Neste mês de agosto, quando a tentativa frustrada de autogolpe do ex-presidente Jânio Quadros completa 60 anos, o Brasil volta a viver uma situação semelhante. Agora, o presidente Jair Bolsonaro põe em xeque a realização das eleições de 2022 se o Congresso não aprovar a PEC do voto impresso. Nessas duas páginas tristes da história nacional, as semelhanças mais preocupantes são o uso político das Forças Armadas e o plano do governante de comandar o país com mão de ferro, ao lado de militares.
Bolsonaro estica cada vez mais a corda nos embates com o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O tom das agressões do capitão reformado aumenta à medida que sua popularidade cai e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) segue como favorito às próximas eleições, segundo as pesquisas. O presidente, inclusive, tem acusado, sem apresentar provas, a cúpula do Judiciário de trabalhar pelo retorno do petista ao poder.
Bolsonaro também vem explorando a repulsa de boa parte da cúpula militar a Lula e à esquerda para atrair as Forças Armadas ao seu projeto autoritário. Ao mesmo tempo, em entrevistas, nas redes sociais e nas conversas com apoiadores, o presidente tem reforçado as críticas aos governos petistas e alertado que um eventual retorno da esquerda ao poder será prejudicial ao país.
A tática de explorar a rejeição à esquerda entre os militares também foi usada por Jânio Quadros. O então presidente renunciou em 25 de agosto de 1961, menos de sete meses depois de assumir a presidência, e comunicou o Congresso por meio de um bilhete. Ele acreditava que a renúncia não seria aceita pelos parlamentares, pelas Forças Armadas e até pelo povo, o que lhe permitiria voltar ainda mais forte. Jânio sabia do temor dos militares com a possível posse de seu vice, o esquerdista João Goulart. Só que, ao contrário do que tramava o então presidente, o Congresso descobriu o plano golpista e decidiu aceitar seu pedido de renúncia.
Parcialidade
Sessenta anos depois, o risco da ascensão de um regime autoritário volta a assombrar o país, e os sinais vão muito além da cansativa discussão sobre o voto impresso e do avanço da politização entre as Forças Armadas. Outras instituições do Estado — como a Procuradoria-Geral da República e a Polícia Federal — vem sendo acusadas de atuar com parcialidade para proteger o presidente Bolsonaro e seus três filhos políticos.
Em um dos casos mais recentes, o senador Rogério Carvalho (PT-SE), membro da CPI da Covid, apresentou, na semana passada, um pedido para que o comando da comissão adote providências para obter a íntegra do vídeo do depoimento que o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello prestou à Polícia Federal no inquérito que investiga indícios de irregularidades no contrato de compra da vacina indiana Covaxin. O parlamentar também pediu que a CPI cobre explicações da PF por ter enviado um material incompleto, sem as partes em que o ex-ministro cita Bolsonaro e o deputado Luís Miranda (DEM-DF).
O mesmo senador Rogério Carvalho também denunciou à CPI, na semana passada, que uma pessoa próxima dele foi abordada, em Sergipe, por oficiais do Exército. Os militares, segundo relatou o parlamentar, buscavam informações a seu respeito.
Carvalho é o relator, no Senado, do projeto que revoga a Lei de Segurança Nacional, um dos resquícios da ditadura militar (1964-1985). Em entrevista ao Correio, ele disse que, no período da redemocratização, ainda não tinha visto a democracia brasileira tão ameaçada como agora.
“Nunca vi, e é importante a gente fazer justiça. Nem no período pós-ditadura, quando o presidente José Sarney (MDB) assumiu, decorrente de uma eleição indireta, portanto, no período de transição. Nem naquele período o Brasil viveu momentos tão difíceis”, disse o senador. Ele acrescentou: “A gente tem tido presidentes que, com suas qualidades e seus defeitos, todos respeitaram a livre manifestação dos movimentos sociais, a livre expressão da imprensa. Ninguém viu ou teve notícia de uma ação ofensiva contra setores que formam, disputam opinião na sociedade, que se expressam de diversas maneiras”.
O senador, entre outros sinais do avanço do autorismo no país, cita “a tentativa de transformar em crime de terrorismo as manifestações da luta social por conquista de direitos; a tentativa de calar a imprensa, de forma agressiva e desrespeitosa, principalmente com a representação feminina, tendo aí um sexismo e um machismo embutido; além da tentativa direta de intimidar os outros Poderes republicanos”. Carvalho também diz temer uma possível ruptura institucional no país, mas alerta que tudo depende do que instituições como o Congresso e o Judiciário fizerem agora.
Papel constitucional
Para o professor Paulo Calmon, do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL-UnB), a democracia brasileira vive um risco real. Ele lembra que períodos de sucesso de regimes democráticos foram interrompidos, muitas vezes de forma abrupta, por crises profundas e ascensão de governos autoritários ou totalitários.
“Foi assim na democracia ateniense; na República Romana; assim como em vários países europeus e da América Latina ao longo do século XX. Mais do que a experiência histórica, temos sempre que lembrar que o Brasil do Século XXI é marcado pelo crescente número de líderes e grupos políticos que militam arduamente e de forma constante contra os ideais de cidadania, liberdade e igualdade que fundamentam a democracia”, disse Calmon.
O docente, porém, acredita que as Forças Armadas continuarão atuando como instituições de Estado — não de governo — e honrando “o juramento de proteger a pátria e atuar como guardiões da Constituição e da Nação contra as ameaças de grupos fanáticos e ensandecidos por mentiras e ideologias importadas do estrangeiro”.
Calmon lembrou que, na recente investida autoritária nos Estados Unidos, promovida pelo então presidente Donald Trump, o Estado-Maior das Forças Armadas tomou uma posição clara: “Protegeu os interesses dos cidadãos e bateu continência não para as ordens de um presidente ensandecido, mas para a Constituição em respeito ao Estado Democrático de Direito”.
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