Professor de história, criado em família evangélica, Israel Batista tornou-se deputado federal, eleito pelo PV do Distrito Federal, com a bandeira da educação. Mas percebeu no curso da trajetória política que o mandato deveria servir também a uma causa mais ampla: os direitos humanos. Nesta entrevista ao Correio, Professor Israel declara pela primeira vez, publicamente, que é gay. Falar abertamente sobre isso, como também fizeram o governador Eduardo Leite e o senador Fabiano Contarato, é estratégia importante para defender direitos conquistados pelos grupos LGBTQIA+ e outros num momento em que estão seriamente ameaçados.
“Há um momento político no Brasil em que a neutralidade pode parecer conivência. Não estamos nesse momento. Esse é um momento de combate, de dizer que nós não aceitamos que este país seja dominado pela barbárie”, revela.
Para ele, a orientação sexual não deveria ser uma questão, mas é. Portanto, falar é estar numa posição de alerta. “A gente não deveria ter que falar sobre isso, mas viver isso. Mas esse momento exige fala, posicionamento, postura. Exige que a gente tenha coragem de enfrentar esse estado de coisa que está se formando no Brasil”, diz.
Professor Israel está convencido de que hoje, “se fosse possível retirar direitos que foram conquistados nos últimos anos, o governo brasileiro o faria”. E que a estratégia melhor para lidar com isso é a educação, que sempre foi sua “trincheira”, e a articulação dos diversos grupos que defendem os direitos humanos.
“Não preciso ser mulher para defender os direitos das mulheres. Não preciso ser preto para defender uma pauta antirracista. Não preciso sofrer perseguição para exigir tolerância, respeito. E não precisaria nem ser gay para defender os direitos humanos, a comunidade LGBTQIA+, no país que mais mata gays na América.”
Segundo o parlamentar, a qualidade mais exigida dele, nesses três anos de mandato, foi a capacidade de articulação, de reunir forças, de organizar grupos. “Hoje, percebo que a minha maneira, muito particular, de fazer esse enfrentamento é muito efetiva. Trouxe sucesso em diversas pautas.”
Como exemplo, ele cita o impedimento de uma discussão infrutífera sobre escolas sem partido. “Isso não vai acontecer. Porque o que se pretende, com esse debate, é transformar a Comissão de Educação num circo, em um lugar onde não se debate alfabetização, crise de aprendizagem, evasão escolar.” Nessa entrevista, o professor fala também sobre o encontro que teve com o ex-presidente Lula, faz crítica ao governo Ibaneis e diz que a esquerda está desarticulada em Brasília.
Como está seu mandato?
Estamos muito focados na nossa pauta, lutando fortemente para enterrar a PEC 32 (reforma administrativa). É nossa ideia central. Na semana passada, o deputado Capitão Augusto (PL-SP), presidente da Frente de Segurança Pública, apareceu em um café da manhã e, na frente das câmeras, apertou a nossa mão. Usou até um termo tenso: “Olha, quero dizer que a bancada da bala fecha acordo com a frente Servir Brasil contra a PEC 32”. Agora vou ter de usar colete à prova de balas (risos).
O que significou esse gesto?
Para nós, era essencial. Desde o início do trabalho com a PEC 32, o objetivo era evitar uma ruptura entre as categorias do serviço público. E havia dois focos: o primeiro seria entre os servidores que poderiam ser classificados como carreiras típicas de Estado, e os servidores que não poderiam. Se houvesse essa ruptura, haveria um enfraquecimento. Teríamos uma elite do serviço público abandonando o servidor público mais numeroso. Conseguimos evitar isso. O segundo foco era entre os servidores da área de segurança pública e os demais servidores. Se a Segurança soltasse a mão dos servidores comuns, a chance de a PEC passar seria muito maior. Então nós atraímos parlamentares da Segurança para a Frente Servir Brasil, criamos interlocução com a bancada da bala. E conseguimos trazer associações — PF, Polícia Civil — para dentro do Conselho Curador da Servir Brasil. Funcionou.
O senhor esteve com Lula. Como foi a conversa?
A conversa foi sobre a PEC 32, sobre o cenário político-eleitoral. Foi muito produtiva, porque, pouco depois, ele fez declarações mais contundentes contra a PEC. A gente entende que isso é um antídoto para o presidente Bolsonaro não se engajar na reforma. Porque aí ele sabe que vai perder uma parte da sociedade para o principal rival.
Como Lula vê o cenário nacional?
O que mais me chamou a atenção, na fala dele em Brasília, é a necessidade de se fazer uma análise diagnóstica de tudo o que foi destruído do Estado nesses últimos anos. Ele acredita que tem havido uma destruição física do Estado brasileiro — programas que foram desmontados, políticas públicas descontinuadas, mas principalmente, credibilidade prejudicada. Concordei muito com a análise dele. Qualquer governo que vier terá o desafio de reconstruir muita coisa e de manter diálogo com outros partidos.
Algo sobre o DF?
A única coisa que ele adiantou é que está disposto a fazer composições nos estados, abrindo mão de ser cabeça de chapa.
Como o seu grupo político se situa em meio à polarização?
Há, no Brasil, uma deterioração das instituições, do regime democrático em si. Temos, pela primeira vez, um governo declaradamente antidemocrático. E que anunciou que, se tivesse força, teria rompido com as regras que temos hoje. O presidente Lula é a pessoa, hoje, mais capaz de derrotar esse projeto. Penso que, nesse momento, o primordial é defender o regime democrático. O Brasil era um país muito acostumado com a diversidade de opiniões, de ideias. A gente era capaz de discutir e, de repente, sair para jantar. Nos últimos anos, houve um recrudescimento da intolerância política.
Mas e o PT?
Entendo muitos problemas do projeto político que o PT adotou. Mas não havia naquele projeto nenhuma ameaça ao nosso sistema político e ao nosso regime democrático. Agora, vejo essa ameaça. Estou em um projeto antibolsonarista, aquele que for mais viável e que nos permita vencer essa etapa. Para que a gente possa retirar Bolsonaro da Presidência, tratar o câncer que é o bolsonarismo e retomar a normalidade democrática.
Como o senhor, um parlamentar gay, exerce o mandato em um momento tão difícil, em que a diversidade é tratada com desdém, com deboche, com agressividade, com ameaça?
Primeiro, é preciso ter uma paciência muito grande. Nervos de aço. Tem de se comportar de maneira muito institucional. Porque as piadas, o desdém, a ironia, a ameaça, tudo isso é muito constante, especialmente em certos grupos políticos. É claro que, em resposta a isso, tenho outros tantos parlamentares que, no primeiro sinal de agressão, de ataque a mim, se levantariam com muita força contra isso. Não aceitariam de jeito nenhum. Porque entendo que, diante dessa ameaça que estamos vivendo às nossas liberdades, ameaça à democracia, que não é só no Brasil, nós temos que formar grupos.
É preciso reunir forças.
Sim. E não adianta achar que nós vamos formar grupos apenas de pessoas negras, para defender as pautas da comunidade negra; mulheres para defender as mulheres; gays para defender os gays. Não. Nós temos que juntar todo mundo que tem apreço pela liberdade. Temos feito isso no Congresso. Converso com outros deputados e senadores, e a gente tem falado muito: não preciso sofrer perseguição para exigir tolerância, respeito. E não precisaria nem ser gay para defender os direitos humanos e a comunidade LGBTQIA+ no país que mais mata gays na América.
O senhor está alerta, então?
Tenho uma postura bastante combativa. Não sou de aceitar piadinha, ameaça, de jeito nenhum. Se eles têm grupos, nós também temos. Se eles se reúnem para definir suas pautas, suas prioridades, nós também nos reunimos. E até aqui nós só temos tido vitórias, especialmente na pauta de educação. A pauta de educação foi praticamente sequestrada pela pauta de costumes. Sempre há um apontamento, uma ameaça velada. Ela está sempre ali subjacente, como se fosse possível me expor, me constranger.
Já se sentiu constrangido?
Sim. É algo muito sutil. Mas se você estiver sozinho, não é tão sutil. Por isso, o Congresso exige a formação de grupos de força, de parlamentares que defendem as mesmas causas. A qualidade mais exigida de mim, no mandato, foi a capacidade de articulação. De reunir forças, de organizar grupos, para evitar isso. Hoje, percebo que a minha maneira, muito particular, de fazer esse enfrentamento é muito efetiva. Trouxe sucesso em diversas pautas — como, por exemplo, impedir uma discussão infrutífera sobre escolas sem partido. Isso não vai acontecer. Porque o que se pretende, com esse debate, é transformar a Comissão de Educação num circo, em um lugar onde não se debate alfabetização, crise de aprendizagem, evasão escolar.
As ameaças são frequentes, então?
Sim, as ameaças existem. E elas crescem toda vez que eu incomodo. Em alguns momentos, elas foram muito agudas. Primeiro quando a PEC 32 esquentou, que foi para a comissão que começou os debates. Mas ali se criou um ambiente de respeito muito bom. A gestão da comissão especial foi muito boa. Depois, foi home schooling. Quando o debate chegou ao ápice, parecia que todos os grupos de internet mais bolsonaristas começaram a fazer menção, piadinha... “Você quer ficar sozinho com ele, deputado?” Essas coisas... Isso é bem irritante. Finalmente, o momento mais difícil, nesse assunto, foi o do voto impresso. Porque era uma pauta que mobilizava uma parte da sociedade brasileira que considera normal desrespeitar alguém por conta da orientação sexual. No debate do voto impresso, em que eu defendi que a gente superasse essa pauta de forma muito enfática, eu senti mais.
A comunidade LGBT critica o governador Eduardo Leite, questionando-o por que a causa gay não é a principal bandeira dele. Isso pode acontecer com o senhor? O senhor teme uma reação como essa?
Em primeiro lugar, o gesto de Eduardo Leite foi importante. Ele é um governador. Eu tinha tido algumas reuniões antes (do anúncio sobre a orientação sexual dele), e já era algo que não era segredo no círculo dele. Depois disso, pensei um pouco sobre o que a gente precisa ter em mente agora. Há um momento político no Brasil em que a neutralidade pode parecer conivência. Esse é um momento de combate. Esse é um momento de ser combativo, de dizer que nós não aceitamos que este país seja dominado pela barbárie; que o Brasil vai voltar aos trilhos da civilização; que nós vamos ser um exemplo — para o mundo — de respeito à diversidade e à pluralidade racial, ética, religiosa e sexual. Acredito que esse é o momento para que a gente, cada um de seu jeito, se posicione com muita firmeza a favor dos direitos. Sabe por quê? Porque isso não é só no Brasil. É no mundo todo: o retrocesso, o ataque.
É um fenômeno global?
Falo um pouco como professor de história. Se você pegar as revistas iranianas de 1978, as mulheres frequentavam a universidade, podiam se comportar de maneira mais livre. Há mulheres com roupas ocidentais, porque queriam estar assim, e você tem mulheres vestindo o xador. Em 1979, você tem uma revolução, que depõe o xá e que muda tudo. Nós temos uma mania inadequada de considerar que os direitos conquistados não podem ser retirados de nós. Veja o que aconteceu na Polônia. Hoje, existem bairros que ostentam faixas na entrada dizendo: “Esse bairro é livre de homossexualidade”, como se fosse uma doença, algo que nos provocasse enjoo, asco. Veja o que aconteceu nas Filipinas, na Hungria. Na Rússia, há muito tempo vem acontecendo perseguição aos ativistas. Então esse é o momento que eu preciso ser solidário com a comunidade que sofre uma violência muito forte. Não posso ter no meu discurso nenhum tipo de frase, de palavra que minimize esse sofrimento, esse risco que hoje a comunidade LGBTQIA+ está sofrendo de perder seus direitos.
Mas para a comunidade LGBTQIA+, o discurso não basta. Isso seria insuficiente.
Tem que ter engajamento. E a minha trincheira sempre foi a educação. Nessa trincheira, eu sei que a gente consegue fazer as alterações mais estruturais. No Congresso, a gente tem projetos em andamento que falam sobre o controle de difusão do discurso de ódio nas redes sociais. Que fala também sobre o controle da propagação de métodos da cura gay. Isso é um absurdo, tem gente que fica traumatizada para o resto da vida. São pautas que precisam ter apoio no Congresso. Na educação, minha trajetória é longa. Entendo que um jovem, um adolescente, que está vivendo esse momento, precisa ter referências. Precisa se enxergar em uma posição de respeito. Precisa ver que pessoas como ele podem estar na política, na segurança pública, na saúde, na educação. Podem ser juízes. Para mim, a gente precisa estruturar a educação para que promova uma sociedade apta à diversidade.
Esse “lugar de voz”, para usar uma expressão do senador Contarato e de outros, já foi muitas vezes pensado por outros gays. Mas eles recuaram, porque a exposição é grande, do senhor e das pessoas próximas. Quando o senhor aborda a sua orientação sexual, também há essa preocupação?
Há uma imensa preocupação. Primeiro porque, para tratar desse assunto, a pessoa precisa estar confortável. Precisa ter passado por um processo de compreensão, de aceitação, de orgulho. Precisa, a meu ver — pelo menos para mim isso é muito importante — ter o colo da família. O acolhimento. Eu, que venho de uma família muito tradicional evangélica, fundadora de igrejas, pastores. Para mim, esse acolhimento é essencial. No momento que meu pai e minha mãe têm orgulho antes de mim, eu tenho orgulho de mim também. Pai e mãe terem orgulho da gente é maravilhoso. Irmãos...
Começa muito antes da política.
Muito antes. A política é depois. Primeiro você precisa ter esse processo na sua vida pessoal, na vida familiar. Primeiro é um processo interno, íntimo, pessoal, para vivenciar isso de maneira a não me sentir menor, inferiorizado, um pecador. Tudo isso é parte dessa vivência. Em segundo lugar, o processo de ser acolhido pelos que importam para você. Para mim, se meus pais me acolheram, se meus irmãos são meus maiores parceiros, se meus sobrinhos me adoram — modéstia à parte —, o restante vem se quiser. Aceita se quiser. Agora, o que eu exijo é respeito. E a lei brasileira exige respeito também.
Quando uma personalidade pública, como o senhor ou o governador Leite, resolve falar sobre sua orientação sexual, o senhor considera isso um alerta ou um avanço?
Hoje, considero um alerta. Porque essa não deveria ser, necessariamente, uma questão. A gente não deveria ter que falar sobre isso, mas viver isso. É no momento em que vocês me encontram no jantar, vocês me encontram com meu namorado. É isso que deveria acontecer. Mas esse momento exige fala, posicionamento, postura. Exige que a gente tenha coragem de enfrentar esse estado de coisa que está se formando no Brasil. Hoje nós temos certeza de que, se fosse possível retirar direitos que foram conquistados nos últimos anos, o governo brasileiro o faria. Se dependesse da vontade daqueles que hoje nos governam, pessoas pretas, mulheres, gays teriam menos direitos do que antes. É por isso que é um alerta.
Qual medida esse debate vai tomar na campanha eleitoral?
Vai ser um debate central, mas não só esse. O debate dos direitos humanos vai ser central; o debate da educação vai ser central; o debate sobre o concurso público vai ser central. Porque será uma luta pela manutenção do que foi conquistado, e para que haja possibilidade de avanço. Quando você fala que, agora, o prefeito vai poder terceirizar, e que o governador poderá contratar por meio de processo seletivo simplificado — o que é basicamente análise curricular —, as pessoas precisam entender, se elas forem gays, que elas estão ameaçadas. Porque o concurso público permite que a representatividade LGBTQAI+ no setor público seja parecida com a que é na sociedade. Porque é um processo impessoal. Isso é um debate que a gente vai ter que fazer.
Então, o respeito aos gays virá com outras demandas.
A causa gay não vai ser catapultada, sozinha, para o debate público. Mas vai ganhar força com outras causas. Acredito que a gente vá ter sucesso nesse combate se todos aqueles que sofrem com esse tipo de retrocesso se entenderem solidários na luta do outro. No momento em que o homem branco, heterossexual, perceber que ele precisa lutar a luta feminista, a luta dos gays, o combate ao racismo, nós vamos ter condições de sucesso. No momento em que a mulher perceber que a luta dos gays é dela também, que o homem negro perceber que a luta feminina é dele também, nós vamos ter mais sucesso. Agora, é claro que a gente precisa defender as nossas causas por nós mesmo. Senão ninguém vai se mobilizar.
No fundo, estamos falando das injustiças, dos preconceitos, das desigualdades, das minorias de uma forma geral.
E do ataque que os direitos humanos estão vivendo. Muitos lugares do mundo começam a discutir — abertamente — assuntos que estavam enterrados. E vão testando a nossa paciência, a nossa resistência. De repente, a sociedade brasileira está discutindo se deveríamos ou não fechar o Supremo Tribunal Federal, se deveríamos ter ou não uma intervenção militar. Só essa discussão começou a naturalizar certas coisas. Esse tipo de abordagem, no mundo todo, está ganhando repercussão. Vários países que a gente acreditava ter democracias estáveis estão perdendo essa democracia.
Quando ficou claro que havia chegado a hora de falar abertamente sobre sua orientação sexual?
Ficou claro, para mim, quando o presidente disse que a homossexualidade era uma questão de educação, e que bastava dar uns tapinhas, umas chineladas, e o menino virava homem. Aquilo magoou muito minha família. Modéstia à parte, eu recebi uma educação primorosa dos meus pais. Eles são muitos rigorosos. Exigem de nós as notas mais altas, exigem de nós quatro comportamento muito adequado. São pessoas muito corretas, muito religiosas. E eu vi que aquilo os feriu profundamente. E essa tristeza que chegou aos meus pais ficou ali sendo curtida por muito tempo. Até que eles vivenciassem também um processo para entender que o que esse maluco estava falando não tinha nada a ver com a realidade.
Então, foi um processo recente, de 2019 para cá.
De trazer mais claramente, sim. De vivenciar, não. A vivência com meus amigos já existia. Agora, de falar sobre isso, que me deixou claro de que havia agora uma necessidade de uma postura não apenas de vivenciar, mas de colocar a questão para o combate.
O senhor está namorando firme?
Estou namorando o Geovane (Resende). Um menino bom, enfermeiro, me enche de orgulho. Trabalha no Senado. É professor de cursinho também. É um namoro novo, tem menos de um ano. Está bom.
A orientação sexual passou a ser uma questão política.
Exatamente. E a vivência dentro da minha casa me mostrou essa necessidade. De repente, a minha mãe está se perguntando (eu acho até engraçado o jeito que ela fala): “O que Jesus faria?” Eu acho que está faltando muito para alguns religiosos se perguntarem “o que Jesus faria diante disso”? Enfim, isso se torna uma questão essencial, quando ele recrimina todos os pais, a família que tem um membro gay, dizendo que essa família não educou bem o seu filho. Quantas mães se sentem culpadas, e o presidente reforça algo que os estudiosos de psicologia dizem que não deve ser reforçado.
Essas declarações foram usadas até em outros contextos. Segundo o presidente, o Brasil “tem que deixar de ser um país de maricas” e enfrentar a pandemia. Há uma fixação no tema.
Há uma fixação. De repente, vem o ministro Milton Ribeiro (Educação) e diz: a gente sabe, né, pode olhar qualquer pesquisa aí, que a maioria das pessoas que são homossexuais sofreram abusos, tiveram famílias desajustadas. A gente é que vai ter de olhar pesquisas, senhor ministro? O senhor cite a pesquisa, por favor. É fácil jogar ao vento palavras que ferem. É muito fácil.
O brasileiro, em si, é preconceituoso. Ele tira muita onda, muita gracinha com a orientação sexual de um colega. Isso está melhorando?
Uma parte da sociedade brasileira continua assim. Essa parte está mais desavergonhada. Estava calada e se sentiu autorizada. É como se o valentão da escola tivesse chegado ao poder. E aí, todos os valentões reprimidos mostraram as garras, abriram as asas. Mas, ao mesmo tempo, eu percebo, por parte de pessoas que são heterossexuais, uma maior disposição em se levantar, em dizer que não aceita. A reação está sendo muito mais forte. O que eu vejo, lá no Congresso, toda vez que tem uma piadinha comigo, tem 10 apoios, 10 abraços. É assim que funciona. Do mesmo jeito que foram autorizados a falar barbaridades, autorizaram também uma reação da civilização. É um problema ainda no Brasil, mas percebo que as pessoas começam a ficar mais solidárias. E, desculpem o termo, começam também a ficar de saco cheio com esse comportamento.
Pessoas como Leila Diniz, ao usar biquíni na praia, e Cazuza, ao assumir a doença que enfrentava e sua orientação sexual, sofreram um impacto muito forte. Está preparado para esse tipo de pressão?
A gente precisa estar preparado. Esse tipo de pressão é da natureza desse momento que estamos vivendo. E essas grandes pressões, essas grandes lutas prenunciam um novo tempo. O Brasil aprendeu, da maneira mais dura possível, que não pode votar porque está com raiva, porque está com birra. A gente está aprendendo, a duras penas, com um governo que faz vergonha diante do mundo; que é um vexame em todos os aspectos, que nos permitiu ultrapassar 600 mil mortos pela pandemia; que não traz boas notícias; que não traz uma palavra de esperança, de alento. A minha luta é pequena diante da luta que a sociedade brasileira está vivendo. As pessoas estão comendo ossos. Estão morrendo por serem gays nas periferias sem serem vistas. Porque, de repente, se autorizou um discurso de que houvesse violência contra elas. Uma situação que já era grave piorou. A pressão faz parte da trajetória do homem público.
Bolsonaro representa uma parcela da sociedade brasileira, que é conservadora e tem um certo alinhamento com esse pensamento. O que o senhor tem a dizer a essa parcela da sociedade?
Eu não preciso de aceitação. Preciso de respeito. Não precisa me aceitar. Mas eu exijo ser respeitado. Simples assim. Eu tenho a legislação do meu lado, tenho a maior parte da sociedade brasileira contra esse tipo de postura. Se o governo foi eleito, eu credito isso a um momento político muito específico, porque a sociedade brasileira não é o que esse governo representa. É muito maior do que isso. Então, me respeitem.
O que o senhor responderá às pessoas que vão dizer que está sendo oportunista, pegando carona com Eduardo Leite e outros?
Acredito que a acusação de oportunismo pode acontecer. Não tenho muito o que falar sobre isso. Se a minha posição como deputado federal ajuda alguns, contribui para o combate a essa situação de barbárie, está cumprido o papel. Não posso pretender, aqui, silenciar a crítica. A crítica existe, é bem-vinda em uma sociedade democrática, vai gerar mais debate sobre esse assunto. Com certeza qualquer crítica vai produzir um diálogo na sociedade que pode ser muito positivo para o país.
Como pretende dialogar com o segmento evangélico? É um público frequentemente associado como conservador, além de ser sua origem.
Estou aberto ao diálogo. Venho de uma família onde o Evangelho não foi um óbice, um problema para minha aceitação. O Evangelho foi importante, porque ele vem estruturado no amor. O amor é algo muito forte, pelo menos para a vertente evangélica à qual minha família pertence. É o acolhimento, é o “venha como está”. É uma crença muito profunda da minha família que faz com que meu pai, minha mãe, meus irmãos me acolham sem jamais me constranger.
Mas não é somente uma questão familiar. Há um aspecto político.
As lideranças evangélicas têm todo direito de se posicionarem, de pensarem da forma que pensam. Eu estarei de braços abertos, pronto para dialogar, para acolher, para ouvir. Não é preciso ser evangélico para ser intolerante. Nem católico. Tem gente que é intolerante, independentemente da fé que professa. Eu conheço pessoas evangélicas que ficaram de braços abertos para mim, que me acolheram, que conversam comigo, que me amam. Esse é o lado que eu conheço. Não tenho muita relação com outro público evangélico. Está pacificado, para mim, que não vou sofrer, caso eu não tenha acolhimento.
Outros públicos têm sido atingidos, não apenas os gays. Veja o veto presidencial à pobreza menstrual, o corte brutal nos recursos para a ciência. Por que tais coisas estão acontecendo?
Houve um triunfo momentâneo da indiferença. A indiferença com a dor do outro ganhou espaço. Estamos falando de uma parte da sociedade que sempre foi muito egoísta. Se estivéssemos no final do século 19, essa parcela estaria, nesse momento, fazendo a luta antiabolicionista. Se estivéssemos nos Estados Unidos, nos anos 1960, esse mesmo grupo de pensamento lutaria contra o fim das leis de segregação racial. Se estivéssemos na África do Sul dos anos 1990, certamente lutariam para manter Mandela na cadeia. É um tipo de gente que, por ora, triunfou. E esse tipo de gente sempre existiu. Uma hora eles estão mais vocais, outra hora estão mais discretos.
O presidente Bolsonaro teve uma votação expressiva em Brasília. Qual o tamanho do bolsonarismo no DF?
O bolsonarismo ainda é forte no DF, mas está diminuindo. As pesquisas indicam um aumento da rejeição ao Bolsonaro. Minha luta contra o desmonte do serviço público com a PEC 32 tem efeito nisso, porque o serviço público tem um forte peso na composição demográfica de Brasília. Ao eleger os servidores públicos como adversários, o governo começou a perder apoio. Mas o apoio a Bolsonaro ainda é grande em outras regiões do Brasil. De uma maneira geral, é grande no Centro-Oeste e no DF.
O senhor continua no PV? Quais são seus planos?
Os próximos passos ainda estão sendo definidos. Tenho uma conversa bem adiantada com o Solidariedade.
Em relação à eleição local, vai se posicionar como?
Se nós não tivermos alguém lançando uma candidatura francamente de oposição ao governo Ibaneis, imediatamente, a tendência é de que ele ganhe a eleição. E tenho óbice ao governo Ibaneis. Primeiro porque ele frequentou a má companhia que é o presidente Bolsonaro. Toda vez que Ibaneis deu ouvidos ao presidente, o governador errou na gestão da pandemia. A questão do Iges foi muito grave. A gente precisa entender que foi um erro. O governo precisa reconhecer esse erro que aconteceu com o Hospital de Base. Agora as forças precisam se organizar.
Já há um nome?
Existem nomes. Esses nomes precisam se sentar, com espírito público e republicano, e se dispor a fazer um diálogo, a abrir mão de suas candidaturas e que haja uma unidade. A oposição está desarticulada. A tendência, por inércia, é o governo se reeleger sem que haja ninguém que faça frente a isso.
O senhor é candidato a deputado federal, ou depende?
Hoje sou candidato a deputado federal. Após três anos de mandato, confesso que sou uma espécie de desbravador das frentes parlamentares. Elas ganharam uma importância enorme porque têm uma capacidade de movimentação muito maior. Dialogam com todo mundo, com a sociedade.
Do ponto de vista pessoal, como foi a descoberta de sua orientação sexual? Em que idade, em qual situação?
Sou um pouco tardio (risos). Fui casado com a Paula. Desde os 18 anos estávamos juntos. Ela foi a primeira pessoa a me ouvir, a entender o que estava acontecendo. Hoje é minha grande amiga. Sou padrinho do filho mais velho dela. Ela mora em Paris. A partir dos 24, 25 anos, já com ela, é que ficou mais claro para mim. Não foi simples para ela, obviamente. E foi essencial. Aí depois disso veio a família. Mas em primeiro lugar veio eu mesmo, né? Não foi fácil, porque tinha muita noção de pecado. Uma religiosidade muito acentuada. Muito sofrimento, muito sentimento de culpa. A culpa é algo muito forte, o mais difícil. Mas foi importante me abrir com a pessoa em quem eu confiava absolutamente. Não foi um processo simples. Mas foi firme, contínuo, muito respeitoso, capaz de gerar uma relação tão bem estruturada, que sobrevive a isso. Muita amizade, muito respeito, uma relação entre as famílias. Meu pai, minha mãe, meus irmãos vivenciarem esse processo foi muito importante para mim também. Esse acolhimento da minha mãe, com essa tese “Como Jesus faria?”, foi essencial. E, finalmente, minha relação com Deus. Tenho um diálogo constante com Deus, uma fé inabalável. Houve aquele momento que você se considera em pecado, você tenta se anular. Mas a partir do momento que isso ficou mais claro para mim, a partir dos 30, foi mais fácil.
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