Na abertura da 76ª Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente Jair Bolsonaro conseguiu unir dois fatores aparentemente inconciliáveis: acenar à sua base eleitoral conservadora e se comprometer com avanços na seara do meio ambiente.
Ao mesmo tempo em que lembrou que seu governo é defensor da família, dos princípios cristãos e de que a economia tinha de permanecer aberta apesar da pandemia de covid-19, mostrou que antecipou de 2060 para 2050 a meta de alcançar a neutralidade climática e que buscará na COP-26 — que se realizará em Glasgow, na Escócia, entre 1º e 12 de novembro — consenso com os demais participantes sobre a adoção de regras do mercado de crédito de carbono global.
“Esperamos que os países industrializados cumpram, efetivamente, seus compromissos com o financiamento de clima em volumes relevantes”, cobrou Bolsonaro, no púlpito da ONU.
O presidente ainda lembrou que o Brasil tem uma legislação ambiental “completa” e que o Código Florestal “deve servir de exemplo para outros países”.
“O Brasil é um país com dimensões continentais, com grandes desafios ambientais. São 8,5 milhões de km², dos quais 66% são vegetação nativa, a mesma desde o seu descobrimento, em 1500. Somente no bioma amazônico, 84% da floresta está intacta, abrigando a maior biodiversidade do planeta. Lembro que a região amazônica equivale à área de toda a Europa Ocidental”, observou, acrescentando que “os recursos humanos e financeiros, destinados ao fortalecimento dos órgãos ambientais, foram dobrados, com vistas a zerar o desmatamento ilegal”.
“O futuro do emprego verde está no Brasil: energia renovável, agricultura sustentável, indústria de baixa emissão, saneamento básico, tratamento de resíduos e turismo”, exaltou.
O contraponto ao compromisso com a preservação ambiental veio quando tratou das questões relacionadas à pandemia. Apesar de ressaltar que “até o momento, o governo federal distribuiu mais de 260 milhões de doses de vacinas e mais de 140 milhões de brasileiros já receberam, pelo menos, a primeira dose”, criticou as medidas de distanciamento social adotadas no mundo inteiro — preconizadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), um dos braços das Nações Unidas — e defendeu o chamado “kit covid”, composto por medicamentos sem qualquer eficácia no combate à covid-19, em qualquer estágio da doença.
Bolsonaro ainda criticou a adoção do passaporte da imunização, apesar dos constrangimentos pelos quais passou por ser um dos poucos chefes de Estado que chegou a Nova York sem ter se vacinado — o que o impediu de acessar os ambientes internos dos restaurantes —, postura que o levou a ser criticado pelo prefeito da cidade, Bill de Blasio. Para se justificar, ainda elegeu a imprensa como adversária quando disse que apresentaria um “Brasil diferente daquilo publicado em jornais ou visto em televisões”.
Reações
Diplomatas, embaixadores e ex-chanceleres criticaram a postura de Bolsonaro. A avaliação foi de que o presidente fez um discurso para os seus apoiadores e pouco contribuiu para melhorar a política externa brasileira. “O discurso foi lamentável sob todos os aspectos. O Brasil já era um pária internacional, e esse discurso conseguiu diminuir ainda mais a nossa importância”, criticou o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim.
Embaixador do Brasil em Washington entre 2004 e 2007, Roberto Abdenur acrescentou que o discurso de Bolsonaro foi “muito fraco e desprovido de maior conteúdo”. Segundo ele, as falas dos presidentes brasileiros em Assembleias Gerais da ONU sempre foram elogiadas pelo caráter mais analítico sobre os problemas políticos, econômicos, sociais e ambientais em curso no mundo. “Não foi um discurso de política externa, mas, sim, um discurso no qual ele se valeu para redobrar a aposta em suas posturas negacionistas e negativas”, explicou.
Antecessor de Abdenur na embaixada brasileira nos EUA, Rubens Barbosa também acredita que Bolsonaro não deveria ter falado para a sua bolha e que ele escolheu o palco errado. “O fórum da ONU é para discutir a situação global, e o que o Bolsonaro disse não foi o que eles queriam ouvir. Não altera em nada o desgaste que o Brasil está enfrentando, e deve permanecer a percepção crítica que o país tem no exterior”, alertou.
Já o diplomata Paulo Roberto de Almeida, ex-diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IPRI) definiu assim o discurso do presidente. “Não vi nenhum argumento realmente tratando da agenda internacional. Um discurso de vereador”.
Avaliações
“Falou o que já vem falando há muito tempo internamente no país. Falou de temas específicos, mas fez a visão com o detalhamento do Brasil, os aspectos de infraestrutura, meio-ambiente, combate à pandemia e outras questões”
Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados
“(Bolsonaro) destacou pontos importantes do Brasil. Obviamente que há posições do presidente das quais eu discordo, mas são convicções dele. Portanto, não há grandes surpresas em relação à fala”
Rodrigo Pacheco, presidente do Senado
“Após ver o que ocorreu em Manaus, ver o que a Prevent Senior fez com pacientes, o presidente foi ao órgão mais importante do mundo defender tratamento precoce. O presidente ouviu pitaqueiros, gabinete paralelo, e foi defender o que nenhum líder defende”
Senador Omar Aziz, presidente da CPI da Covid
“Bolsonaro fez um dos seus melhores discursos. Citou o combate à corrupção, sucesso na agricultura, na infraestrutura, empresas estatais que pararam de enviar recursos para o exterior. O povo era o principal financiador desses esquemas de fortalecimento do comunismo em outros países”
Deputado Luiz Lima (PSL-RJ)
“(Bolsonaro) trouxe a verdade para todo o mundo, sem o filtro da mídia. Em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, o presidente mostrou como a luta pela liberdade é o foco de seu governo”.
Deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP)
“Quando o Bolsonaro opta por falar para a sua base de apoiadores e não para a comunidade internacional, ele perde uma oportunidade imensa. A ONU não é um palco para ele falar para sua base de apoiadores. Os investidores internacionais estão observando”
Juliano Cortinhas, professor da Universidade de Brasília
“Lamentável sob todos os aspectos. O Brasil já era um pária internacional, e esse discurso conseguiu diminuir ainda mais a nossa importância”
Celso Amorim, ex-chanceler
“Não foi um discurso de política externa, mas sim, um discurso no qual ele se valeu para redobrar a aposta em suas posturas negacionistas e negativas”
Roberto Abdenur, ex-embaixador do Brasil em Washington
“O fórum da ONU é para discutir a situação global, e o que o Bolsonaro disse não foi o que eles queriam ouvir. Não altera em nada o desgaste que o Brasil está enfrentando e deve permanecer a percepção crítica que o país tem no exterior”
Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington
Participaram da cobertura: Ingrid Soares, CristianeNoberto, Augusto Fernandes, Jorge Vasconcellos, Raphael Felice, Israel Medeiroseos estagiários Gabriela Chabalgoity e Bernardo Lima, sob a supervisão de Fabio Grecchi
Saiba Mais
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.
Entre elogios, críticas e surpresa zero
O discurso do presidente Jair Bolsonaro causou as reações esperadas no meio político. Se, para uma parcela expressiva do Congresso o presidente apenas repetiu o que vem dizendo ao longo dos últimos meses, deixando de aproveitar um palco importante para reforçar a política externa, no campo oposto, o dos seus apoiadores, foi motivo de elogios porque deixou claro que seu governo não abre mão dos princípios que defende desde o primeiro dia.
“Falou o que já vem falando há muito tempo internamente no país. Falou de temas específicos, mas fez a visão com o detalhamento do Brasil, os aspectos de infraestrutura, meio ambiente, combate à pandemia e outras questões, mas de uma maneira que só ele pode avaliar”, analisou o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
Para o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), Bolsonaro “destacou pontos importantes do Brasil. Obviamente que há posições do presidente das quais eu discordo, mas são convicções dele. Portanto, não há grandes surpresas em relação à fala”.
Já o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), repudiou a defesa de Bolsonaro ao tratamento precoce. “Após ver o que ocorreu em Manaus, ver o que a Prevent Senior fez com pacientes, o presidente foi ao órgão mais importante do mundo defender tratamento precoce. O presidente ouviu pitaqueiros, gabinete paralelo, e foi defender o que nenhum líder defende”, lamentou.
A base governista, por sua vez, viu no discurso a autenticidade de um governo comprometido com, a cidadania. Segundo o deputado Coronel Tadeu (PSL-SP), “o presidente mostrou a verdade. O Brasil é o quarto país do mundo que mais vacina. Nós estamos cuidando, ao mesmo tempo, da economia e da saúde dos brasileiros, a despeito de governadores que querem remar contra”.
O deputado Luiz Lima (PSL-RJ) acrescentou que “o presidente Bolsonaro fez um dos seus melhores discursos”. “Citou o combate à corrupção, sucesso na agricultura, na infraestrutura, empresas estatais que pararam de enviar recursos para o exterior. O povo era o principal financiador desses esquemas de fortalecimento do comunismo em outros países”, lembrou.
Filho do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) — que está na comitiva, em Nova York — reforçou que Bolsonaro “trouxe a verdade para todo o mundo, sem o filtro da mídia. Em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, o presidente mostrou como a luta pela liberdade é o foco de seu governo”.
Pós-Trumpismo
Para estudiosos, o discurso do presidente evidencia que ele tenta, agora, ocupar um espaço que outrora foi do ex-presidente americano Donald Trump. “Bolsonaro reivindicou o manto pós-Trump como sendo o principal propagador de desinformação em face de uma pandemia mortal. Este discurso foi uma forma de sinalizar aos populistas de extrema direita em todo o mundo que ele é o líder de seu movimento”, afirmou Lincoln Mitchell, cientista político e professor da Universidade Columbia, em Nova York.
Já Márcio Coimbra, cientista político e coordenador do MBA em Relações Institucionais e Governamentais do Mackenzie em Brasília, ressaltou que o discurso de Bolsonaro foi como se estivesse em seu cercadinho no Palácio da Alvorada. “Ele se expôs ao ridículo quando ele fala de tratamento preventivo para a covid-19 — e a gente sabe que o caso da Prevent Senior está sendo algo muito debatido, porque é um crime”, ressaltou.
“Algumas falas foram muito mais para a torcida do bolsonarismo do que propriamente para poder recuperar o que é muito difícil de ser recuperado, que é a imagem internacional do Brasil nesses dois anos e meio de governo Bolsonaro”, disse Felipe Loureiro, professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP).
Embora Bolsonaro tenha tentado falar diretamente aos investidores para se aproximar deles, seu discurso terá efeito contrário. É o que acredita o professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Juliano Cortinhas. “Quando o Bolsonaro opta por falar para a sua base de apoiadores e não para a comunidade internacional, ele perde uma oportunidade imensa. A ONU não é um palco para ele falar para sua base de apoiadores. Os investidores internacionais estão observando os discursos, os outros líderes mundiais com os quais ele pode fechar acordos de cooperação estão observando essas falas”, alertou.
No Twitter, guerra feroz de hashtags
O discurso de Jair Bolsonaro, ontem, nas Nações Unidas, tomou conta das redes sociais. Dados coletados pelo Correio até às 18h, ontem, no Twitter, mostrou uma batalha de tuítes contra e a favor do governo. Da parte dos adversários do presidente, a hashtag #BolsonaroVergonhadoBrasil teve mais de 69 mil tuítes. Em resposta, os apoiadores tiveram mais de 42 mil registros na hashtag #BolsonaroHeroiNacional.
Para o analista de redes sociais Pedro Barciela, a reação já era esperada por ser direcionada exatamente para o debate polarizado nas redes. “Bolsonaro levanta pautas que ele sabe que geram revolta na oposição e alimentam sua militância. Com isso, ele sabe que, ainda que o volume de críticas seja maior — e foi —, ele terá um controle mínimo sobre a pauta, ainda que momentâneo, e contará com a defesa de seu núcleo duro, que hoje gira em torno de 20%”, explicou.
Na análise feita no Twitter, Pedro explicou que Bolsonaro foi para os Estados Unidos tentando “sair da defensiva”. Segundo o especialista, agendas como essa restringem o número de agrupamentos para além da polarização dos que se engajam com o tema.
O movimento de Bolsonaro ao “sair da defensiva” é uma sequência que se inicia antes mesmo de ele viajar para fora do Brasil. O analista explicou que a agenda nos Estados Unidos e o discurso na ONU foram utilizados como uma forma de tentar, mais uma vez, pautar o debate nas redes. “E conseguiram. Talvez as denúncias envolvendo os parentes de Bolsonaro, os avanços da CPI da Covid e as novas denúncias da Prevent Senior impediriam que o presidente redirecionasse o debate”, disse.
Sobre os apoiadores do Bolsonaro, Pedro afirma que os perfis são consolidados com a influência e liderança de atores com grande alcance e alto poder de mobilização nas redes sociais.
Segundo dados do Bot Sentinel, plataforma independente e de código aberto que monitora a ação de perfis inautênticos no Twitter, a hashtag #BolsonaroHeroiNacional foi a terceira mais utilizada por robôs no Twitter. A plataforma registrou 49 tuítes feitos por contas falsas na hashtag a favor do presidente Bolsonaro. Além disso, o Bot Sentinel verificou 26 tuítes postados por robôs na hashtag #Bolsonaro UN2021, que foi a 13ª hashtag mais compartilhada por usuários inexistentes no dia, de acordo com a plataforma.