em gel e, sobretudo, vacinas. Mas o luto dessas famílias e círculos de amizade não morreram, ainda existe, porque o amor transcende a vida da pessoa amada. A pandemia está sendo controlada, mas o Brasil permanece enlutado.