As idas e vindas do presidente Jair Bolsonaro na crise com o Judiciário aprofundam as incertezas sobre o futuro da democracia brasileira. O chefe do governo tem se mostrado dividido entre manter o apoio da militância radical e apagar o incêndio provocado pelas ameaças que fez contra o Supremo Tribunal (STF) nos atos de 7 de Setembro. Essa indefinição, entre outras consequências, pode atrasar a retomada do diálogo entre os Poderes, necessário para o país vencer desafios como o desemprego recorde, a alta da inflação e o aumento da pobreza.
“Dialogar é o que interessa para suplantarmos essas crises, a crise da saúde, a crise econômica-financeira, a crise social com o desemprego, com a fome, e a crise da delinquência, da criminalidade”, disse Marco Aurélio Mello, ministro aposentado do STF.
Nos últimos dias, os discursos extremistas das manifestações pró-governo ainda ecoavam e acabaram trazendo muita dor de cabeça para o próprio governo. A ameaça do presidente de não cumprir decisões do ministro Alexandre de Moraes, do STF, disparou a sirene na Esplanada, levando autoridades dos três Poderes a atuarem como bombeiros, na tentativa de baixar a temperatura da crise.
Mesmo tendo Bolsonaro, com a ajuda do ex-presidente Michel Temer (MDB), divulgado a “Carta à Nação”, se retratando dos ataques ao Supremo, poucos acreditam que haverá uma trégua no confronto com o Judiciário. Logo depois da divulgação do comunicado, por exemplo, ele voltou a questionar a segurança das urnas eletrônicas, a atacar o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, e a pregar a adoção do voto impresso nas eleições. Foi uma forma de acalmar a militância radical, contrariada com o tom brando da “Carta”.
Recomendação
Marco Aurélio Mello recomenda que a Corte evite amplificar ainda mais a crise. “É preciso dar um desconto, e perceber que muita coisa é discurso, é arroubo de retórica, é exagero, e aí não se tem que potencializar, que revidar. Porque, quando você reage e reage de forma agressiva, você alimenta a discussão”, disse o jurista.
De acordo com ele, é necessário que tanto o Executivo quanto o Judiciário se esforcem para debelar a crise. “Por isso que eu falei que a corda estava sendo esticada em demasia por ambos os lados, sem criticar individualmente este ou aquele colega de ofício judicante, de julgador. O presidente refletiu, e nós temos que acreditar na nota que ele divulgou, e é hora de se sentar à mesa, e não na mesa, e dialogar”, disse Marco Aurélio.
Ele também afirma que “a nossa democracia jamais esteve em risco”, mas que é necessário um esforço para preservá-la. “Sejamos positivos e façamos o melhor, e com isso robustecemos a democracia. Quando se suplanta o descompasso, a democracia fica robustecida. É temperança, é ponderação, é compreensão”, afirmou
Diferentemente de Marco Aurélio, o advogado constitucionalista Camilo Onoda Caldas, doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor do Instituto Luiz Gama, alerta que a democracia brasileira já foi fortemente abalada, em razão dos ataques de Bolsonaro e de seus apoiadores. “Nós, apenas, não sabemos a extensão e duração destes danos. E isso se dá em diversas frentes. Primeiro, nós temos um presidente que exalta publicamente a ditadura militar. Isso produz um efeito concreto, já que algumas pessoas passam a acreditar na validade desses regimes e a verem com bons olhos as atrocidades que foram praticadas anteriormente”, disse o advogado à reportagem.
Caldas afirma que, além disso, o presidente insiste em colocar em dúvida, sem provas, a lisura do processo eleitoral brasileiro. Ele teme que, nas eleições de 2022, se repita, no Brasil, episódios como a invasão do Congresso dos Estados Unidos por apoiadores do ex-presidente Donald Trump, que não aceitou a derrota na disputa presidencial para Joe Biden.
Segundo o advogado, os questionamentos de Bolsonaro à segurança das eleições “fará com que algumas pessoas não aceitem o resultado, e isso pode levar a consequências mais extremas, mas é um prejuízo real parte da população ficar descrente do resultado, o que é muito ruim. Porém pode ser
pior, pois parte desses inconformados podem tomar medidas mais radicais, por exemplo, o que ocorreu nos Estados Unidos, no episódio da invasão do Capitólio”.
Para Caldas, “a democracia também se coloca efetivamente prejudicada, porque o presidente já estabeleceu, como premissa, que certas forças políticas de esquerda não têm o direito de participar da disputa eleitoral e não fazem parte do jogo democrático, sendo que uma parte de seus apoiadores já aceitou essa ideia”.
Por fim, o constitucionalista diz que a democracia brasileira está sendo fortemente corroída por uma rede de fake news e de desinformação. “Isso já é uma realidade, não mais um risco. Temos um processo profundo de desinformação e alienação feito por esses meios espúrios de comunicação e, sobretudo, com a utilização de redes sociais e aplicativos de comunicação com internet”, afirma Caldas.
Nos EUA
Para o historiador e brasilianista norte-americano James Naylor Green, especializado em estudos latino-americanos, a comunidade internacional tem visto cada vez mais Bolsonaro como um inimigo da democracia e um risco para o futuro do Brasil. “Apesar da declaração de Bolsonaro no Twitter, fica evidente que ele não respeita as instituições democráticas, especialmente os poderes do judiciário e, particularmente, o STF. Representa uma grande ameaça à democracia no Brasil. Dizer que seu destino político é a vitória ou a morte é um claro sinal de que não vai respeitar os resultados das eleições presidenciais em 2022, caso ele não seja reeleito”, disse Green, que é professor do Departamento de História da Brown University, de Rhode Island, nos Estados Unidos.
Ele vê fortes semelhanças entre as posturas de Bolsonaro e de Trump em relação ao processo eleitoral. “É um discurso apropriado pelo ex-presidente Trump, que até hoje nega que foi derrotado nas eleições de 2020. Serve para manter a sua base mobilizada. Bolsonaro está tentando usar o mesmo roteiro”, disse o brasilianista.
"É preciso dar um desconto, e perceber que muita coisa é discurso, é arroubo
de retórica, é exagero, e aí não se tem que potencializar, que revidar”
Marco Aurélio Mello, ministro aposentado do Supremo
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O bombeiro Torres
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, construiu na sexta-feira algumas das pontes mais importantes atualmente para acalmar o ambiente político no país. Ele participou dos eventos do 7 de Setembro ao lado de Bolsonaro, tanto em Brasília quanto em São Paulo, e, aos poucos, alinhou com ele a estratégia para distensionar cenários importantes.
Enquanto muitos falavam que outros “bombeiros palacianos” estariam em ação, reservadamente Torres foi a São Paulo almoçar com a cúpula da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban). Lá, costurou a criação de uma estratégia nacional de combate aos crimes cibernéticos, mas, muito além disso, conversou abertamente com o presidente da entidade, Isaac Sidney, transmitindo a mensagem do presidente de que não há rusgas entre o governo federal e a Febraban, aliviando assim o clima pesado que pairava entre a instituição e o governo.
Mas, essa não seria a principal missão dele em São Paulo. Logo em seguida ao evento na Febraban, em seu segundo almoço do dia, Torres passou mais de quatro horas a sós com o ministro Alexandre de Moraes, do STF, em sua residência na capital paulista.
A conversa foi cordial desde o início. Além de reaproximar o ministro de Bolsonaro, Torres e Moraes firmaram um pacto de alinhamento do Ministério da Justiça como interlocutor direto do governo com o Supremo.
Os dois combinaram de se encontrar mais frequentemente, não só com o próprio ministro Moraes, mas também com os demais membros da Corte. Foi um dia intenso na capital paulista, mas muito vitorioso para Torres, que se cacifou de vez como importante articulador político de confiança de Bolsonaro. Este, por sua vez, se mostrou muito satisfeito quando o ministro ligou para ele, contando sobre as reuniões em São Paulo. Como resultado, o Brasil, finalmente, consegue ter um fim de semana tranquilo na política, depois de um bom tempo de um cenário tenso e preocupante.