Em um momento de forte tensão entre o governo Jair Bolsonaro e o Poder Judiciário, as Forças Armadas planejam um desfile militar inédito em frente ao Palácio do Planalto nesta terça-feira (10/08), segundo informou a Marinha em um comunicado oficial.
A nota diz que "um comboio com veículos blindados, armamentos e outros meios da Força de Fuzileiros da Esquadra, que partiu do Rio de Janeiro, passará por Brasília". O destino final é o Campo de Instrução de Formosa (CIF), onde é feito anualmente, desde 1988, um grande treinamento da Marinha, a chamada Operação Formosa.
No entanto, o comunicado sugere que o comboio passará em frente ao Palácio do Planalto, que fica na Praça dos Três Poderes, junto com o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF). Caso se confirme, esse ato em pleno dia útil seria inédito. Anualmente, há desfile militar na Esplanada dos Ministérios durante as celebrações do Feriado da Independência, em 7 de Setembro.
"Na oportunidade, às 8h30, no Palácio do Planalto, serão entregues ao Presidente da República, Jair Bolsonaro, e ao Ministro da Defesa, Walter Souza Braga Netto, os convites para comparecerem à Demonstração Operativa, que ocorrerá no dia 16 de agosto, no CIF", diz ainda o comunicado.
Será a primeira vez que a operação contará com a participação do Exército e da Força Aérea, segundo informou também a Marinha.
"Este ano, a Operação Formosa envolverá mais de 2.500 militares, da Marinha, do Exército e da Força Aérea, que simularão uma operação anfíbia, considerada a mais complexa das ações militares, empregando mais de 150 diferentes meios, entre aeronaves, carros de combate, blindados e anfíbios, de artilharia e lançadores de mísseis e foguetes. Foram transportadas 1.500 toneladas de equipamentos do Rio de Janeiro para Brasília, num deslocamento de mais de 1.400 km", diz ainda a nota, sem especificar quanto desse efetivo passará pelo Palácio do Planalto.
Estudioso das Forças Armadas, o professor Juliano Cortinhas, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), disse à BBC News Brasil que não há precedente de iniciativa similar durante o período democrático brasileiro.
"Essas demonstrações são inéditas na nossa democracia. Em regimes ditatoriais, mais fechados, são comuns", afirmou.
"Um absurdo total. Algo impensável na democracia, principalmente porque o risco (de ruptura democrática) a partir das declarações do próprio presidente está muito elevado", criticou ainda.
A BBC News Brasil questionou o Ministério da Defesa, a Marinha e o Palácio do Planalto sobre qual efetivo militar será usado durante o convite do presidente e qual a motivação para realizar um desfile militar inédito, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem. Caso haja alguma manifestação, será incluída posteriormente.
Voto impresso na Câmara
O desfile militar ocorre no mesmo dia em que a Câmara dos Deputados deve votar uma proposta de emenda constitucional (PEC) que visa implementar o voto impresso nas eleições de 2022, principal bandeira de Bolsonaro no momento.
Sem apresentar qualquer prova, o presidente diz que as urnas podem ser fraudadas e alega que apenas o voto impresso afastaria esse risco.
Já o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) rebate dizendo que a urna eletrônica conta com inúmeros mecanismos de segurança que garantem a integridade das eleições.
Questionado se vê o desfile militar como uma tentativa do presidente de demonstrar força e pressionar a Justiça Eleitoral e o Congresso, o professor da UnB disse que "a própria dúvida (sobre essa intenção) já é grave e muito prejudicial para nossa democracia".
"A grande questão pra mim não é nem se perguntar o real significado de uma demonstração como essa, mas sim a gente refletir sobre o fato de que há muitas dúvidas a respeito de qual papel as Forças Armadas pretendem jogar no processo eleitoral que já foi iniciado de fato, porque o Bolsonaro está em campanha por todo o país, usando dinheiro público ilegalmente pra fazer campanha", disse o professor, em referência às viagens feitas pelo presidente para participar de atos políticos, como passeios de motocicleta com seus apoiadores.
Para Cortinhas, as Forças Armadas não têm cumprido sua função constitucional de proteger as instituições democráticas ao permitir que Bolsonaro ataque os outros Poderes. Nas últimas semanas, o ministro da Defesa chegou a fazer manifestações públicas em defesa do voto impresso e contra a atuação do senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid.
"Importante lembrar que uma das funções das Forças Armadas pelo artigo 142 da Constituição é proteger as nossas instituições democráticas, e elas não estão cumprindo o seu papel constitucional, portanto, já que o presidente vem atacando a cada dia com mais veemência a nossa democracia e as Forças Armadas estão caladas", criticou.
"E, indo além, estão se posicionando a favor dele, quando as Forças Armadas aceitam as falas do Bolsonaro quietas e contrapõem outros Poderes institucionalizados, como a Suprema Corte do nosso país, como o próprio Congresso. Então, eu vejo que é um momento extremamente preocupante", acrescentou.
Entenda agravamento da crise
O voto impresso se tornou nas últimas semanas epicentro de uma grave crise institucional entre o Palácio do Planalto e o Poder Judiciário, com Bolsonaro fazendo ataques diários à Justiça Eleitoral e a ministros do TSE e do STF, em especial Luís Roberto Barroso (presidente do TSE).
Do outro lado, TSE e STF reagiram abrindo investigações contra Bolsonaro. A apuração na Corte Eleitoral tem potencial de deixar o presidente inelegível por oito anos, impedindo-o de tentar a reeleição em 2022.
Já o ministro do STF Alexandre de Moraes incluiu Bolsonaro como investigado no inquérito das Fake News para apurar se o presidente cometeu crimes durante uma transmissão ao vivo realizada na quinta-feira passada (29/07) em que alegou ter indícios fortes de fraudes nas últimas eleições, usando vídeos antigos que circulam na internet já desmentidos pelo TSE.
Após a decisão, Bolsonaro disse que o inquérito é ilegal e ameaçou agir fora da Constituição.
"Está dentro das quatro linhas da Constituição (a decisão de Alexandre e Moraes)? Não está. Então o antídoto para isso também não é dentro das quatro linhas. Aqui ninguém é mais macho que ninguém", disse na quarta-feira (04/08).
"Sou presidente 24 horas por dia. O meu jogo é dentro das quatro linhas (da Constituição), mas se sair das quatro linhas, sou obrigado a sair das quatro linhas. É como o inquérito do Alexandre de Moraes: ele investiga, ele pune e ele prende. Se eu perder (as eleições) vou recorrer ao próprio TSE? Não tem cabimento isso", declarou também.
Depois dessas falas, o presidente do STF, Luiz Fux, cancelou reunião que havia convocado com Bolsonaro e os presidentes da Câmara (Arthur Lira) e do Senado (Rodrigo Pacheco) para tentar reduzir a crise.
"O presidente da República tem reiterado ofensas e ataques de inverdades a integrantes desta Corte, em especial os ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Sendo certo que, quando se atinge um dos integrantes, se atinge a Corte por inteiro", disse Fux ao cancelar o encontro.
"Além disso, sua excelência (Bolsonaro) mantém a divulgação de interpretações equivocadas de decisões do plenário bem como insiste em colocar sob suspeição a higidez do processo eleitoral brasileiro", acrescentou.
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