A crise entre Poderes, acentuada na última semana pelos reiterados ataques do presidente da República a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), não se restringe ao embate entre Executivo e Judiciário. No Congresso, as alegadas interferências de Jair Bolsonaro na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da covid-19 também aumentam as tensões em torno do Legislativo. Para os senadores que lideram os trabalhos, o movimento para proteger o governo federal sai da normalidade do jogo político e configura crime ao cercear o livre exercício das atribuições de uma CPI.
O mais recente ato que evidencia interferência e intimidação, na avaliação de membros do G7— grupo majoritário formado por oposicionistas e independentes do governo —, é a abertura de um inquérito pela Polícia Federal (PF) para investigar vazamentos de informações sigilosas pela CPI à imprensa. "Constitui crime impedir ou tentar impedir o regular funcionamento de Comissão Parlamentar de Inquérito, ou o livre exercício das atribuições", alegou o vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), reiterando a prerrogativa constitucional do Congresso de fiscalizar o Executivo. Motivo pelo qual, a CPI encaminhou à Advocacia do Senado pedido para ingressar com habeas corpus no Supremo Tribunal Federal (STF), com o objetivo de trancar o inquérito "ilegal e ilegítimo", nas palavras do parlamentar.
Mas a reação do Legislativo foi forte, inclusive com apresentação de queixa-crime contra o Ministro da Justiça, Anderson Torres, e o diretor-geral da PF, Paulo Gustavo Maiurino. "A cada intimidação haverá uma reação. O que pode ser feito é utilizar o que está sobre a égide de um estado democrático de direito para assegurarmos o livre funcionamento dos trabalhos", disse Randolfe ao Correio. O inquérito foi interpretado como o uso de uma instituição de estado para fins políticos, o que, para o relator Renan Calheiros (MDB-AL), não é a primeira vez que a distorção de função acontece no âmbito da CPI. Segundo o senador, houve a tentativa de um "indiciamento ilegal" contra ele. O parlamentar refere-se à acusação de recebimento de R$1 milhão em propina, supostamente pagos pela empreiteira Odebrecht à Calheiros, em inquérito aberto em 2017 e, recentemente, remetido ao STF.
"A Polícia Federal não tem competência para indiciar senador, apenas o STF. Essa investigação está aberta desde março de 2017 e, como não encontraram prova alguma, pediram prorrogação. Justamente agora, quando a CPI mostra todas as digitais do governo na corrupção da vacina, a parte politizada da Gestapo (a polícia política do regime nazista de Adolf Hitler) tenta essa retaliação", avaliou Calheiros. Diante da nova polêmica envolvendo a PF, o relator opinou: "Todos que tentam aparelhar à PF, deram com os burros n'água. Não adestrarão a instituição."
A base do governo, por outro lado, elogiou a abertura do inquérito pela Polícia Federal. O senador Marcos Rogério (DEM-RO) sustentou que a CPI vazou documentos sigilosos à internautas. "Isso é um episódio de vazamento seletivo de informações?", questionou retoricamente, afirmando, ainda, que a CPI está sendo "pautada por perfis falsos da internet."
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A acusação foi feita após Calheiros afirmar que um internauta relembrou aos membros que a comissão dispunha de informações que refutavam depoimento do tenente-coronel da reserva Marcelo Blanco da Costa, ex-diretor substituto do Departamento de Logística do Ministério da Saúde. "Como assim, o internauta sabe mais que a CPI?", alfinetou Eduardo Girão (Podemos-CE). Calheiros alegou que não houve vazamento, apenas uma observação, lembrada pelo internauta.
Uso das Forças Armadas
Outro indicativo da tentativa de intimidação consiste o uso das Forças Armadas na defesa dos interesses do governo Bolsonaro. Esta semana, o senador Rogério Carvalho (PT-SE) acusou o ministro da Defesa de espionagem. "Eu quero dizer ao senhor Braga Netto, que foi o emissário do oficial do Exército para fazer espionagem contra um parlamentar, um senador da República, que eu não tenho medo. Que eu não abrirei mão das minhas convicções." Diante da denúncia, a CPI enviou ofício ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM/MG), solicitando que o representante da Casa interrogue o militar e tome as providências cabíveis. Por telefone, Braga Netto rechaçou as denúncias.
Não é a primeira vez que Pacheco e o ministro da Defesa reúnem-se para apaziguar os ânimos entre parlamentares e militares. A primeira tratativa deu-se após nota em nome das Forças Armadas — assinada por Braga e os comandantes do Exército, Aeronáutica e Marinha, à época recém-designados por Bolsonaro —, repudiando declarações do presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), que afirmou haver "membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo." Conforme a nota, as Forças "não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro."
Aziz também indicou ter sido alvo de espionagem. "Está acontecendo com todos nós", declarou. Apesar das polêmicas envolvendo o líder da Defesa, ainda não há consenso para convocá-lo e, por isso, o requerimento foi retirado, por hora, de pauta. A ideia é retomar a pauta acerca da convocação caso surjam mais indícios contra Braga.
"Vamos ter que ouvi-lo, não apenas pelo cargo que ele hoje ocupa e utiliza para pressionar as instituições, mas porque era ministro Chefe da Casa Civil, no momento do enfrentamento à pandemia, e coordenador do enfrentamento à crise", justificou Calheiros. A suspeita é de que Braga Netto tenha liderado o investigado gabinete paralelo e atuado em tratativas envolvendo a compra de vacinas contra a covid-19.
O conjunto de fatores envolvendo instituições de estado foi interpretado pelo senador Humberto Costa (PT/PE) como uma "escalada que o PR está fazendo no sentido de afrontar os outros poderes da República, atacando a independência e autonomia". O petista mencionou que a conduta tem sido utilizada permanentemente contra o STF e, mais recentemente, em desfavor ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), bem como aos respectivos ministros. "Por fim, agora ao Congresso. A CPI é instrumento de efetivação de uma das principais atribuições e prerrogativas da Casa, que é a fiscalização do Executivo", ressaltou, reiterando que os parlamentares "não vão se intimidar".