A Organização das Nações Unidas (ONU) inicia hoje a 76ª sessão da Assembleia Geral entre presidentes e chefes de Estado. Como manda o costume, o presidente brasileiro abre as falas entre as autoridades, incubência que, agora, é de Jair Bolsonaro. Mas analistas e especialistas não têm muitas expectativas e esperam um discurso voltado para o público preferencial do presidente: os apoiadores que lhe dão, hoje, 22% de aprovação, segundo o mais recente Datafolha, divulgado no último dia 17. O combate à pandemia, a vacinação e as questões ambientais devem ser tratadas, porém do ponto de vista do governo, que difere muito dos números que são divulgados por organismos ligados ao próprio Poder Executivo. A recente crise com o Judiciário e os atos do 7 de Setembro devem ser ignorados por Bolsonaro, assim como a crise hídrica e de fornecimento de energia.
Na live da última quinta-feira, o presidente disse que faria um discurso “tranquilo” e “objetivo”, destacando, também, o agronegócio e as questões energéticas. Em aceno aos apoiadores, apesar de aconselhado a não tocar no tema, uma das pautas que Bolsonaro sinalizou mencionar diz respeito a uma eventual insegurança alimentar no Brasil e no mundo caso o marco temporal seja aprovado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Ontem, Bolsonaro afirmou, ironicamente, que seu discurso “será em Braille”, em referência ao sistema de escrita e impressão destinado às pessoas com deficiência visual. A afirmação foi dada a jornalistas na saída do restaurante do hotel em que a comitiva brasileira está hospedada, e foi vista como uma provocação àqueles que “não querem ver a verdade”. Na semana passada, ele afirmou que a fala de hoje se basearia em “verdades” e na “realidade sobre o que é o nosso Brasil”.
Apesar da tentativa de salientar esforços do país para o combate às queimadas e ao desmatamento, os números não são positivos: a área desmatada da Amazônia, em agosto de 2021, é a maior para o mês em 10 anos. Segundo dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônica (Imazon), que monitora a região por satélite, foram desmatados 1.606 km² de floresta em agosto, o que equivale a cinco vezes o tamanho de Belo Horizonte e é 7% maior do que o registrado em agosto de 2020.
No combate à pandemia, os números também são negativos. Mais de 21 milhões de brasileiros foram infectados no Brasil, e aproximadamente 591 mil perderam a vida para a covid-19. Há a expectativa de que Bolsonaro anuncie exportação de vacinas contra o novo coronavírus exatamente no momento em que o país vive escassez do medicamento.
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Público cativo
Para o ex-embaixador do Brasil em Washington Rubens Barbosa, o presidente deverá discursar com foco no público interno. “Vai divulgar a versão dele do que está fazendo aqui na área da saúde, vacinação, meio ambiente. Os esforços para preservar a Amazônia, a questão da energia e esforços para evitar apagão”, apontou.
Para ele, Bolsonaro lerá algo na mesma linha dos dois últimos anos, mas um pouco mais ameno. “Vai falar do clima por causa da conferência de Glasgow, dizer que o Brasil está favorável a políticas para preservação da floresta, que o país faz esforço para atingir as metas do Acordo de Paris. O ponto da demarcação das terras indígenas, no entanto, se falar, será polêmico. Nesta assembleia, os dois focos principais são a questão da pandemia e o meio ambiente”, observou.
Günther Richter Mros, professor de relações internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), crê que o presidente pode iniciar o discurso de forma mais comedida. Mas, à medida que o texto for avançando, fará acenos à sua base, culpando o STF por um suposto cerceamento das liberdades.
“Vai se posicionar contra novas demarcações de povos indígenas e falar de liberdade de expressão nas redes sociais. Minha aposta é por algo meio a meio, num tom que vai do ameno ao mais polêmico”, explicou.
“A minha expectativa é de que Bolsonaro mantenha uma postura negacionista diante da realidade. Significa dizer que ele tem feito um bom trabalho, e isso está muito distante da realidade em vários aspectos”, disse Juliano das Silva Cortinhas, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.
Para Ricardo Caichiolo, professor de Relações Internacionais do Ibmec Brasília, seria mais adequado Bolsonaro fazer um discurso reconhecendo as dificuldades. Isso, segundo ele, poderia atrair mais confiança da comunidade internacional para o Brasil. “Certamente, vai defender a liberdade de expressão, até para se contrapor ao que aconteceu no 7 de Setembro, em que as palavras de ordem contra a democracia foram o mote da chamada para a participação popular, e também para chamar a atenção de sua base eleitoral”, observou.
Antes do discurso, a previsão é de que presidente se encontre com o presidente da Polônia, Andrzej Duda — como o brasileiro, um dos poucos representantes da extrema direita no evento. Em seguida, se reunirá com o secretário-geral da ONU, António Guterres, e, às 10h, fará a abertura do Debate Geral da ONU. A expectativa é de que ele deixe a cidade à noite e retorne ao Brasil amanhã.
Temas a serem abordados
Marco temporal
É esperada a citação ao marco temporal, que restringe a possibilidade de demarcação de terras indígenas àquelas ocupadas por eles em 1988. Bolsonaro sinalizou a apoiadores deve expressar apoio ao marco e defender o agronegócio. Na semana passada, chegou a dizer o seguinte: “A gente espera que o STF mantenha esse marco temporal lá de trás, de 1988. Para o bem do Brasil e para o bem do mundo também. Tem gente lá fora pressionando por um novo marco temporal, para demarcar mais uma área equivalente à da Alemanha e da Espanha. Vai ter reflexo lá fora também”.
Liberdade de expressão
Mais uma crítica ao STF, que por causa do inquérito das Fake News, vem tirando várias páginas bolsonarista de circulação e impedindo a monetização. Na semana passada, o presidente tentou retomar o assunto por meio de uma medida provisória que difoiculta a retirada de circulação de sites que difundem mentiras e desinformações, que foi devolvida pelo presidente do senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e contou com decisão favorável da ministra Rosa Weber, do Supremo. Mas, no domingo, o Palácio do Planalto encaminhou um projeto de lei tentando retomar o tema da MP.
Números da vacinação no Brasil
Bolsonaro deve tentar mostrar como seu governo avançou com a vacinação dos brasileiros em meio à pandemia da covid-19. Ontem, segundo os números coletados pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Brasil alcançou a marca de 590.955 mortos pelo novo coronavírus; os casos de infecções são 21.247.667.
Auxílio emergencial
O presidente tentará destacar que irrigou a economia com um auxílio emergencial que beneficiou quase um terço da população e impediu uma recessão ainda mais forte em 2020. Mas deve ignorar que o Bolsa Família será turbinado, até o final do ano, com o aumento do Imposto sobre Operações Finacneiras (IOF). E que não há fonte financiadora para o Auxílio Brasil, programa substituto do Bolsa, pois o governo pretende dar um calote no pagamento de precatórios — dívidas judiciais em que a União foi derrotada e não pode mais recorrer.
Direita brasileira
O presidente também deverá defender a “liberdade de expressão da direita em redes sociais” e os “valores cristãos e conservadores”. Mais uma crítica ao STF.
Clima
Nas palavras de integrantes do próprio Itamaraty, Bolsonaro deverá “desarmar a bomba” da questão ambiental que o próprio governo ajudou a montar e que trouxe danos à imagem internacional do Brasil. Os números, porém, jogam contra o cenário que deve ser apresentado pelo presidente.
Questões energéticas
Bolsonaro deverá relembrar que o Brasil detém mais de 80% de sua matriz energética de fonte limpa. A expectativa dos diplomatas é de que ele anuncie o cumprimento de uma promessa que fez, em abril, na Cúpula do Clima, ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden.
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Diplomata brasileiro infectado com covid
Um diplomata que integra a delegação brasileira que está em Nova York para a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) testou positivo para covid-19. Ele não estava no mesmo voo de Jair Bolsonaro e chegou antes à cidade. O diplomata que teve o teste positivo é parte da equipe precursora do governo que organizou os preparativos para a viagem, antes do desembarque do presidente e dos ministros, no último domingo. O integrante infectado está isolado em um quarto do hotel, segundo fontes, até que seja submetido a outro teste de covid-19 e que a delegação brasileira consiga rastrear com quais pessoas ele manteve contato.
Sequência de constrangimentos
O fato de Jair Bolsonaro não ter se vacinado contra a covid-19 tem lhe causado constrangimentos. Se o episódio da pizza na calçada pode lhe render a imagem, junto ao eleitorado, do homem simples e despreocupado com a liturgia do poder, do encontro de ontem com o premier britânico Boris Johnson emergiu a imagem do presidente negacionista, que briga com a vacina e ainda defende medicamentos sem eficácia contra o novo coronavírus. Isso porque depois que ter lhe contado que tomou as duas aplicações do imunizante de Oxford contra a covid-19, o primeiro-ministro cobrou do presidente a vacinação — que constrangidamente afirmou não ter tomado as doses.
O constrangimento aumentou quando Johnson recomendou o fármaco desenvolvido pela AstraZeneca e pela Universidade de Oxford, que é produzida também no Brasil em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz. “É uma ótima vacina. Obrigado, pessoal. Tomem vacinas da AstraZeneca! Já tomei duas vezes”, disse o premier, fazendo propaganda do imunizante desenvolvido na Inglaterra. Em seguida, aponta para Bolsonaro e pergunta se ele tinha tomado também — o brasileiro responde que “ainda não”.
Na sequência do encontro com o primeiro-minsitro, outro episódio que pegou mal para a comitiva brasileira foi na hora do almoço. Bolsonaro escolheu uma churrascaria brasileira em Nova York, mas, como não está vacinado — o que o impede de entrar na área interna dos locais —, foi obrigado a ficar nas mesas de fora. A comitiva não pôde ser vista da rua porque o restaurante ergueu um pano preto para protegê-la dos olhares curiosos dos pedestres.
A imagem da pizza devorada no meio da calçada ao lado dos ministros, sem nem mesmo aproveitar as mesas externas destinadas também àqueles que não se vacinaram, não impediu que ele fosse criticado pelo prefeito da cidade, Bill de Blasio. “Precisamos enviar uma mensagem a todos os líderes mundiais, incluindo, principalmente, o Bolsonaro, do Brasil. Se você pretende vir aqui, você precisa ser vacinado. Se não quiser ser vacinado, não se incomode em vir, porque todos deveriam estar seguros juntos. Isso significa que todos precisam ser vacinados”, alfinetou, deixando claro que o presidente brasileiro não é bem-vindo.
A cidade de Nova York instalou um ônibus na porta do prédio das Nações Unidas com agentes que fazem a aplicação de vacina contra covid-19 em diplomatas e jornalistas que participam do evento. “A grande maioria do pessoal das Nações Unidas, a grande maioria dos Estados-membros está fazendo a coisa certa”, disse De Blasio.
Não é a primeira vez que o prefeito critica publicamente Bolsonaro. Ele já havia feito isso em 2019, quando o presidente alterou o destino de uma viagem que faria e deixou de ir a Nova York para visitar Dallas, no Texas.