Bolsonarismo sem retoques
Um dia após autoridades dos Poderes republicanos repudiarem nova tentativa de disseminar acusações infundadas contra o sistema eleitoral brasileiro, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, escreveu uma frase sintomática do atual momento nacional. “A verdade, no Brasil de hoje, precisa ser restabelecida a cada dia.” Foi a resposta a mais um ataque desferido pelo presidente Jair Bolsonaro, que acusou o magistrado de, “do nada”, ir ao Congresso Nacional atacar o “voto impresso” e militar em favor da urna eletrônica. Barroso foi didático, como de costume. “Estive na Câmara dos Deputados, após insistentes convites da própria comissão de voto impresso, para explicar que temos voto seguro, transparente e auditável”, esclareceu.
A boa vontade do ministro não se limitou à visita de cortesia à comissão especial que trata do tema na Câmara. Como representante da Justiça Eleitoral, Barroso tem divulgado vídeos educativos para explicar, passo a passo, os procedimentos de segurança adotados para a urna eletrônica, a fim de evitar fraudes durante o pleito. Note-se que a preocupação com a higidez do sistema eletrônico — plenamente auditável, ressalte-se — está presente desde o início da digitalização do processo eleitoral. Em recentes entrevistas, o ministro aposentado Carlos Velloso, presidente do TSE à época da implementação da urna eletrônica, em 1996, lembrou que a blindagem dos dados eleitorais foi desenvolvida com a ajuda de militares, especialistas em segurança da informação. Passados 25 anos sem registro comprovado de fraude com urnas eletrônicas, fardados voltam a se envolver no sistema de votação brasileiro, mas por vias tortas. E inconstitucionais.
Em resposta à reportagem de O Estado de S.Paulo que revelou movimentos golpistas do ministro da Defesa, Braga Netto, com ameaças à realização das eleições em 2022, o general trouxe à luz elementos que, em vez de afastarem as suspeitas, reforçam-nas. “A discussão sobre o voto eletrônico auditável, por meio de comprovante impresso, é legítima, defendida pelo governo federal e está sendo analisada pelo Parlamento brasileiro, a quem compete decidir sobre o tema”, escreveu o titular da Defesa. Muitas vezes já foi dito, diga-se uma vez mais: não cabe ao titular da Defesa, cuja atribuição precípua é zelar pela integridade territorial do país ante ameaças externas, manifestar-se sobre o processo eleitoral. Não compete ao ministro alegar que a posição do governo é “legítima”. Trata-se de assunto, como foi dito pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e tantos outros, de estrita competência do Congresso Nacional. Se o próprio Braga Netto reconhece que a decisão está circunscrita ao Parlamento, então nada há a comentar sobre a matéria. O fato de o presidente da República, eleito pelo voto popular, defender mudanças no sistema eleitoral, não autoriza o chefe de uma instituição de Estado a declarar juízo. Fica assim o registro, para a história, de mais uma malfadada participação dos militares na reinserção ao regime democrático patrocinada por Jair Bolsonaro.
Com essa atitude, o ministro da Defesa desvia-se cada vez mais do norte institucional que deve conduzir as Forças Armadas e busca aventurar-se na arena da política, por lealdade ao chefe do Executivo. Junta-se, assim, a outros personagens que ganharam notoriedade pela subserviência aos interesses do Planalto, como os indicados ao Senado Augusto Aras e André Mendonça para os cargos de procurador-geral da República e ministro do Supremo Tribunal Federal, respectivamente. Não bastassem os danos causados às instituições como a Procuradoria Geral da República, a Advocacia-Geral da União e o ministério da Defesa, o servilismo ao Planalto provoca efeitos nefastos sobre a democracia, pois evidencia que os integrantes e aliados do atual governo estão dispostos a levar às últimas consequências os arreganhos bolsonaristas.
A verdade no Brasil, como lamenta Luís Roberto Barroso, precisa ser restabelecida. E essa necessidade se faz premente porque este governo busca, incessantemente, subterfúgios para subverter a ordem das coisas, confundir a opinião pública, promover uma algazarra institucional, flertar com o golpismo. O governo perdeu, uma a uma, as bandeiras que defendia ao conquistar o voto do eleitor em 2018: o repúdio à corrupção, a renovação da política, a agenda liberal em favor do desenvolvimento. Tudo fake. Tudo mentira. “Eu sou do Centrão”, negacionismo à ciência, tendência autoritária e pauperização do debate político. Este é o verdadeiro rosto do governo Bolsonaro. Cada vez mais sem retoques.