Uma das maiores autoridades em estudos sobre a Ditadura Militar e a República brasileira, a historiadora, pesquisadora e escritora Heloísa Starling falou ao Correio sobre o momento atual do país. Vencedora, ao lado de Lilia Schwarcz, do 61º Prêmio Jabuti, na categoria Livro do Ano, com 'Brasil: uma biografia', ela chama a atenção para um fato inédito na história nacional: a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), como instituição, na defesa da democracia. Heloísa lembra que, diferentemente do que acontece hoje, em 31 de março de 1964, o então presidente da Corte, Ribeiro da Costa, apoiou o golpe de Estado perpetrado pelas Forças Armadas.
"O Supremo de hoje ergueu a barreira mais poderosa a favor da democracia e contra a tirania", diz a professora da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ela se refere à reação do STF depois de ser ameaçado pelo presidente Jair Bolsonaro durante as manifestações do 7 de Setembro.
Para a docente, a dura nota lida pelo presidente da Corte, Luiz Fux, e declarações dos ministros Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia demonstraram a união do órgão máximo do Poder Judiciário. “Num dos momentos mais tensos da nossa história, o Supremo fez isso pela primeira vez e, naquele momento, ele era símbolo de defesa da democracia”, ressalta. A seguir, os principais trechos da entrevista.
O que representou, na história do Supremo Tribunal Federal, a resposta dada pelo presidente da Corte, Luiz Fux, às ameaças feitas pelo presidente Jair Bolsonaro no 7 de Setembro?
Eu acho que nós temos que pensar duas coisas. Não foi só a resposta do ministro Fux. Na verdade você tem uma conexão. Três falas me chamaram a atenção, que é a do ministro Fux, a do ministro (Luís Roberto) Barroso (presidente do Tribunal Superior Eleitoral) e uma fala muito interessante da ministra Cármen Lúcia. O Supremo fez duas coisas nesse período que são novas na história do Brasil. São inéditas. Uma, a maneira como agiu em defesa da democracia. O Supremo, de fato, ergueu uma grade para defender a democracia. Isso é inédito na história do Brasil, o Supremo como instituição. Então, essa é a primeira dimensão inédita.
Qual é a segunda ação inédita do Supremo?
A segunda, o Supremo se tornou, nesse momento, um símbolo da defesa da democracia no Brasil. E uma coisa: eu acho que muita gente no Brasil não dormiu da noite do dia 6 para 7 de setembro, nem do dia 7 para o dia 8. Eu ficava vendo os comentários dos meus alunos, na madrugada, quando aqueles caminhões entraram na Esplanada: “O Supremo não pode cair”. Então, veja, a garotada preocupada dizendo que o Supremo não podia cair. E, no dia 8, quando eu li a fala da ministra Cármen Lúcia, eu pensei: “Ela me explicou o que aconteceu”. Ela fez a reflexão histórica do que tinha acontecido e do papel do Supremo. Ela falou: “Que se registre na história: essa Corte não se dobra, não se verga e não se fecha”. Então, é o Supremo dizendo isso. Eu tive a dimensão de que o Supremo funcionou de duas maneiras. Ele foi, de fato, a instituição que ergueu a grade em defesa da democracia, num dos momentos mais tensos da nossa história. Ele fez isso pela primeira vez e, naquele momento, ele era símbolo de defesa da democracia, inclusive para aquela garotada que dizia que o Supremo não pode cair. Não era o Congresso que não podia cair.
Como esses episódios do 7 de Setembro devem ser lembrados nos livros de História?
Olha, eu não sei, porque ele ainda não terminou. A história só pode ser escrita quando ela acaba. O Evaldo Cabral de Melo fala isso. Eu acho que nós temos que pensar em alguns eixos. Por exemplo: o que significou toda a ação que foi feita de mobilização contra a democracia? Como é que o 7 de Setembro, a data da independência do Brasil, foi literalmente sequestrada por uma coisa que também é nova, que é um presidente reacionário? Ele não é um presidente conservador, nem um presidente retrógrado. O reacionarismo, na sua versão moderna, é uma corrente política que reage contra os valores civilizatórios. Ele reage contra as transformações do mundo e ele reage com muita potência. Por isso, o reacionário é diferente do conservador, porque o conservador conserva. O reacionário precisa destruir.
A senhora quer dizer que a política do atual governo é de destruição?
Então, esse traço reacionário explica, primeiro, uma política de destruição, que o Bolsonaro avisou que ia fazer, justiça seja feita. Ninguém foi enganado. Lá em 19 de janeiro de 2019, ele estava em um jantar em Washington, tinha acabado de tomar posse e disse assim: “Eu vim para desconstruir”. E é isso mesmo o que ele faz, porque o projeto é reacionário, e reacionária é a reação contra os valores civilizatórios, contra os valores progressistas, digamos assim. O conservador é democrata, o reacionário, não. E ele não pode ser democrata porque ele tem que destruir. Nós tivemos uma coisa muito nova. O 7 de Setembro foi sequestrado para uma ação reacionária. Não foi como na Ditadura Militar. Eu, Ditadura Militar, “me apropriei do 7 de Setembro para me associar a ele e vender um projeto Brasil, que era o Brasil Grande”. Isso foi o que o (ex-presidente Emílio Garrastazu) Médici fez, no sesquicentenário (da Independência). O que é que foi feito agora? Foi um sequestro. Claro que o Médici sequestrou, mas aquela ação era voltada para determinado lugar. Esta foi voltada para outro. Ou seja, “eu sequestrei para destruir”. Na outra ponta, você tem uma instituição que foi capaz de erguer barreiras decisivas para defender a democracia, que é o Supremo. Então a história deve ser contada, ancorada, na minha opinião, nessas duas faixas, e o Supremo como instituição.
Que outro ineditismo a senhora identificou?
Tão importante quanto o que o Supremo falou foi a maneira como ele falou. Ninguém foi para a internet, ninguém soltou Twitter, ninguém deu entrevista a jornal. A barreira da democracia ficou visível com essas três grandes falas. É claro que o Supremo ergueu a barreira antes, mas ele a tornou visível porque as três falas foram absolutamente de dentro da instituição. Isso tem um sentido no momento em que a linguagem, no Brasil, está sendo degradada sistematicamente. A linguagem da política e a linguagem do poder. Eles estão erguendo barreiras de diferentes maneiras. Tão importante quanto o que eles disseram, é como eles estão dizendo.
Quais as diferenças entre o Supremo de hoje e o Supremo da época da Ditadura Militar?
Todas. O Supremo de hoje ergueu a barreira mais poderosa a favor da democracia e contra a tirania. Quanto ao Supremo da Ditadura, você tem, ao longo da história, desde sua criação, no início da República, ações de pessoas do Supremo de uma valentia e de uma defesa da liberdade extraordinárias. Mas o Supremo nunca tinha agido como instituição em defesa da democracia. No golpe, o presidente do Supremo apoia o golpe. Além disso, você não tem, em nenhum momento, nos vinte anos de Ditadura Militar, uma reação do Supremo como instituição em defesa da democracia. Você tem de pessoas. Tem um jornalista de Brasília, que é o Felipe Recondo, que escreveu o livro Tanques e togas. Ele conta muito bem a história de como foi a ação do Supremo. Por exemplo, o momento em que o Congresso garante o golpe, que é o momento em que ele declara vago o cargo de Presidência da República e derruba o João Goulart. E o que o ministro-presidente do Supremo faz, o Ribeiro da Costa? Ele assiste a essa sessão, e ele vai, de madrugada, ao Palácio do Planalto, e legitima o golpe dando posse ao Raniery Mazzilli, que é o presidente da Câmara. A partir daí, o Supremo vai conviver com a Ditadura Militar.
Como foi essa convivência?
Você teve ministros dizendo: “Olha, vamos defender esse cara aqui porque a prisão dele foi arbitrária, mas não vamos confrontar os militares”. A instituição Supremo, durante a Ditadura, nunca cobrou a responsabilidade do governo, da ditadura dos militares. Ela não determinou a garantia da Constituição. Nem a Constituição dos militares ela garantiu. Eles não confrontaram, embora você tenha ministros que tenham tido atitudes muito dignas durante a Ditadura. Então, por isso que eu acho que quando a ministra Cármen Lúcia diz “que se registre na história”, eles sabem perfeitamente o que estão fazendo.
O que a senhora acha de o presidente da República, mesmo depois do regime militar, ainda ter a competência de indicar ministros do STF?
Quando o Supremo é criado, ele é criado nos moldes da Suprema Corte norte-americana. Quem indica é o presidente. O problema, talvez, não é o presidente indicar. O problema é o Senado considerar isso proó-forma. A lógica republicana faz sentido. É claro que os ministros do Supremo não podem ser eleitos, porque eles não podem ter programa, eles não são um poder eleito, porque eles estão praticando a justiça. A ideia é que você tenha um equilíbrio. O presidente pode errar (na indicação), mas o pressuposto é que o Senado não errará. Então, na verdade, quem indica não é o presidente, só. É o Poder Executivo e o Poder Legislativo. E a gente nunca cobra do Senado e diz “Vem cá, que tal darem bomba no candidato, se ele é uma ameaça à democracia? Quais são as fichas democráticas desse sujeito?”.
Como a senhora avalia a indicação do ex-ministro da Justiça André Mendonça ao STF?
No momento, você tem um candidato que teve um comportamento à frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública no qual ele prestou um enorme desserviço à democracia. Ele não tem nada de democrata. O Guimarães Rosa disse uma coisa que é a seguinte: “O coração do homem é escuro”. Você não sabe o que está lá dentro. Então, você vai ter que olhar a ação se quiser avaliar. Agora, as ações que ele praticou no ministério foram contrárias à defesa da democracia. Ele não tem vocação democrática. E ele foi indicado por ser evangélico, isso não é padrão. Ele está se dispondo, pelo que diz o presidente da República, a rezar antes da sessão do Supremo. Isso é um problema. E o Senado, vai fazer o quê?
Um ano após o golpe de 1964, o governo aumentou a composição do STF de 11 para 16 ministros. Na campanha de 2018, Bolsonaro disse que pretendia ampliar para 21 o número de magistrados da Corte. O que está por trás dessa semelhança?
O controle da Corte. Não foram só os militares que fizeram isso. Vargas também mexeu na composição do Supremo, na ditadura do Estado Novo. Então, isso aí é uma forma de ter maioria. Os militares agiram contra o Supremo de duas maneiras. Com o AI-5, eles fizeram uma limpa no Supremo. Aposentaram compulsoriamente aqueles ministros que eles consideravam que eram uma ameaça. Foram cinco. Dois deles viram que iam ser aposentados, se anteciparam, e três foram aposentados pelo AI-5. Então, com isso, eu ganhei maioria. É a mesma estratégia. Como é que eu faço para ter uma maioria confortável para que eu domestique o Supremo? Eu não preciso fechar o Supremo. Basta eu domesticá-lo. Isso é uma estratégia profundamente autoritária. Então, eu posso pensar que uma ação reacionária passa por destruir o Supremo. Eu destruo o Supremo de várias maneiras. Eu destruo o Supremo se eu invadir, se os caminhoneiros invadirem. Eu destruo o Supremo desmoralizando o Supremo, domesticando o Supremo.
A senhora considera que, após o aparente recuo de Bolsonaro, o STF mudará a atuação nos processos que envolvem o governo, o próprio presidente, familiares e aliados?
A sinalização não tem sido essa. Quer dizer, o ministro Alexandre (de Moraes) deu uma indicação de que, como ele falou, “eu não tenho nada a favor nem contra as pessoas, eu sou o juiz”. E a impressão que me deu é de que não teve nenhum recuo, ao contrário. A questão do armamento foi muito boa (na quinta-feira, o magistrado revogou portaria de Bolsonaro que impedia o rastreio de armas de fogo). A ministra Rosa Weber também (na terça-feira da semana passada, a magistrada suspendeu a validade da medida provisória de Bolsonaro que dificultava a remoção de fake news e discursos de ódio pelas redes sociais). O Senado devolveu, e a ministra suspendeu no mesmo dia.
Além do STF, o que a sociedade deve fazer para proteger a democracia? Pedido de impeachment? Protestos?
A sociedade brasileira precisa entender que nenhuma instituição democrática se defende sozinha. Passou da hora de a gente sair dos abaixo-assinados e dos manifestos, e passar a defender a democracia. É lógico que a sociedade brasileira tem que criar, tem que se pronunciar para garantir o impeachment. Tem milhares de formas de fazer isso. Pressionando os deputados, por exemplo. Tem uma oposição fora do Congresso, tem as entidades, os empresários. Tudo o que se manifestou no impeachment do (ex-presidente Fernando) Collor. As formas como a sociedade pode fazer isso, de deixar claro ao Congresso Nacional o que é que vai acontecer se ele não praticar a Constituição, são enormes, desde manifestações até ações concretas. De dizer ao presidente da Câmara que não cabe ao presidente da Câmara esse poder. Coloca para discutir. A sociedade não fez nenhuma forma de ação suficientemente expressiva para dizer que ela quer o impeachment. É muito importante a sociedade ir para a rua. As formas de ação da sociedade são muitas.
A senhora poderia citar outras formas de a sociedade proteger a democracia?
Desde a madrugada do dia 6 (de setembro), o Brasil inteiro, se não sabia, já sabe como morrem as democracias. Vamos começar a discutir como renascem as democracias? Está na hora de a sociedade brasileira começar a discutir. E quando eu digo sociedade, tem todo mundo. Empresários, políticos, juristas, imprensa. Como renascem as democracias? (referência ao título de um livro de Alain Rouquieu, publicado no Brasil na década de 1980). O que nós devemos fazer para resolver esse problema? Vamos inverter a lógica, porque como morrem as democracias nós já sabemos.
Pela primeira vez desde a redemocratização, um presidente da República ameaça a realização das eleições. A senhora acha que 2022 será um ano ainda mais turbulento para a democracia?
Depende de como vamos pôr em prática essa minha ideia, essa nossa ideia, de como renascem as democracias. Precisamos começar a nos preocupar em responder a essa pergunta.