Em depoimento que durou mais de sete horas, a advogada Bruna Morato, representante de 12 ex-médicos da Prevent Senior, contradisse ontem, na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da covid-19, o diretor-executivo da operadora de saúde, Pedro Batista Júnior. Ela relatou detalhes sobre supostas irregularidades e exigências da empresa a funcionários no enfrentamento da covid-19 como a existência de um pacto entre a Prevent Senior e os representantes do chamado gabinete paralelo por meio do Ministério da Economia. O envolvimento da operadora de saúde reforça a teoria da comissão de que o governo federal tentou executar a estratégia de promover o kit covid para se chegar, assim, à “imunidade de rebanho”. A Prevent Senior nega as acusações.
Segundo a advogada, o acordo entre a Prevent Senior e os representantes do grupo que aconselhava o presidente — o toxicologista Antony Wong; a imunologista Nise Yamagushi e o virologista Paolo Zanotto — consistia em um plano para que os brasileiros pudessem sair às ruas sem medo. Ela relatou que as tratativas foram iniciadas no ano passado, quando o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ainda atuava na pasta. À época, Pedro Batista Júnior, diretor da Prevent que depôs à CPI na semana passada, estava preocupado com as críticas que o ex-ministro fazia à empresa. De acordo com Bruna, o grupo passou, então, a negociar com o gabinete paralelo. O acordo envolvia tentativas para barrar investigações do Ministério da Saúde e de órgãos ligados à pasta com relação aos estudos do kit covid.
A colaboração da Prevent Senior com o governo dava-se, principalmente, explicou a advogada, na produção de informações que convergissem com a teoria defendida pelo gabinete. “Ou seja, é possível que você utilize um determinado tratamento como proteção. A população, em geral, quando escuta a palavra 'prevenção', se encoraja a sair e, fazendo isso, se expõe ao vírus. Ainda que doentes, as pessoas teriam a esperança de que não iriam falecer daquilo”, pontuou a advogada.
Especialistas que assessoravam o presidente falariam sobre o coronavírus com menos contundência, e a Prevent colaboraria com as informações amplamente divulgadas por eles sobre substâncias do kit, como hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina — todas sem eficácia contra a doença.
Bruna Morato relatou ainda adoção de uma estratégia de “alinhamento ideológico”, que tinha o objetivo de atender à pasta de Paulo Guedes. “O que me explicaram foi o seguinte: existe um interesse do Ministério da Economia para que o país não pare. Se nós entrarmos nesse sistema de lock-down, nós teremos um abalo econômico muito grande”, disse a advogada, antes de afirmar que em nenhum momento ouviu o nome do ministro nas tratativas.
Segundo Bruna Morato, após a Organização Mundial da Saúde (OMS) desaconselhar o uso do tratamento precoce, médicos da operadora passaram a ficar receosos em receitar as drogas, mas não tinham autonomia para negar a orientação. A advogada disse que havia uma exigência da diretoria-executiva da Prevent Senior para que os medicamentos fossem prescritos. Os pacientes recebiam a medicação, inclusive, na hora de fechar o plano de saúde com a empresa.
“Os médicos eram, sim, orientados à prescrição do kit, que vinha em um pacote lacrado. Não existia autonomia nem em relação à retirada de itens nesse kit. Quando o médico queria tirar algum item, mesmo que riscasse (na receita), o paciente recebia ele completo. Ele (o paciente) tinha a informação de que precisava tomar aqueles medicamentos, e o médico tinha que riscar, porque a receita vinha pronta. Inclusive, vinha com um manual de instruções”.
Em resposta ao relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), a depoente afirmou que os pacientes — a maioria idosos — recebiam o tratamento sem a noção dos riscos e não sabiam que estavam sendo feitos de “cobaias”. Segundo informações da CPI, o cliente da Prevent recebia o kit covid em casa após teleatendimento ou após fechar o plano de saúde da empresa.
Reações
Integrantes da bancada do governo tentaram desqualificar o depoimento. O senador Marcos Rogério (DEM-RO) questionou se a depoente estava como advogada ou depoente e insistiu para que ela revelasse o nome dos médicos que defendia. Após a profissional afirmar que é testemunha, mas que, como advogada, estava resguardada a não revelar o nome de seus clientes, Rogério tentou desclassificar o testemunho, que chamou de “testemunha por procuração”.
O senador foi rebatido por colegas, que explicaram a existência de testemunhas “indiretas”. Após o parlamentar insistir, Bruna declarou que Marcos Rogério estava tentando “desqualificar a denúncia”. “Meu depoimento está pautado em fatos e documentos comprobatórios. O que estou dizendo tem fundamento e tem prova. Não fosse assim, eu não estaria aqui sentada”, declarou.
O senador Eduardo Girão (Podemos-CE) afirmou ao Correio que, apesar de importante, o depoimento de Bruna tinha questões “trabalhistas”. Ele ressaltou que a CPI deveria priorizar outros depoentes. “Nós tínhamos outras prioridades, como o secretário de Saúde de São Paulo (Jean Gorinchteyn), que pode esclarecer tanto situações da Prevent Senior, indícios de subnotificação e de supernotificação (de casos). O que a gente vê é um depoimento eivado de uma querela trabalhista, de algo que tem uma animosidade pessoal da advogada com relação à empresa, e isso turva um pouco com relação ao caso.”
Outro ponto abordado pelos governistas, como Marcos Rogério e Marcos do Val (Podemos-ES), foi o fato de que “apenas” 12 médicos em um universo de 5 mil contratados pela Prevent terem feito a denúncia. O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), respondeu que também não houve relatos de nenhum dos 5 mil médicos da Prevent desmentindo os relatos feitos à imprensa e reforçados pelo depoimento de Bruna Morato.